terça-feira, 30 de junho de 2009

Encontro

Veleiro













Mediu a altura do Sol com um sextante, anotando a hora.
O astro estava fazendo sua passagem meridiana, que nada mais é quando ele atinge a sua altura máxima no local onde nos encontramos. De posse de poucos dados complementares, ficamos sabendo nossa latitude e longitude, uma informação preciosa.
Quase ninguém faz mais isto. Com o aparecimento do GPS, pequeno aparelho que capta sinais emitidos de satélites, é capaz de ser obtida uma posição de extrema confiabilidade, com dia claro ou nos momentos de meio crepúsculo, quando astros e horizonte do mar são avistados. Isto não ocorre em dias de chuva, ou nebulosos. Durante a noite, vemos um céu de estrelas, mas não o horizonte do mar, o que não impede o imediato encontro da posição geográfica, usando o GPS, ou global positioning system, sistema de posicionamento global.
Velejar é um esporte e uma arte. Em alto mar, o conhecimento de marear as velas, orientando de forma que peguem o máximo de vento possível, manter o rumo não permitindo alterações e não parar quieto por muito tempo é completamente diverso do que navegar em águas abrigadas, onde o perigo parece praticamente nulo.
Nosso timoneiro solitário conferiu a posição encontrada astronomicamente com a que indicava o GPS. Praticamente, nenhuma diferença, que o fez sorrir. Bebeu mais um gole do seu rum com água, abandonou a pequena mesa de navegação e foi dar uma olhada na panela onde cozinhava batatas com muita cebola, e dois dentes de alho. O peixe, vindo no corrico, uma cavala das melhores, já estava pronto. Corrico é uma longa linha cheias de anzóis iscados, que é lançada ao mar e amarrada em alguma parte firme do barco. É difícil não trazer peixe de serventia, como o que fora recolhido, limpo e filetado.
Dormiu duas horas, sono pesado, mas com o ouvido funcionando, para escutar algum eventual apito de navio, embora estivesse um pouco afastado da rota deles. Durante a noite, dorme-se com os olhos abertos, vendo-se as estrelas, fora da cabine e fortemente amarrado; pode cair no mar. É um prazer indescritível. O leme automático, guiado pelo vento, encarregou-se de timonear o veleiro. Acordou com sede. Dois copos d’água foram bebidos, num processo lento, quase um ritual.
Lavou a os utensílios usados, guardou na geladeira pequena as batatas cozidas com cebola e alho, prato indispensável a quem faz este tipo de viagem.
Voltou ao convés. Tudo em ordem. Felizmente.
Esperava, o quanto antes, atingir Dacar, o local onde sua amada o esperava. Sempre sua companheira de velejadas, desta não participou.
Grávida de sete meses deu um longo beijo no marido, e orgulhosamente exibia uma senhora barriga!
Foi um feliz encontro. São estes fatos, é o que me parece, que dão luz e graça à Vida.

