sexta-feira, 31 de julho de 2009

Tradição brasileira

Zé do Norte


















Gosto e estudei muito a mais autêntica forma de expressão do povo, quando faz poesia: a trova. Já falei no assunto, mas não canso. Trovador famoso foi Zé do Norte, autor de duas trovas cantadas por Vanja Orico que ficaram imortalizadas no filme O Cangaceiro, obra celebrada do cinema nacional. Gilberto Gil também canta as duas, encaixando muito bem em música do seu repertório.

"Me arrenego de quem diz
de que o nosso amor terminou,
ele agora está mais firme
de que quando começou."- Zé do Norte

"Os olhos da cobra verde
só agora que reparei,
se tivesse visto antes
não amava quem amei."- Zé do Norte


Zé do Norte era o apelido de Alfredo Ricardo do Nascimento (1909-1979), nascido em Cajazeiras, PB. Cantor, compositor, poeta, folclorista e escritor é um dos trovadores brasileiros de maior expressão. Faleceu no Rio de Janeiro.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Aldeia de pesca

Aldeia de Pescadores / di Cavalcanti













Tão logo surgem os primeiros raios de Sol, anunciando o dia, as casas simples, construídas perto uma das outras, demonstram movimento.
A fumaça indica que o fogo está aceso. Fogão de lenha; o gás é insosso, não transmite sabor ao feijão catado e escolhido, de molho na véspera. A velha panela de barro, curtida antes de ser usada com toucinho bastante esfregado na sua parte interna, e levado ao fogo até a camada penetrar no barro, ritual de três dias, no mínimo, começa a ser preparada para ir para o fogo. A do café, já tem água fervendo.
Não demora e vai sair um odor que o vento, ainda terral, leva ao oceano, partes distantes, um delicioso convite.
Está na mesa. Café, pão feito em casa, socado, batido, amassado e feito com muito carinho, como todo o resto da comida. Mortadela e margarina, dura mais do que manteiga. Alguns homens tomam meio copo de cachaça, depois da farta comilança. Se tiver banana, melhor não misturar com a branquinha que Aristeu produz com carinho. Lembranças do tempo em que trabalhou numa fazenda famosa, lá pelos cantos do sertão. Alambique de barro, coisa rara. Não envenena a maldita com os inevitáveis sais de cobre, que enjoam e dão dor de cabeça.
Estão prontos. Canoas e barcos robustos vão ao mar, arrastados pela areia afora, pela força dos pescadores. Rede tratada, forte, no caldo da aroeira, que transmite a cor siena queimada. Vão com fé. Todos já rezaram, pedindo a proteção de São Pedro.
E é rede no mar, canoas cercando, canoas puxando, peixes bons, outros nem tanto, depois de puxado o arrastão. Escolhem alguns para levar para casa. Muitos outros o carro frigorífico leva e paga na hora ou no fim da semana, depende do trato.
É o cotidiano de quem trabalha no mar, garantindo o nosso peixe.
Têm outros. Embarcados em traineiras, razoável conforto e muito trabalho, passam, por vezes, uma semana no mar. Trabalho duro para geralmente cinco homens, que nos asseguram tão bom alimento.
Nada parecido como os que andam de paletó, gravata, e grifes famosas.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

