sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Faz frio



                                                Faz frio

            Os dias têm andados nebulosos, com chuva fina, o que os tornam frios.
            Fins de agosto, o último mês sem ‘r’.  Com a entrada de setembro vem a série dos incômodos meses que antecedem o verão, e passado este, astronomicamente quase sempre no dia 21 de março, no hemisfério sul, o calor continua a atazanar nossa baixa latitude.
            Acabam uns prazeres, começam outros.  O chá quente das tardes, o conhaque fino, tomado com moderação, as sopas perfumadas, o calor da cama – melhor quando estamos acompanhados pela pessoa certa.  A velha blusa de lã, já um pouco apertada pelo acúmulo de alguns quilos a mais, as meias esportivas que usamos com o tênis, nas caminhadas.  Talvez, deu vontade, um cigarro.  Um no fim da tarde e outro na metade da noite, fumo de qualidade que não deixe o ambiente empesteado.
            A esteira ergométrica para os preguiçosos, sou um deles, o banho bem temperado logo depois.  O filme lançado recentemente no aparelho que reproduz DVD.  O livro marcado, com anotações feitas a lápis, a procura de ideias para uma nova crônica, ou tela abstrata impregnada de técnica e conhecimento.  Tudo isto livremente, mas sem gratuidades.
            A primavera está próxima, começam os dias mais quentes, vem o cretino horário de verão, os dias passando a procura das festas de fim de ano.
            Tempos novos.  Agora, só ano que vem.

          imagem: "Chegada do outono", E.B. Krass, óleo sobre tela 

sábado, 25 de agosto de 2012

Jogo feito


                                                   Jogo feito

            Chovia fino naquela madrugada fria de meados de julho.
            Interessante.  A gente nunca sabe o que pode acontecer numa hora desta.  O homem já com alguma idade, uns trinta e pouco, talvez, ajeitava sua japona grossa, da marinha mesmo, comprada numa loja de uniformes perto do Primeiro-Distrito Naval.  Não passava frio nem no gelo, se estivesse por cima de camisa de malha com mangas compridas, como o mal-encarado estava usando.  Moreno, boa altura, sapatos mocassim pretos, calça de veludo cotelê, preta também.
            O conhaque espanhol estava em cima da mesa, com um copo próprio pela metade, ele já havia tomado um pouco.  Acariciava uma Colt, calibre quarenta e cinco, sua arma de predileção.  Estas pistolas atuais, que dão mais de quinze tiros, não são eficazes como a velha Government Model.  Pesadona, boa de empunhar, sem apresentar nenhum defeito se a munição for nova ou dentro do prazo de validade.  Especialmente naquela noite a arma não poderia falhar.
            Goteiras pingavam a água da chuva, no velho galpão onde fora residência de um caseiro do sítio, e guardava velhas tralhas de jardinagem.  Alheio a tudo isto, o homem magro continuava a beber seu conhaque com café, enquanto fumava e mexia na pistola, engatilhando, levando o cão até a frente, tirando o carregador e a bala da câmara.  Como uma brincadeira, repetia os movimentos incessantemente.  Viu quando os faróis da caminhoneta moderna varreram o quintal.  “Chegou a hora”, falou consigo mesmo.  Experimentado, colocou a garrafa de conhaque e dois tocos de cigarros fumados numa mochila que carregava.  No bule de café e no copo não tinham suas digitais.  Havia usado uma luva fina, as impressões eram de outra pessoa.

            Meses antes, uma conhecida e belíssima artista de teatro e novelas de televisão, havia se passado de armas e bagagens para o lado do conhecido financista Affonso, no momento negociando uma casa de venda de pedras preciosas.  Coisa grande, mas o antigo dono da maior joalheria do Rio tinha dinheiro, além de ser conhecedor de gemas de valor.  A última delas era a artista famosa.  Namorava o seu filho, um homem de trinta e dois anos, também metido com negócios, com a vantagem de possuir sólida formação matemática, ciência em que havia se bacharelado.  Apresentara a namorada ao pai e jantaram juntos, num conhecido e elegante lugar da moda, em Ipanema.  Foi o bastante para o velho ter virado a cabeça.  Conhecia os casos do filho, sempre envolvido com beldades por causa de dois atributos fortes e muito favoráveis: era bonito e rico, além de jovem.
            Dois meses depois, a guria já estava casada, casadíssima com o velho Affonso, que não se cansava de admirar a beleza da esposa e consumir muitos comprimidos contra a famosa disfunção erétil.  Dava sempre certo.
            Célio, o filho, ficou puto da vida, mas não tinha como alterar as coisas.  A sacana da guria tinha trapaceado, e com o pai! 
            Primeiro ele pensou em encher a gaúcha de porrada.  Mas quem já foi treinado para matar sempre prefere esta opção.  Havia cursado a escola de formação de oficiais da reserva do exército, e gostou muito do núcleo das forças especiais, onde saiu habilitado com louvor.