sábado, 27 de junho de 2009

Histórias de jagunço

Jagunços












Há um certo exagero. Embora rudes, valentões e dispostos, os cinco homens que estavam perto da vala cavada no chão, onde as brasas fritavam linguiças e uma pequena panela servia para fazer farofa, mais outra que não demorava e poderia ser derramada a água para fazer café num coador de flanela, usado muito tempo, já quase tendo atingido a cor da bebida, agachados conversavam baixo. Mas não eram jagunços, a bem dizer.
Vez por outra, a garrafa de pinga, coisa de primeira qualidade, lá dos rincões da serra, feita com carinho e orgulho por Bastião Crisanto, dono das terras onde era produzida a amarelinha com sabor leve, envelhecida em tonel de carvalho anos, a dita cuja garrafa, que não era a única levada pelos tranca-ruas, passava de mão em mão e cada um colocava um pouco na canequinha de alumínio. Nada de beber no gargalo e sujar a bebida com a saliva da boca. Estavam todos em busca da onça que andava acabando com os novilhos. Uns, fazendeiros experimentados com as caçadas, outros empregados de confiança. Oito, ao todo. A barraca de lona encerada estava próxima ao fogo, que ajudava a manter longe cobras e outros enviados do capeta.
- Pois eu lhe digo, seu Honório, que acredito sim no que este povo fala.
- Cê inda credita em Papai Noel.
- Quer dizer que não crê no chupa-cabras?
- Não e se topar com ele na frente, vai comer chumbo disto daqui – falou alisando a coronha da Winchester quarenta e quatro, ferramenta que todos carregavam, sem contar nas espingardas de cartucho. Arma ali era coisa que não faltava.
- E se ele é do cão mesmo, o coisa ruim?
- Vai do mesmo jeito.
Tolice insistir. Aqueles oito – um exército! – para pegar uma onça vadia, nenhum deles iria ceder na discussão. Têm os que acreditam em tudo, têm os que não acreditam em nada. A conversa não demorou muito, recolheram-se na barraca pesada e um deles foi ver o burro Carimbo, mais a cachorrada onceira que tinham levado.
O dia nem havia clareado e mais uma vez uma cachacinha com café e rapadura e um aipim frito no já quase extinto braseiro forraram os estômagos dos compadres.
Não desmontaram a barraca, nem apagaram o fogo, que não apresentava risco nenhum de fazer uma queimada. Era baixo demais, quase só cinzas. Claudionor, o mais velho de todos, ficou tomando conta do acampamento e do burro Carimbo.
Andaram na mata, por vezes aberta, em outras necessitando usar os facões que pareciam espadas, de tão grandes. Por volta do meio dia, a cachorrada endoidou. Dispararam em carreira desabalada, seguidos pelos matadores.
Os latidos, o choro sofrido dos onceiros acostumados a enfrentar muito bicho bravo, cessou. Tão logo os homens chegaram. Mal podiam ver e acreditar. Uma onça parda, das grandes, estava morta, mortinha, mortíssima no chão. Até aí, nada. Mas ela estava magra, seca, sem sangue. No pescoço tinha uma mordida, e ninguém dali podia dizer de qual animal.
- Foi ele! Pegou a onça!
Foram-se embora. Ninguém disse nada...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A bela morena

Livia/jcs














Todo mundo conhece a história da bela morena, bonita de dar pena, que se exibe aqui e ali. Ela some de repente, foge de todos deixando agonia na gente. Desta vez a linda pequena inventou uma nova: mostrando que não é nada burra, disto deu uma prova. Calma, eu explico, gente. Virou moda, é mania, fazer da gurizada contente um fato que é soda, pegam os bichinhos indefesos e botam eles na roda. Pois surge a morena sestrosa, que está com tudo e é muito prosa, decidida a ser fada madrinha dos infantes que têm sofrido como nunca penaram antes. Com ela não se brinca não, todos sabem que mais cedo, mais tarde, mesmo o mais valente acaba virando covarde. Um casal que pensava ser o rebento objeto de pancada feia, este casal nojento foi pela morena atacado. Pensou a bela pequena, bonita de dar pena, nesta situação dar um basta. Sendo mulher decidida, o povo ruim se afasta; conhece a fama da morena, bonita de dar pena, na arte de bater em gente fedida que acha criança nefasta. Madrinha assim é difícil, é escultural a morena, tem lindo corpo a pequena e um belo rosto talhado. Seu exército é possante, tudo homem vidrado e disposto a fazer qualquer sacrifício pela mulher encantada. Isto virou um vício, e até mesmo um ofício, ofertar à morena deslumbrada, algum favor que agrade. Juntaram-se todos e ficou decidido, que mulher tendo parido, da cria deveria cuidar, pena de muito se danar. Idéia da morena, cheia de fãs a pequena, que dela não queriam largar. A cidade ficou contente, veja a causa minha gente: quem maltratasse criança seria logo capado. Castigo pra mulher eu não conto, é difícil ser narrado. Foi assim que naquela cidade, onde impera a morena, bonita de dar pena, criança de qualquer idade não sofre mais crueldade. Com isso a bela morena agora é venerada e por todo povo é amada. Rainha ela sempre foi, mas por causa da sua beleza, tanto na cama como na mesa. Conspirou o Universo que a morena fosse agora cantada e pra ela fiz este verso.