A realidade do tempo

A persistência da memória / Salvador Dali











É muito comum encontrarmos pessoas que gostam de falar dos tempos.
A maioria sempre se refere ao tempo passado e lastima o presente. Compreende-se. O mundo atual é o da corrida contra o relógio, corrida contra o tempo. Todos têm a obrigação de serem vencedores em alguma arte ou ofício. Os saudosistas lembram o tempo do viver mais descansado, que é o certo, dos costumes da época mais rígida, que evitava um comportamento irregular, como o consumo de drogas pelos jovens, por exemplo. A vida era bem mais calma, é uma verdade. Mas tudo tem seu lado bom e o outro negativo. Nos tempos passados, um mal-estar cardíaco era uma ameaça quase fatal. Hoje coloca-se um extensor numa passagem obstruída e dificilmente a ameaça morte persiste.
Continuar com uma lista de exemplos cansa. Mas podemos notar que a vida de trinta, quarenta anos passados, seria bem melhor se contasse com os recursos de hoje. Não falo da televisão de plasma, que apresenta sempre as mesmas coisas. Levar cadeiras para calçadas e manter longas conversas, sempre com um cafezinho, licor caseiro e falar, geralmente mal, da vida dos outros, era bem mais prosaico, sem dúvida. Não vi isto, salvo em lugares do interior, que costumam guardar seus hábitos.
Depois do café, acendiam cigarros com o fumo mal lavado. Ora, é claro que todos fumavam, inclusive o médico. E tome conversa fiada, contavam-se lorotas enquanto as estrelas davam beleza ao lugar.
Hoje a poluição das grandes cidades ofusca o brilho de estrelas mais fracas, não há cadeiras nas calçadas – imagine! – e o cigarro não faz parte dos hábitos modernos, felizmente.
Os tempos mudaram, não para pior. Mudaram porque esta é a evolução da Vida, que não sabemos onde vai parar. Isto é bom. Viver o momento do aqui e agora, aguardando as surpresas futuras, agradáveis e não. É bom lembrar que Bem e mal andam sempre juntos.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

A calma da noite

  Balada










Tudo silêncio. Não se ouvia a barulheira infernal das cidades.
O mundo mudou para pior, bem pior. O desrespeito pela sociedade parece ter tomado conta de tudo. Não parece, tomou mesmo.
É só aqui? Todos fazem a pergunta. Não. O mundo caminha por trevas. Estas vias obscuras parecem ter tomado conta em definitivo do poder.
É o crack amaldiçoado, o sintético químico que mata aos poucos, sem ninguém perceber. O ecxtasy arrebenta tudo, corpo e alma. Mas tem cada vez mais adpetos, que não tomando conhecimento da acumulação progressiva no corpo, usam indiscriminadamente a droga que deixa a boca seca.
É o mundo que se vive hoje, não por todos, mas por minoria que pode contagiar. Era o que acontecia com o casal que não passava dos vinte e cinco anos de idade. Bebiam água, muita água. Os sensores cerebrais haviam perdido o controle sobre o corpo.
A casa da balada permitia que tal fato acontecesse. Assim é no mundo inteiro. Parece que os jovens, especialmente os que não foram educados com carinho por pais e mães, perdem-se no aparente mundo encantado.
O mundo é assustador e maravilhoso, ao mesmo tempo. Será que é fato de hoje?
Tudo leva a crer que não. O mundo mudou. Impossível saber, se no silêncio da madrugada, estamos descansando, dormindo ou não.

Para muitos, as noites altas são feitas visando o descanso. Muitos, e não são poucos, gostam de aproveitar o período para produzir.
Suave é a noite, de Scott Fitzgerald, é um dos exemplos.
A noite é tranquila. Pode sim, pode não. Afina. É uma questão de gosto. Nada mais.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