            Os faróis continuavam a varrer a mata do sítio, e já não havia mais chuva, apenas a relva molhada, na qual a jovem caiu para não mais levantar, com o vestido molhado de sangue.

sábado, 18 de agosto de 2012

Pizza indigesta


                                              Pizza indigesta

            Acostumados que estamos a ver processos sucessivos que visam punir acusados de crimes contra o patrimônio do estado, principalmente, não surtirem nenhum efeito contra os réus, surgiu o apelido ‘pizza’.
            O julgamento do mensalão, pelo Supremo Tribunal Federal, tomou rumo diverso.  Após uma longa defesa que só negava o acontecimento de vários crimes perpetrados contra a administração pública, o sistema financeiro e outros, começou a votação pelo plenário daquele Tribunal.
            O relator do processo, ministro Joaquim Barbosa, experimentado com os julgamentos no STF, adotou critério que apressa os trabalhos.  Ele analisa o fato, condena, mas não fixa a pena, deixando para o final do julgamento entre os seus pares.  Ou seja, a esperada ‘pizza’ ficou bastante indigesta e todos os conhecedores dos julgamentos no Tribunal Maior já sabem que as condenações serão sucessivas.
            A pena de prisão, descartada no início, começa a ser ameaçadora, quando são reconhecidos crimes como lavagem de dinheiro e bando, além de peculato, que é o crime cometido por funcionário público contra a administração, subtraindo valores a ela pertencentes.  Pode sim, haver pena privativa de liberdade, em vários casos.  Dirceu é um dos ameaçados.
            Muitos gostariam de ver o mandante julgado, mas Lula não foi denunciado pelo Ministério Público, e ao Supremo não cabe denunciar ninguém, tarefa de competência única e exclusiva do Ministério Público.  É difícil, mas talvez com o andar do processo surjam fatos que o MP julgue conveniente incluir o verdadeiro mandante no processo, ou em outro.  São questões técnicas de Direito que não convém discutir aqui.
            A matéria diz respeito sim, a todos nós escritores e poetas.  Os intelectuais de um povo não se escondem desta realidade, no mundo e aqui na nossa terra, onde grandes problemas sociais e de direito foram bandeiras de literatos famosos.
            Não podemos conviver num país sujo.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sexagenário