sábado, 20 de junho de 2009

A história do Vainqueur

Veleiro desconhecido












Contam-se casos e mais casos de histórias acontecidas no mar, tanto atualmente, quando temos provas suficientes para avaliar sua veracidade, como de outras épocas, fazendo, por assim dizer, o folclore do mar.
Por ser muito grande e antes das grandes navegações de Portugal e Espanha, o mar passou a ser objeto de curiosidade, imaginação e incentivar mistérios.
Não é à toa que muitos afirmam que ele é o inconsciente da terra. Grande e poderoso, mas podendo ser enfrentado se para isso existe coragem e respeito.
Em 1672, conforme assentamentos estava no mar o Vainqueur, da marinha francesa. Comandado por Julien Listen, o veleiro de aproximadamente setenta metros de comprimento, com três mastros e armado em escuna, onde o segundo mastro, o do meio, é o maior de todos, envergando a sua vela grande, era conhecido pela sua velocidade e poder de fogo.
Defendia as águas francesas no Mediterrâneo, com outros. Mas ele comandava a esquadra na região. O comandante Listen era conhecido por suas habilidades como navegador e excelente estrategista em guerra naval.
Patrulhar as águas acompanhado de navios menores é uma tarefa difícil, mas nada impossível ou fatigante. O Vainqueur tinha dois acompanhantes menores, mas veleiros velozes.
Não haviam entrado em conflito com a marinha de Sua Majestade. Os HMS, como são chamados os navios da marinha inglesa, “Her Majesty Ship”, navio de sua majestade, não andavam aborrecendo no azul e imprevisível mar Mediterrâneo.
O cruzeiro do veleiro francês, que traduzido significa vencedor, foi calmo até que numa noite tenebrosa, quando o mar revoltado, o vento feroz e a chuva que parecia que ia inundar o belo navio castigaram sem cessar a pequena frota.
Já não mais se viam as luzes dos pavios encharcados em óleo, mostrando os bordos dos seus dois acompanhantes. As velas haviam sido reduzidas a áreas mínimas; o Vainqueur estava quase em árvore seca, expressão usada pelos marinheiros quando o mau tempo é tão grande que obriga o recolhimento de todos os panos. E desde esta noite a marinha francesa deu o Vainqueur como perdido. O Mediterrâneo, com a sua calma aparente, havia levado, segundo todos diziam, mais um navio a fundo. Com a sua escolta.
Os anos correram, os séculos se passaram, até que em 1985, uma fragata americana, a Hurricane – furacão – avistou ao longe um navio estranho. O imediato do Hurricane examinou com um possante binóculo. Parecia um navio-escola, destes que formam os oficiais que terminam o curso na escola naval. Mas não se via movimento no convés, e as respostas via rádio não eram escutadas a bordo da fragata americana.
De pronto o comandante deu ordem para o rumo ser alterado. Foram ao encontro do misterioso navio.
Quando o abordaram, foi um espanto geral. Não havia um único homem em todo o veleiro, que mesmo danificado continuava singrando o mar. Seu nome, como de hábito, estava escrito numa placa de bronze colocada na roda de leme. Vainqueur.
Trezentos e treze anos se passaram, e o Vainqueur teimou em continuar sua missão, sem seus marinheiros e o experimentado comandante Listen.
As investigações conjuntas das marinhas norte-americana e francesa nada concluíram. Mandou-se fazer silêncio absoluto sobre o caso.
Mas os marinheiros falam muito, principalmente quando estão em terra e seu estado normal é estarem levemente embriagados.
Foi de um marinheiro destes que eu ouvi a história do Vencedor.
Como ele, em todas as latitudes e longitudes, existem muitos.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