O coisa ruim

Soldado














Coisa Ruim é como chamam o capitão Callado.
Saído da Aman moço, aos 23 anos de idade, chegou cedo ao oficialato intermediário. Se era ou não parente de Antonio Callado, autor de uma das obras de vulto da literatura brasileira, “Quarup”, nem ele mesmo sabia. Mas tinha conhecimento do apelido posto, Coisa Ruim.
Havia motivos. O capitão era instrutor de combate armado e desarmado de forças especiais do Exército. Conhecia as mais variadas formas de luta; além de faixa preta de jiu-jítsu, gostava de uma pancadaria selvagem, arruaça mesmo, briga de valentões. Conta-se que um pontapé dele, deste que é dado com a sola, era um coice de cinco mulas.
O capitão Callado era homem ideal para treinar seus colegas e subordinados. O comando, logo que percebeu isto, aproveitou-o mandando como instrutor de combate não convencional, mas muito usado em todas as tropas do mundo.
Coisa Ruim não era do tipo forte malhado. Seu corpo, muito musculoso e definido, não era como os tipos idiotas que vemos hoje. Verdadeiros tanques de guerra, mas incapazes de outra coisa que não seja musculação.
Ensinava bem; seus alunos gostavam dele, mas sabiam que um leve desleixo poderia ter sérias conseqüências. O homem era bravo demais. E brabo também.
Um deles contou-me uma das suas proezas. Coisa Ruim era também famoso pelas suas atitudes que autorizam o seu apelido. Gostava de ensinar o perigo de alguém armado aproximar-se muito do inimigo, ou vítima. Se a arma estivesse muito perto, e ao alcance da sua mão, o oponente estava morto. A defesa não é difícil, mas necessita muito sangue frio e coragem.
Não se olha para o adversário; este ato vai denunciar o contra-ataque. Não faz diferença se a arma é revólver engatilhado, pistola idem, e rifle também. Um gesto rápido das mãos do agredido desvia a arma e quebra o dedo indicador de quem a aponta. Eu mesmo já fiz a experiência repetidas vezes. Nunca deu errado!
Muitos duvidam. Perguntem a um professor de lutas, e esperem a resposta. Se o atacante estiver próximo das suas mãos, é dedo quebrado, arma tomada e risco de vida, dependendo do oponente.
O capitão Callado, o Coisa Ruim, morava sozinho num apartamento de dois quartos, na Rua Siqueira Campos, Copacabana, Rio de Janeiro.
Numa fria madrugada chuvosa, uma patrulha da PM encontrou o corpo de um conhecido assaltante da área. Tinha só um tiro, na nuca. Naquela noite, a esta hora, Callado estava tomando uns chopes com amigos.
Dormiu feito um anjinho, acordou, fez o seu café e rumou para o Centro de Instrução.
Passados alguns meses, Callado sumiu. O Coisa Ruim, assim como aparece, some!
Dizem, eu não sei até onde isto é verdade, que a valentia e o sangue frio dele terminaram com o casamento de uma linda moça. Cabelos dourados, olhos de mel suplicando sexo.
Como o Bem e o mal estão sempre presentes, não sei o que aconteceu.
Mas que o capitão deu aquele tiro de 380 milímetros, a arma do assaltante, deu...

domingo, 12 de julho de 2009

O neto de Joca Ramiro

Sertão












Embora muitos não tenham lido Grandes Sertões: Veredas, do mestre Guimarães Rosa, sabe-se que muitos personagens seus existiram.
Joca Ramiro é chefe jagunço, e seu bando, poderoso. O imortal só não contou, faleceu antes disso, do seu neto, Carlos Ramiro, mas que conseguiu trocar o nome e sobrenome. Fato compreensível e natural. Ninguém quer carregar um nome tão pesado, ser conhecido como neto de jagunço que aparece no romance como um dos principais elementos, figurante de destaque.
Joca Ramiro tinha um filho. Raul, que pouco ou nada devia ao pai. Terminada a guerra de jagunços nos sertões mineiros, assentou-se numa fazenda e mantinha razoável criação de bois, quase todos comprados e alguns furtados. Enricar não teve tempo; a doença não permitiu. Mas ganhou bom dinheiro. Com quinze anos, Raul era sombra do pai, conhecia bem os negócios e a fazenda. Aos vinte anos, tomava conta de todos os negócios, enquanto o pai sofria com o reumatismo, mal podendo andar. Assim mesmo, montava e jamais abandonou o Nagan quarenta e quatro, conservado e sempre limpo, era uma das armas favoritas , o temível, o treme-terra conforme é descrito com maestria.
Até aí, nada demais. É fato costumeiro, onde as bocas permanecem caladas por cautela, os bandos não mais existem, mas os herdeiros não são menos perigosos. A boca só se abre bem para contar velhos causus, todos passados naquelas terras e proximidades. Toca a viola, muitos são bons, corre a cachaça de primeira ordem, fabricada e envelhecida lá mesmo, onde a disputa pela de melhor sabor é acirrada. Carne seca assada no braseiro, aipim, e tome lorota. Mas nada de meter-se na vida alheia: o risco é grande. Pior ainda é bandear-se de gracinhas com as mulheres. Esse não escapa.
Um velho e experimentado comprador de Carlos Ramiro, o neto do temível, o ferrabrás, quis ter um particular com o novo chefe da região. Carlos não se fez de rogado. Sabedor das astúcias do homem convidou-o a jantar. Coisa para ninguém botar defeito. Canjiquinha, feijão com arroz e torresmo, couve cortada fininha, farofa de linguiça e todas as honras da casa. Mais novo, o neto de Joca Ramiro tinha tomado o comando dos negócios.
Nesta conversa, após o jantar delicioso, não teve cantorias, nem vizinhos, nem nada. Apenas os dois, no alpendre confabulavam.
- Você não é político, Carlos.
- Qual, isto não me interessa!
- Interessa por demais. Tem estudo. O diploma comprado foi mais uma idéia formidável do seu pai.
- E daí?
- Daí que você pode ser eleito com facilidade por este povo. Deputado federal, não fazemos por menos. Além de nos defender, fica muito mais rico.
Isto faz alguns anos. O antigo deputado, hoje senador, honra o nome do avô, Joca Ramiro. É um bandido perfeito.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Madrugada