                                                    Sexagenário




            Sempre fui fumante convicto e inveterado.  Acordava e já acendia logo o pequeno cilindro branco, que tem uma fumaça admirável para os que fazem uso, e detestável para o outro time.
            Minha mulher, por vezes, acordava antes de mim e eu tinha um delicioso café já preparado, que enchia a casa com seu perfume e aumentava minha vontade de tirar umas boas baforadas.  Caso eu acordasse antes, sabia e sei fazer um café bem gostoso.  Como dizem, modéstia à parte.
            Mas bem perto da minha casa existe até hoje uma padaria que descobri ter um café simplesmente delicioso.  Muitas manhãs, quando acordava, para lá me dirigia devidamente armado com meu maço de cigarros e isqueiro.
            Lembro-me até os dias atuais da frequência.  Homens de todos os tipos, desde os mais humildes operários, que invariavelmente tomavam meio copo de cachaça, destes copos comuns, para ficar determinada a quantidade ingererida acompanhada do delicioso café, xícara grande, e meia bisnaga de pão francês com mortadela.  Outros como eu e um homem magro, franzino, risonho e com ares matreiros, aguardavam o ritual do preparo do café.  Enquanto isto fumávamos, naturalmente.
            O rapaz que preparava o dito cujo café seguia um ritual perfeito.  Qual nada de pó moído!  Grãos eram retirados de um grande saco, colocados na máquina de moer e devidamente triturados finamente.  Só este fato já perfumava o quarteirão, acho.  A água já estava fervendo, e o saco de flanela recebia a quantidade certa do pó maravilhoso.  Em seguida, com uma longa colher de pau, o produto que se encontrava no coador era mexido com cautela e carinho.  Isto posto, era colocado na máquina, e aguardávamos ficar pronto.
            Não é preciso descrever as faces de quem observavam o ritual.  A do rapaz magro parecia estar vendo alguma coisa descida dos céus, e creio que esta era a cara de todos nós.
            O café era maravilhoso, eu tomava sempre duas xícaras pequenas, e atacava os pulmões com dois ou três cigarros.  O tipo franzino que estou me referindo fazia a mesma coisa.
            Com o passar do tempo, conversávamos alegremente, desfrutando daquele prazer matutino, e muitas vezes o dia ainda não estava totalmente claro.  Observei que todos se conheciam, e eu já fazia parte do grupo, sendo que sempre o meu companheiro de conversa era o mesmo magro e simpático frequentador.
            Certo dia, perguntei ao dono do lugar quem era aquele tipo.  Ele se espantou e disse que era um escritor conhecido, com o semblante orgulhoso em ter o mesmo por freguês de muito tempo.  Disse-me o nome e levei um susto, não esperava a resposta.
            - É o doutor José Cândido de Carvalho, não o conhece?  Fala com ele todos os dias e não sabe quem é? – foram as palavras do homem.
            No dia seguinte, dirigi-me ao acadêmico famoso com respeito.  Pedi desculpas em não ter reconhecido o autor do “O Coronel e o Lobisomem”.  Zé não se incomodou nem um pouco, e achou graça.  Disse que não era artista de televisão nem político, eu não tinha que pedir desculpa nenhuma.
            Assim passaram-se alguns anos, até que um dia ele me falou que havia gostado muito do meu pai, fato que me surpreendeu, sem dúvida.  Explicou-me que tinha um companheiro em outro lugar, onde também tomava café e incendiava os pulmões.  Ambos haviam-se tornado amigos.
            José Cândido escrevia num jornal de Niterói, “O Fluminense”.  Descobri um recorte do jornal, datado de 15 de fevereiro de 1985, uma sexta-feira.
            A coluna chamava-se “Recado”. Sob o título de “Ser chamado de sexagenário, nunca!”, vinha na íntegra o recado.
            “Jorge Sader, fluminense de cultura e talento, tão conhecido em Niterói como a Pedra do Índio ou a Igreja de São Lourenço, tem os seus caprichos.  Por exemplo: nunca vai ao Rio de Janeiro.  E diz de maneira altamente espirituosa os motivos desta não ida:
            - Não vou para não dar oportunidade de ver noticiado que o sexagenário Jorge Sader foi atropelado na Praça 15 com um embrulho de empadas debaixo do braço.  Ser sexagenário já não faz graça para ninguém rir, ainda mais desmoralizantemente esfrangalhado por um ônibus da linha Padre Miguel - Largo do Boticário. “
            Não fumo há anos, meu pai não morreu atropelado e, pelo que sei, Zé Cândido não morreu por causa do cigarro.
            Deus os guarde.

Homenagem ao meu pai Jorge Cortás Sader

 


domingo, 5 de agosto de 2012

Queijos e vinhos



                                             Queijos e vinhos

            Certos dias são próprios para uma reflexão mais acentuada, aqueles dias que o frio se faz presente sem muita intensidade, e a cidade está calma.
            Bem, hoje é domingo.  Já ajuda muito, estamos no inverno e o dia um pouco acinzentado.  Olho o verde do jardim, onde outras cores despontam.  Poucas flores, a estação não inspira telas expressionistas abstratas, talvez Pollock já estivesse bêbado, se vivo fosse.  Não sou apologista do álcool, mas certas ocasiões ele ajuda a ver um mundo mais colorido, ajuda mesmo!
            As nuvens, ora mais claras ou escuras, vão transformando as cores do jardim.  E então chove!  Dá uma sensação de maior intimismo, pensamos, pelo menos eu penso mais na existência, no momento, no viver e na finitude de tudo isto.  É normal, nestes dias.
            Deste pensamento não necessariamente depressivo, mas real na Vida, pula-se, não se sabe como, para a grandeza da mesma.  É coisa demais, espanta-me mesmo estar escrevendo, usando um aparelho que o mundo todo já se habituou, o computador.  Olho maravilhado para minhas mãos, não por outro motivo de serem parte de um corpo que também ninguém explica a existência neste mundo que parece não ter fim.
            Domingo... Vinho tinto seco, gorgonzola, tomate, pão, azeite e tabule, enquanto Charlie Parker toca magistralmente bem Summertime, de George Gershwin, eu fico com a certeza de que tudo está bem, a Terra segue na sua órbita elíptica em torno do Sol...