As margens do Sena

Margem do Sena












Lembra dos dias que passeávamos às margens do Sena, mãos dadas, olhando as barracas de livros...
Caminhávamos muito. De tempo em tempo, uma parada para tomar um expresso. Fumava, ah! Como eu fumava. Eram outros tempos, fumar era charme, ninguém era olhado como é hoje quando acende o cilindrinho branco.
Os rouges! Impossível não sentar num café, fosse ele comum ou conhecido, e pedir uma taça de vinho tinto. A freqüência do uso algumas vezes era exagerada.
Descendo as escadas, chegávamos pertinho do rio, onde na margem calcada sempre havia pescadores. Raramente apanhavam algum peixe, as águas estavam muito poluídas. Tanto tempo...
Nosso pequeno apartamento alugado no bairro dos estudantes, não muito distante da talvez mais famosa esquina do mundo: o cruzamento do Boulevard Saint-Germain com o Saint Michel. Lugar famoso, as saias eram curtas, curtíssimas, as moças elegantes, coisa que já não se vê mais. O mundo ficou azul da cintura para baixo, os jeans tomaram conta até dos estudantes chineses. Mas não há o que reclamar, é o tempo atual. Hoje vemos turistas usando bermudas com a maior simplicidade. Naquela época, seriam presos e processados, se antes não levassem uma surra dos parisienses sempre gentis pela frente e bastantes agressivos pelas costas. Não todos, claro. Os jovens nunca foram assim.
Por volta do meio dia, a fome nos fazia procurar simpáticos e movimentados restaurantes, tanto na margem direita, como na esquerda do Sena. Como era barato e prático comer! Todos muito limpos, com a nossa tradicional pedida: o vinho da casa e depois sempre, quase sempre, a mesma refeição. Alface, tomate e agrião, com filé de linguado ou um bife dos grandes. O arroz, tão diferente do nosso! Preparamos um bem melhor. O sorvete de sobremesa.
Caminhar nas ruas de Paris é mesmo diferente de tudo. Respiramos beleza por toda parte. Estudos sérios, quando era a época. Professores os mais exigentes. Tempo era o que não nos faltava.
Saudades. Vamos voltar, nem que seja por quinze dias!

domingo, 14 de junho de 2009

Verdade de todos nós

Leitor












A questão da identidade humana é fato do qual não podemos escapar. Afinal, não conhecendo o que vai dentro de nós, podemos cair a qualquer momento no buraco do desconhecido pessoal, como se fosse o misterioso e terrível “buraco negro” do universo, tão forte que mesmo a luz não consegue ultrapassá-lo. É absorvida pela energia do fenômeno celeste.
E quando caímos neste tombo, a recuperação é difícil. Vai dar muito trabalho.
Não pretendo ser hermético. Não faço o gênero, felizmente. O que pretendo dizer é que se não formos muito honestos conosco mesmo, na hora de escrever principalmente, não vamos ter leitores, seremos os eternos chatos e inconsequentes. Isto é horrível; perdemos nós e se irritam os que nos leem.
Escrever quase sempre envolve ficção, e por muitas vezes, aparentes mentiras bem contadas. Jorge Amado dizia-se um “contador de causus”, quando na verdade revelou segredos da alma humana em todos dos seus livros. O que significa no final: contava casos sim, quem conhece sua obra sabe disto. Acontece que os fatos narrados estavam todos lastreados em profunda veracidade.
O mesmo acontece com João Ubaldo. Numa das suas crônicas dominicais, li a interessante afirmação do talentoso escritor: “não sou um mero contador de casos. Trabalho com carinho meus textos, dou valor às palavras, a forma escrita, tenho cuidado com o idioma.” Repetiu o seu colega baiano...
É preciso orientar-se nestes homens. O segredo do seu sucesso está exatamente nisto, não escrever o que realmente é imponderável, não existe. O texto não convence, é logo abandonado.
Guimarães Rosa nunca falou nas suas obras. Ele as fez, simplesmente. Parece uma ficção exagerada, principalmente no “Grande Sertão: veredas.” Engano dos precipitados. A obra encerra muita verdade do interior mineiro e de fronteiras com o estado. “Viver é muito perigoso... travessia.” “Sagarana”, com o conto “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, era o prenúncio de que muitas obras viriam após. Não vieram muitas, mas o “Grande Sertão” vale por todas as esperadas e sobra...
A razão desta despretensiosa análise é uma só: todos eles conheciam os seus interiores, pelo menos a parte que é necessária para escrever, convencer e agradar. O verbo está no passado, mas Ubaldo está vivo, e bem vivo, para alegria de todos nós. Se ele dá alguma entrevista ao vivo, preparem-se para rir muito e sentir a autencidade do escritor. Ele e Mário Prata já me nocautearam com tanta doideira. Positivamente, não podem andar juntos. O país corre o risco de ir pelos ares!
Escrever sem saber esta parte essencial, o conhecimento do que se diz e passa para o papel, também é muito perigoso...