Pistoleiro













Não ligava para o frio. Mãos no bolso da japona de lã, gorro azul na cabeça, combinando com o agasalho, caminhava decidido.
Existem poucas armas que se comparem com a Walther P.38. Qualquer arma de fogo mata, mas esta parece a mais assassina de todas. Talvez pelo fato de ser usada por oficiais nazistas, que treinavam tiro nos judeus.
Era um profissional do crime, fora contratado para matar uma mulher.
Acompanhou seus passos, dia-a-dia. Conheceu os lugares que frequentava, seu modo um tanto audacioso de dirigir a Porsche. Já havia, há muito reparado no seu corpo, no seu entender, perfeito.
O homem que o procurou era um destes idiotas que pensam no dinheiro e na ostentação. Errou, exibindo a mulher, alguns anos mais nova do que ele, a todo o grupo que fazia parte. Existem lobos rapaces, sempre procurando carne nova. Foi o que exatamente aconteceu.
Uma amiguinha do idiota contou a história toda, naturalmente querendo a sua parte.
O homem viajava muito, a negócios. Sempre que isto acontecia, a mulher era literalmente devorada por um também idiota conhecido do seu cônjuge.
Isto é comum. Mas o matador não estava interessado em fatos comuns, ou morais. A quantia acertada garantiria um bom conserto na sua casa de praia, em Piratininga, distrito de Niterói.
Ela saltou do táxi, em frente ao edifício do amante.
O antigo sargento paraquedista, expulso da força por motivos de maus tratos aos seus subordinados, tendo ferido um gravemente, e suspeito também de desviar munição para vender aos traficantes, penou no presídio.
Queria recuperar o tempo perdido.
A mulher chegou na hora certa, conforme ele havia previsto, Entrou no edifício com o carro, conforme o costume, e pegou o elevador que a conduziu ao sétimo andar.
Fechaduras são fáceis de serem abertas. Para quem sabe.
Quando entrou, ela estava nua, sendo mexida e tocada pelo outro idiota que encontrara. O combinado era matar os dois.
Mediante um acordo rápido, conseguiu do idiota preço assustador; ninguém quer morrer de graça.
Hoje moram juntos, ele e ela na maior harmonia. Jamais quis saber de outro homem: seu matador havia se transformado no mais querido amante.
Estas coisas acontecem, e no submundo da vida, são muito comuns.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Quero amar você