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A Pedra da Gávea

Pedra da Gávea














Um dos símbolos de São Sebastião do Rio de Janeiro, a pedra da Gávea sempre suscitou histórias e um aglomerado confuso de hipóteses sobre o formato da mesma.
Muito alta e fria mesmo nos dias de verão, no cume que é uma extensa laje de granito, ela possui realmente alguns mistérios. Vista em fotos não apresenta a realidade que possui. Mas quem tem a disposição de chegar ao seu topo, levando um mínimo de acessórios próprios do montanhismo, fica cismado. Se você tem motivos para conhecer de perto o mistério, não se acanhe. Vale à pena.
Nada de levar pesadas mochilas, com lampião e fogareiro. Escolha uns bons e alimentícios sanduíches do seu gosto, água, calça folgada – evite o jeans, atrapalha os movimentos das pernas, salvo se estiver cortado pouco acima dos joelhos. Quem possui um par de botas para caminhada é excelente. Como poucos são dedicados a fazer trilhas, caminhadas em montanhas ou escaladas, não costumam ter este tipo de calçado. Mas o seu tênis serve. Em ambos os casos, meias grossas, para não machucar os pés. Uma faca com bainha, lanterna com pilhas novas e um celular ajudam bastante e não fazem peso em mochila pequena, ou embornal.
A picada, bem aberta e conservada, é íngreme. A subida cansa, e quando se chega à última água, local designado com este nome pelo fato de corresponder exatamente ao termo, pois não há água após este ponto, uma boa parada se faz necessária. A nascente tem uma água com sabor especial. Como? A água não tem sabor? Experimente tomar a que sai da fenda na pedra, gelada, pura, puríssima! Tem uma frescura, um sabor todo especial, você sente que está sendo renovado biologicamente. Trazer para casa estraga tudo. Embora permaneça excelente, não é de nenhum modo comparável ao líquido que brota na rocha.
Durante todo este percurso, flores silvestres com cores exuberantes, cada qual mais bela, você começa a perceber que entrou em outro mundo, o mundo sem calçadas, sem edifícios, sem gente afobada que anda nas ruas... É outro mundo!
O acesso mais fácil é pelo famoso Carrasqueiro. Subida fácil que não merece este nome. É daí que começa o grande espanto. Você tem uma visão privilegiada da famosa face da pedra. Realmente, custa crer que não tenha sido mão humana que fez o serviço. O granito envelhecido pelos séculos tem a cor marrom escura. Na pedra da Gávea, este marrom existe muito, mas na face a pedra é mais clara, bem mais clara. Os olhos são cavernas. O nariz, deformado não se sabe bem qual o motivo. É uma das passagens difíceis de quem quer atingir o cume por este difícil acesso, escalada para experimentados.
Não há quem olhe e cisme. Realmente, parece que a mão humana esteve presente. Esta sensação aumenta quando você atinge o cume, e vê uma espécie de escrita cuneiforme. Dizem alguns que está ligada aos antigos fenícios, e a inscrição, muito antiga pois a rocha é escura, tem os nomes “Tiro”, “Badezir” e mais outros mistérios que envolvem realmente os fenícios. Tiro é nome de uma antiga cidade fenícia.
Segundo consta, ali estaria enterrado um membro da corte real daquele país.
Podemos acreditar nisso?
A resposta certa, não sei dar. Mas que é tudo muito curioso, é.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Brisa

Campo de São Bento, Niterói












A suave brisa soprava vinda do Leste. Tinha o perfume da terra, naquele banco de madeira já envelhecido.
Um parque. Árvores centenárias, testemunhas de namoros, beijos e abraços, confissões de amor, olhares trocados, penetrantes.
Quanta coisa! Planos traçados, casamentos à vista, tudo sob a sombra das árvores que guardam segredos incalculáveis, alguns bastante confidenciais.
Para completar tudo isto, um lago com chafariz, limpo, com pequenos peixes. Ali não proliferam mosquitos, raça impertinente que além de aborrecer, traz malefícios à saúde.
E os canteiros? Todas as cores, difícil falar. As plantas, pior ainda, principalmente para quem é apenas um admirador, e não um conhecedor. Distinguem-se somente as grandes vitórias-régias na superfície do lago.
Um lugar encantado? Talvez sim. O parque antigo foi feito pelo homem, mas é difícil imaginar quem guiou seu pensamento, quem plantou as árvores, não tem tabuleta indicando nomes, tem apenas um marco de concreto, visivelmente novo e colocado muito após o parque ser construído.
Crianças fazendo brincadeiras criativas. As crianças... Na sua suposta e presumida inocência, são seres que colocam o adulto consciente a pensar.
Puras, autênticas, espontâneas. Parece que o mundo seria bem diferente, se todos os adultos ainda colocassem para fora a criança que têm dentro de si. Exagero? Nunca. A alma infantil é pura, ainda não contaminada com as disputas, o preconceito, a gana pelo poder, seja material, intelectual ou mesmo os dois.
Quando consegue sua liberdade desta educação que mata a pureza, o homem torna-se artista. Em qualquer atividade, sem distinções. Alguns, não muitos, tornam-se artistas mesmo. Sentem e sabem expressar o que vai dentro d’alma.
Enquanto isso, a suave brisa continua soprando. É a brisa da Vida, é o vento do desconhecido que coloca as cabeças mansas, próximas umas das outras, próximas da Vida.
Sopra, brisa. Continue soprando.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Nico Esteves