Amor














Jovem ainda, com 28 anos de idade. Rosto e corpo perfeitos.
Mas nada interessante os distúrbios característicos da mulher. Sangue em hora errada, às vezes em demasia. A consulta ao ginecologista foi imediata. Tumor maligno no útero, histerectomia feita. Tratamento quimioterápico. Com suas consequências. Perda dos lindos cabelos dourados, emagrecimento, mal estar. Mas ela resistiu bem. Aparentemente, os sintomas cessaram.
Voltou à vida normal. Era modelo de lingerie há dois anos. Razoável nas passarelas, quando engordou um pouco e uma firma famosa fechou o contrato. Uma das mais belas apresentadoras de peças íntimas.
Cada um tem o espaço que merece. Ela não tinha nada o que reclamar, profissionalmente. Mas por dentro, o sangue jorrava. Não poderia mais conceber, e o cretino do marido deixou-a, por este motivo.
Continuou firme, já havia passado por casos piores. Colocou os do sexo oposto como ingratos e aproveitadores. Viveu assim algum tempo. Morava sozinha, apartamento pequeno, mas enfeitado por mãos carinhosas. Dava gosto ver o que a bela modelo havia feito e transformado.
Não era rica. Mas o que conseguiu amealhar comprou sua casa, em poucas prestações e o carro. Era o que bastava, as amigas estavam de acordo. Como vinha de cidade do interior, sabia usar o fogão com arte, embora a maioria das vezes, em virtude do trabalho, alimentava-se fora.
Gostava de boa leitura, assim como da música. Como a história está escrita, o maktub dos árabes, conheceu numa livraria um entendedor pouco mais velho. De nada considerou as idades. Sempre teve vontade de ler O Velho e o Mar, mas nunca encontrou o mais belo livro escrito nestes últimos séculos. O homem, que talvez pudesse ser seu pai, ouvindo sua conversa com o vendedor, delicadamente disse que teria o maior prazer em emprestá-lo.
Nasceu daí uma bela união de espíritos, que sem muito tempo se transformou num belo amor recíproco. Combinaram cada um morar na sua casa. O que não valeu muito; estavam ambos apaixonados.
O que seria da vida se não fosse o amor? O fato é que se amaram muito. Até que um dia, no delicioso café matinal, onde não faltavam frutas e queijos, veio a confissão. Abraçados fortemente, fizeram um pacto de amor eterno. Em três meses, ele segurando a mão firme da amada, numa cama de hospital, escutou a frase final.
- Quero viver. Quero amar você!
A mão fez-se fraca. Aos poucos, a amada morria.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Caminhos longos

Abrigo 4, Pedra do Sino













O prazer de escalar montanhas é grande. Existem muitas pessoas que têm verdadeira paixão pelo montanhismo, palavra mais adequada para escaladas e caminhadas, leves ou pesadas, no nosso país. Afinal, alpinismo, como muitos falam, é a prática deste saudável esporte nos Alpes, embora o termo seja usado por todos.
Deixando a nossa complicada língua portuguesa com suas regras rígidas e convenções que servem para atrapalhar, num grande número de casos, tanto faz falar em montanhismo ou alpinismo, já que esta última foi consagrada pelo uso. O mais importante é praticar este esporte, desconhecido pela massa, que confunde escalada com subida em montanha. Esta mania de querer explicar tudo torna as coisas chatas. Mas escalada é quando a pessoa atinge o cume das montanhas usando cordas, mosquetões e grampos. Corda todo mundo sabe o que é. A empregada nas escaladas, há mais de quarenta anos, é de seda de nylon, macia, capaz de suportar pesos incríveis e não é pesada, nem endurece quando está molhada, como a velha e tradicional corda de cânhamo ou de outra fibra, como o sisal.
Mosquetão é peça indispensável no montanhismo. Nada mais é do que um artefato feito em alumínio especial, com forma retangular e circular nas extremidades. Possui um mecanismo simples, que permite a abertura de um dos lados com facilidade, e o trancamento também. É uma forma bastante melhorada dos prendedores metálicos existentes na ponta das guias para conduzir cães, e usada do mesmo modo: abre-se a peça e coloca na argola que existe na coleira. O fechamento por pressão é automático, em ambos os casos. Difere apenas no mosquetão, que é trancado por uma mola, enquanto o mosquetão das guias para os cães fecha pela força do próprio metal, que reage a abertura e volta ao normal por conta da propriedade dos metais, sem auxílio de mola.
Restam poucos instrumentos usados nas montanhas brasileiras, como o grampo, que nada mais é do que um prego grande, bem maior dos que usamos, mais grosso e tem uma argola de aço numa das extremidades. A argola serve para encaixar os mosquetões, que darão segurança ao escalador, pois ele está sempre com um cinto de proteção, do qual sai uma pequena corda com um mosquetão na outra extremidade, e que vai à argola do grampo. Por sua vez, este é fixado solidamente na pedra, trabalho que cansa qualquer um, bem mais do que acompanhar toda esta explicação necessária. Se não desistiu de ler, além de ter aprendido na teoria como se tem segurança e como se faz uma escalada, a coisa fica mais amena, a cabeça não faz esforço para pensar em tanta explicação que, afinal, não faz diferença alguma neste fato que vai ser contado.

Nos idos tempos do ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1966, dois jovens adeptos do montanhismo decidiram fazer a travessia entre as cidades de Petrópolis e Teresópolis, numa longa e cansativa caminhada que existe entre as montanhas da Serra dos Órgãos.
O caminho na montanha alta – aqui sempre com mais de dois mil metros de altitude – é um prazer quase indescritível.
O ar é puro, a pessoa respira com prazer, os pulmões agradecem e o resto do corpo e mente também. A mata fechada que caracteriza esta travessia esconde belezas que normalmente o homem não está acostumado. O ar é frio, mas sem agredir quem está caminhando com pesadas mochilas. Durante a noite, pode-se dormir em abrigos, mas geralmente quem faz a travessia não tem tempo de alcançar o abrigo três, que fica na Pedra do Sino, em Teresópolis. Invariavelmente, todos preferem partir de Petrópolis, subir a picada que leva ao cume da montanha ou pegar algum atalho, nome que se dá aos caminhos mais curtos e mais difíceis de serem vencidos, por serem bem mais íngremes do que o caminho comum.
Durante todo este tempo, sente-se o frescor da montanha alta, o silêncio da floresta de árvores centenárias, abreviado, por vezes, pelo canto de algum pássaro. Por causa da altitude, muitas vezes nuvens mais baixas invadem o caminho, quando ficamos molhados pelas gotas d’água que elas contém. Mas é um prazer renovado; não se está caminhando na neblina, encontrada ao nível do mar, mas de nuvens. Quando são muito densas, tornam a visão um pouco prejudicada, mas isto é difícil acontecer.
Todo o resto é cautela para não pisar em alguma cobra, fato raro, pois elas somem quando escutam o barulho que fazemos. De resto, é sentir um mundo belo, calmo, de árvores copadas e muito altas em determinados trechos, olhar com curiosidade plantas que não conhecemos, muitas delas com flores exuberantes no colorido e na forma, típicas da alta montanha.
Durante quase todo o percurso escuta-se o agradável som de água que corre em pequenos riachos, descobrem-se minas que jorram sem cessar uma água puríssima, fria e gostosa de ser bebida.
Caminhar com a mochila pesada cansa. É quando sentamos no chão e procuramos alguma coisa para comer, geralmente fatias de salaminho ou lingüiça defumada, cortada com facas amoladíssimas, que sempre estão nos cintos dos montanhistas. Existem dois utensílios que não podem faltar nunca na tralha de quem se mete floresta adentro. Uma é uma excelente faca de campanha, com bainha. Outra é a lanterna de confiança, com pilhas novas e sobressalentes bem guardados na mochila. Hoje em dia, um celular pode ser de extrema necessidade, mas não é sempre que ele consegue alcançar uma antena repetidora, que vai possibilitar a comunicação.
Estas pequenas pausas, tanto para dar um pequeno descanso, como para se repor as calorias perdidas, com as fatias dos embutidos e pão, têm uma espécie de ritual. Não se costuma falar mais do que o necessário. Come-se em silêncio, enquanto as mochilas saem das costas molhadas pelo suor, por mais frio que esteja fazendo. Os mais precavidos levam sempre uma pequena manta, que colocam nas costas e esperam o suor secar, coisa rápida. Muitas vezes um gole pequeno de conhaque é bebido, mas alguns não gostam de beber enquanto estão fazendo esforço. Refeitos, é colocar a mochila nas costas e continuar desfrutando do enorme prazer que é sentir no corpo e na alma o ambiente tão calmo e acolhedor, embora temido por muitos. Temido porque nunca subiram uma alta montanha. Ter medo de escalada é normal, mas caminhar na mata fechada não assusta ninguém que esteja fazendo isto.