Lágrima












Em qualquer lugar desta terra onde vivemos, têm tipos que são marcantes.
Nico Esteves, um homem que nunca se conseguiu saber de onde veio, era um tipo desses.
Para começar a doideira toda, ele já tinha o nome. Seu pai, que foi faxineiro de um laboratório, colocou no menino o nome de Arsênico. Os oficiais do registro civil, na época, pouco ou nada sabiam de nomes que devem ser recusados. E na sua certidão de nascimento consta mesmo o nome do veneno conhecido pela sua propriedade letal.
O garoto só foi descobrir isto quando entrou para a escola. O professor, um antigo ferroviário que tinha sido aposentado por causa de uma tuberculose grave, desta que o povo gosta de chamar de galopante, ficou muito surpreso quando viu tal nome na lista de alunos.
- Por que tem este nome, rapaz?
- Sei não, professor. Mas é diferente e bonito, o senhor não acha?
- Acho coisíssima nenhuma. Você sabe o que quer dizer seu nome?
- Não senhor. O que é?
- Venha cá – o mestre não queria expor ao ridículo o pobre do garoto, e falar alto, com toda turma ouvindo, sobre a barbaridade daquele nome. Contou-lhe o significado, baixo, sem que os outros ouvissem. Naquela época, nem é bom pensar em processo judicial para alteração do nome, ainda mais naquele lugar distante de tudo. O professor encarregou-se de nomear o guri. Abreviou para Nico, que parecia um apelido. Esteves carregou para o resto da vida o novo nome.
Fez um brilhante curso primário, era inteligente e a deficiência do ensino no velho galpão de madeira, com teto de folhas de amianto. Até hoje, no interior, são assim as escolas. Não possuem nada, nem mesmo professor fixo. Alguns abnegados, que tiveram a oportunidade de estudar e completar o curso ginasial, o que já é um fato bastante raro, guiados por mão superior, talvez divina, sentem pena daqueles pobres coitados abandonados de tudo.
A prefeitura do lugar, se é que este canto tem prefeitura, fica encarregada de arranjar o local para acomodar os alunos. Concurso para ingresso no magistério? Ninguém sabe o que é isto. Quem sabe ler melhor do que os outros habitantes e está disposto a dedicar-se a tarefa de ajudar, assume o cargo, quase sempre sem ganhar nada por isto.
Este é o sertão, o interior que o povo não conhece nem imagina.
Nico continuou seus estudos. O antigo ferroviário tinha amigos na cidade grande, que não era tão populosa. Tinha lá seus quinze mil habitantes, se tanto. Mas o importante é que conseguiu uma vaga num ginásio público, onde o ensino não era exemplo para escola nenhuma, mas também não era uma escolinha tico-tico. Nico estava, nesta época, com treze anos de idade, e como não morava mais com os pais – a escola era distante da sua casa uns bons vinte quilômetros, arranjou um emprego numa padaria da cidade, que tinha muito poucas outras fornecedoras do alimento que nem sempre é o café da manhã de muitos. Serve também como um bom almoço, acompanhado de peixe, em lugares que têm rio ou mar.
Não é preciso dizer que tão logo Nico aprendeu a fazer pão. Josias, sempre com as mãos cuidadas e limpas, não se incomodava em ensinar como era feito um pão de qualidade, mesmo a farinha não sendo especial.
Um professor de Nico resolveu o problema do nome do rapaz. Era amigo do juiz, e sem processo mesmo, conseguiu que o nome Arsênico fosse mudado par Nicodemus, por escolha do próprio esforçado aluno.
O tempo passou, Nico sem problemas obteve seu grau de ginásio, tinha amealhado um dinheirinho bom, pois não era de muitos gastos e fazia com Josias, seu mestre-padeiro, doces e outros quitutes para moradores locais, pagando ao dono da padaria uma parte dos ganhos.
Foi visitar os pais, levando presentes da cidade grande. Mas o orgulho mesmo era o diploma de conclusão do curso ginasial. Pai e mãe estavam orgulhosos do filho, que os surpreendeu fazendo o almoço. Farinha de milho é comum nas casas. Mas o paio e o queijo mussarela, que Nico havia levado também, fizeram uma polenta maravilhosa. Tanto Honorato, como Quitéria, pais de Nicodemus Esteves, ficaram admirados com as qualidades do filho.
Nico não queria parar. Havia feito força, e conseguira o que queria. Agora era continuar e chegar à faculdade. Ainda não decidira sua futura profissão, mas gostava de livros e leituras, e tudo indicava que estudaria Letras.
Mais uma vez a sorte sorriu para ele. O juiz, aquele que tinha mesmo sem processo autorizado a mudança de nome, conseguiu uma vaga no secundário estadual, que Nico completou sem dificuldade.
Conheceu, na escola, uma bela moça. Ligia, era o seu nome. Em pouco tempo consolidou-se um namoro sério, ambos estavam apaixonados e pretendiam casar-se. Estudavam muito, e juntos fizeram o vestibular, agora em outra cidade. Por causa da sua habilidade com massas, Nico continuou trabalhando numa padaria, mas não era mais balconista. Em pouco tempo dirigia a parte de refeições ligeiras, uma das especialidades da casa.
Tanto ele como Ligia conseguiram passar sem muita dificuldade no vestibular. Ela não precisava trabalhar, o pai tinha como sustentá-la.
Moravam numa república, homens bem separados das mulheres. A cada dia que passava, o futuro do jovem casal era mais promissor. Ambos estavam fazendo o curso com muito brilhantismo, eram queridos e elogiados pelos colegas.
Numa tarde que estava cinzenta, e prometia chuva forte para a noite, Nico voltava do trabalho, rumo à república, onde pretendia tomar um bom banho. Caminhava devagar, sem preocupações, quando viu um aglomerado de gente. Foi ver o que era. Todos os presentes estavam revoltados.
Nico perguntou a um homem o que tinha havido, quando percebeu, antes da resposta, que o corpo caído e coberto com uma folha de nylon preta, estava com uma sandália marrom que ele conhecia bem.
Trêmulo, suando e sem saber do que se passava, levantou a parte da coberta onde estava o rosto. Ligia dormia o sono que ninguém acorda. Tinha sido atingida por um tiro dado por um confronto entre policiais e traficantes.
Nico e os pais da moça despediram-se com flores, na manhã seguinte.
Nunca mais ninguém soube onde ele se encontra.