Era o que estavam fazendo Ivan e Alexandre, dois jovens Aspirantes da Escola Naval. Não estavam treinando. Faziam, há muito tempo, escaladas não muito difíceis e longas caminhadas pelas montanhas que existem no Estado do Rio de Janeiro.
Não se arriscaram em tentar atingir o abrigo três, da Pedra do Sino, pois haviam iniciado o percurso partindo de Petrópolis. Antes de escurecer já o terreno do acampamento onde iriam passar a noite estava limpo, o buraco feito no chão cavado e cheio de galhos secos e pequenos pedaços de tronco de árvores que se encontravam pelo chão. Garantiria o fogo de toda a noite, não em chamas, mas queimando em brasas. Foi nele que preparam a sopa de pacote, acompanhada por mais salame e pão. Depois, embora dê trabalho, nada como um bom café com uma farta dose de conhaque. Naquela época, o cigarro não era visto como hoje, um maldito veneno. Quase todo jovem fumava. Acenderam seus cigarros enquanto bebericavam o café e o conhaque, conversaram em voz baixa e tão logo estavam dormindo na pequena e muito protetora barraca de nylon, metidos em aconchegantes sacos de dormir. Foi um sono profundo e reparador.
Acordaram muito cedo, cada um procurou seu canto para aliviar os intestinos, lavaram-se num pequeno córrego, um fiozinho d’água, e continuaram a caminhada, após terem desmontado o acampamento e jogado no braseiro a terra que estava acumulada ao lado.
Seguiram caminho, após um farto café da manhã. Enganam-se os que pensam que não é possível uma boa refeição numa mata fechada. Quem tem experiência, sabe perfeitamente escolher um bom queijo que não se deteriore com facilidade, um leite condensado ou mesmo uma lata de leite em pó, pão integral, salame e café. Foi o que comeram. Depois, passaram uma flanela nas Colt. 45 da Escola Naval. Tinham permissão para isto; eram alunos do último ano e talvez os melhores competidores de tiro da Escola.
Por volta do meio-dia, atingiram o abrigo três, da Pedra do Sino. Este abrigo é velho e estava aos pedaços, interditado. Foi reconstruído e é uma excelente pousada na montanha. Um montanhista experimentado atinge o cume da Pedra do Sino, a partir do abrigo, em menos de meia hora.
Para a agradável surpresa de Ivan e Alexandre, havia um grupo de vinte bandeirantes, que estavam ocupando o abrigo. Todas se espantaram quando viram as pistolas nos coldres de couro cru com aba protetora, usados pelas forças armadas. Identificados, passaram a ser vistos com ótimos olhos e foram convidados para almoçar o bem feito angu com linguiça e queijo parmesão. E ovos cozidos, um verdadeiro banquete na selva. Em frente ao abrigo tem um descampado de bom tamanho. Os dois, metidos em sacos de dormir e na sombra, só acordaram às quatro horas da tarde, efeito do cansaço, do farto almoço com as bandeirantes e da boa dose do conhaque.
Combinaram com a chefa das bandeirantes que dormiriam no descampado, já que o abrigo estava todo ocupado. A intenção deles não era esta. Tinham planejado antes fazer uma rápida refeição no abrigo, levar o mínimo necessário, alcançar o topo do Sino e voltarem direto, até a sede do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, onde dormiriam no acampamento base e no dia seguinte voltariam para o Rio, de ônibus.
Mudaram de idéia quando encontraram as bandeirantes, resolvendo ficar. Ivan tinha machucado a mão e fez um curativo que já estava na hora de ser trocado. Coisa simples, mas nunca é demais cuidar destes pequenos ferimentos, que podem acabar se transformando em coisa séria.
Uma das bandeirantes perguntou a ele o que era aquilo. Ivan mostrou o ferimento, estava mesmo na hora de fazer novo curativo.
- Deixa isto comigo, rapaz. Sou a médica da turma. Eu faço o curativo.
Ivan não pode deixar de ver os belos olhos verdes, o rosto simpático da moça, seu interesse. Em pouco tempo, a bandeirante que não era médica, mas tinha todo o jeito de ser, inclusive pela caixa de aço inoxidável que trouxe, onde tinha todo tipo de pinças, tesouras e até mesmo fio de sutura, fez o cuidadoso curativo na mão do paciente.
- Pronto, rapaz. Não vai infeccionar, garanto.
- Muito obrigado. Ia pedir ao meu amigo para fazer isto, mas nada como ser atendido pela médica do grupo.
- Não sou médica. Estudo Letras. Mas sou a mais habilidosa de todas para fazer este tipo de atendimento. Quer café? Acabou de sair.
De fato, o cheiro de café perfumava todo o abrigo, e um bom café seria muito bem-vindo. Chamou o amigo e tomaram uma grande xícara, que havia no abrigo, enquanto fumavam. A chefe das moças veio falar com eles, que estavam na pequena varanda do abrigo.
- Poderiam fumar lá fora, por favor? As janelas já estão fechadas, para ir esquentando o abrigo. Não tem lugar para vocês. Acho que não se incomodam de dormir aí no descampado, pois já vi que são experientes e têm material para isto. Temos temperaturas negativas, nas madrugadas.
- Claro, não há problema algum. Dormiremos lá fora mesmo, e vamos fumar longe daqui – falou Alexandre, que ainda não tinha se manifestado muito.
- Ótimo. Vai ter um Fogo do Conselho durante a noite. Vocês estão convidados.
- Obrigado, Regina. Vamos participar com o maior prazer.
Ivan tinha perguntado a Lúcia, a médica do grupo, o nome da moça que comandava as bandeirantes.
Após uma saborosa sopa que parecia conter todos os ingredientes de uma cozinha dentro, descansaram e aguardaram a hora do Fogo do Conselho.
Para quem não conhece, é um hábito tradicional entre escoteiros e bandeirantes. Uma fogueira é acesa, e em volta dela fazem orações, recitam versos, comentam o dia e cantam. Os dois amigos viram uma bandeirante com um violão.
Ivan procurou sentar perto da sua protetora. Estava encantado com a moça e a noite estrelada, onde se podiam ver as constelações que eles, alunos da Escola Naval, conheciam tão bem, com o nome das estrelas inclusive, e não se fizeram de rogados quando elas pediram explicações. O Cruzeiro do Sul, todas conheciam. Abaixo estava a brilhante Alfa do Centauro, Rigel Kent, a estrela mais próxima de nós, uma dupla. Assim chamada porque a olho nu, só se vê uma estrela muito brilhante, azul. Mas usando um modesto binóculo, vemos a companheira, que gira em torno da principal como os planetas giram em torno do Sol.
Para deslumbramento das moças, os dois iam apontando para o céu e falando.
- Ali, perto das Três Marias. Aquela mancha é a grande nebulosa de Órion. Segundo os estudos, é o resultado de uma grande explosão de estrela. Apareceu um binóculo. Rigel Kent foi a escolhida pelos marujos para ser observada, e foi uma alegria geral quando viram que realmente não era uma só estrela, mas duas. As moças estavam adorando os ensinamentos, que agora, com o binóculo de uma delas, se tornavam mais interessantes.
Veio o chocolate quente, que seria servido a todos.
Mas antes, todos cantaram juntos o “Luar do Sertão”. Foi como uma prece. Afinadíssimos, com o violão muito bem tocado. Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, de onde se encontram hoje, devem ter chorado de alegria, quando ouviram a música que os consagrou ser cantada com tanto entusiasmo e carinho.
Muitas outras coisas mais aconteceram.
Inclusive, o casamento de Ivan e Lúcia, que dura até hoje.