terça-feira, 2 de junho de 2009

A casa do bruxo

C.G. Jung


















Existe em Bolligen, uma espécie de distrito de Saint Gall, Suíça, uma construção em pedra, em forma de círculo com uma torre no meio.
A respeito dela, contam-se muitas histórias. Umas baseadas na fantasia de todos nós, outras em fatos concretos.
Começou a ser construída em 1923, e lentamente foi ganhando forma. Um só homem a desenhou, e fez quase todo o trabalho da construção.
Estranha idéia! Mas o autor desta incrível proeza era um bruxo, um bruxo sábio, um bruxo erudito. Escreveu que “minha vida foi singularmente pobre em acontecimentos exteriores. Sobre estes não posso dizer muito, pois se me afiguram ocos e desprovidos de consistência. Eu só posso me compreender a luz dos acontecimentos internos. São estes que motivam a fecundidade da minha vida e é dela que trata minha autobiografia.”... Memórias, C G Jung
Após exaustivo trabalho, ficou pronta em 1955.
Não tem água encanada. Desconhece a eletricidade. A água vem dum poço, com bomba manual que o bruxo bombeava, como cortava lenha para a lareira, calefação e forno da cozinha, onde ele mesmo preparava suas refeições.
Na torre, o escritório indevassável. Ninguém penetrava sem a sua expressa autorização.
Qual o homem de hoje que no seu retiro – e lugar de profundo trabalho – toma conta da água, do fogo, da refeição, do trabalho e do lazer?
É preciso grande desenvolvimento espiritual para concatenar estas tarefas.
Mas o bruxo de Bollingen não só possuía estas qualidades, como era capaz de desenvolver idéias que se transformaram em livros.
Carl Gustav Jung nunca foi um simples mortal. Muitos o dizem analista. Poucos sabem que, antes de tudo, foi um homem completo, capaz de entender a si mesmo e aos seus semelhantes. Todos falam do seu conhecimento, da sua erudição, mas poucos tiveram o prazer de ir até o fim de um dos seus livros “O homem à procura de sua alma.” Um filósofo, um erudito, um bruxo de magias certas, beirando às equações matemáticas, talvez o seu único pecado, pois afirmava detestar e não compreender a Matemática, a única ciência que abre as portas ao conhecimento exato. No entanto, como a Vida não é exata, esta falta de conhecimento não lhe fez falta.
Segundo tudo indica, a psique humana e o homem em si mesmo nunca foram tão bem observados. O velho bruxo, um dos aspectos da mão Divina, não deixou muitas lacunas.
É fato conhecido por todos os seus chegados, parentes e alunos, que quando morreu um raio cortou na mesma hora uma grande árvore da sua casa, em Zurique.
Na casa de pedra, em Bolligen, tem a inscrição , por ele mesmo entalhada, “Invocado ou não invocado, Deus está sempre presente.” Esta afirmação não é dele. Igualmente, encontra-se esculpida no Oráculo de Delfos, da antiga Grécia.
Os mistérios, nem sempre, são inatingíveis ao ser humano.


Dedicado à memoria de Alice Marques dos Santos, minha tia e madrinha, que teve o privilégio de ter sido aluna de Jung.