quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Recordações de uma manhã ensolarada


          

            A mesa cuidadosamente protegida do sol parecia um bazar estrangeiro.
            Uma jarra de vinho tinto, outra d’água, um maço de cigarros, café e uma taça do rouge pela metade.  O céu, nesta época, é sempre muito claro, uma transparência no azul que parece atingir o infinito.
            Gente. Como passava gente pelo local, alguns apressados, outros nem tanto, mulheres bonitas e elegantes, feias também... Um desfile.  A moça de saia curta chamou a atenção.  Bonita, rosto bem feito, parecendo escultura em mármore, mas a pele era avermelhada, e não como as peças de museus.
            Tomou um gole dos grandes, devagar, do excelente, mas popular tinto seco.  Ato continuo, acendeu o cigarro e deu a primeira tragada.  Ficou imaginando o que faziam os turistas que passavam.  Turistas, claro, eles têm todo o aspecto de estrangeiros, e falam línguas que não tem nada a ver com o local.  A maioria, chata.  Pensam em conhecer museus e quadros famosos, edifícios cujo nome circula nas colunas dos jornais e prospectos de agências especializadas em realizar sonhos infantis.  Neste mundo tem gente para tudo.
            O celular acordou o homem discretamente vestido.  Terno cinza e camisa da mesma cor, sapatos pretos e muito limpos.
            — Diga, chatão.
            — A santa madre vai bem?
            — Que eu saiba, sim.
            — Pode dizer onde está?
            — Desde que você não venha aporrinhar com comentários idiotas, posso sim. — Deu o nome do bar, conhecido.
            — Naturalmente não sabe das novas.
            — Como não sei? Acabou de passar uma aqui de parar o trânsito.  Novinha.
            — Tentaram matar o Obama.  Dá para cobrir esta depressa?
            — Com é?  Obama?
            — O próprio.  O idiota era um fanático, nada de profissionalismo neste assunto, pelo menos na maneira de execução.  A segurança pegou ele inteiro, o tiro dado atingiu o malucóide no ombro.
            — E Obama?
            — Nem viu como foi, levou um empurrão e foi aparado por outro, senão quebrava o crânio na calçada.
            — Ligo de volta, não demoro.  Deixa eu falar com a embaixada.
            — Escreve, animal! Basta uma lauda.
            Desligaram os telefones.  Em pouco tempo sabia de tudo.  Um fundamentalista árabe, tiro de revólver, aproveitou que o presidente iria  dar uma entrevista e fazer uma explicação a empresários ligados ao setor aeronáutico.
            Enquanto trabalhava na crônica, ele pensou por que não faziam o mesmo, com êxito, num certo líder populista.           

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Presença

    

            Tudo no lugar tinha as suas marcas.  É inevitável isso, quando se mora no mesmo local há muito tempo.
            Assistia a um programa de televisão, feito de forma inteligente, pois informava sem o tradicional locutor dando notícias.  Sala grande, móveis indispensáveis, ausente esta mania de mesinhas com jarros e panos bordados.
            Não fumava nem bebia, mas nem sempre foi assim.  Houve época que eram dois maços de cigarros, muito café que ele mesmo fazia, gostava do ritual, pó escolhido entre marcas de alta qualidade, tinha um gosto achocolatado bastante discreto.  Canela em pau?  Parecia estar presente também.  Nada enjoativo ou estranho, era gosto de café forte mesmo, mas com estes traços.  Na caneca de louça pesada, mostrando os dizeres do navio de guerra a qual havia pertencido.  Uma recordação.  Uma tragada, pausa, um gole no café requintado.  O cálice com o conhaque espanhol perto e cheio, ainda não tinha sido tocado.
            O programa seguia dando notícias, sem aparentar ser um jornal.  Não prestava muita atenção, ou melhor, não prestava atenção nenhuma, seus pensamentos voavam, eram seguidos, sem pausa.
            O fato é que a namorada sumira, o homem de cabelos cinza já não via mais os olhos interrogativos dela, sua boca bem desenhada, expressão sempre jovial e descansada.  Deu mais um trago, cinzeiro de cerâmica grossa, grande e profundo, presente de um amigo artista.  O colorido do fundo, azul esverdeado brilhante, era vidro derretido, dava um toque especial na peça feita. Sumira de vez, acontecia, voltava inesperadamente, mesmo rosto juvenil, não poderia ser de outra forma.  Era bem nova.  Trinta anos não é nada para uma mulher, ela geralmente é encantada, cheia de vida, audaciosa.  Se todas não são assim, esta cuidava com carinho da vida que escolhera e seguia à risca. Livre, absolutamente livre.
            O telefone tocou alto, retirando de imediato qualquer pensamento da sua cabeça.  Um chato, na certa.
            — Querido, que voz rouca!
            — É você?  Que coisa!  Tá onde, garota?
            — Na sua porta.  Pode abrir a garagem?  Têm uns tipos estranhos por perto.
            Linda como sempre, estava também na sala. Elegante, vestido de lã marrom-avermelhado.  Olhos faiscantes e lábios cheios!  Não bebia nem fumava, mas aquele talvez tenha sido o beijo mais gostoso que trocaram.
           

             

domingo, 7 de setembro de 2014

The Rules of the Game

            

            Fui consultado por editora norte-americana para firmar contrato sobre a publicação do meu livro A Regra do Jogo, em língua inglesa.  Livro físico.
            Duvidei bastante no início, pois brincadeiras na internet são bastante comuns, com todos sabem.  Mesmo assim, assinei a papelada toda, juntei o texto em anexo e sugeri a capa.  Nada tinha a perder.
            Em três de setembro deste ano, recebo o e-mail da editora, informando que o livro estava pronto e sendo encaminhado para impressão, que eu deveria autorizar após aprovar texto e capa.  Foi quando descobri como o conheceram. Eu o publiquei na Amazon, como e-book.  Alguém leu e se interessou.
            É um livro simples, onde o tema é a caçada a um homem que pretende assassinar um dirigente estrangeiro em visita ao Brasil.  Coloquei fatos históricos desconhecidos de grande parte da população, para evitar a pobreza literária.
            Fico feliz.  Não me importam dinheiro ou fama, mas ser publicado nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido é para mim motivo de grande satisfação, claro. 
            Muitos têm o livro eletrônico, que disponibilizei como presente, e o relatório da Amazon indicou noventa e três downloads baixados, em três dias.

            Contente, pois!

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Talvez



  
                 Uma cara meio alucinada, mas mansa.  A mansidão em pessoa.
            Entra num bar, lugarzinho sujo, que mármore mais nojento, manchado, será que o maldito dono nunca ouviu falar em sabão, detergente e outras porcarias que servem para limpar?  E o chão?  Asqueroso.
            Mas era o único aberto pelas redondezas, São Jorge num altar vagabundo tomando conta dos possíveis assaltantes, as garrafas numa prateleira.  Ah!  Empada. Tinha empada.  O cara não perguntou de que era.
            — Bota uma!
            — Pra já, meu chefe.  Mineira de chapinha?
            — Da curtida. Amarela. Tá esperando o quê?
            — Prontinho.  Vai de um salgado, tira-gosto?
            — Mas nem pensar.  É come aqui e cai ali.
            Tomou a cachaça como se fosse a última coisa que faria na vida.  Um gole só.  O que não esperava era o aparecimento repentino do Armando, quase se aposentando, como ele.
            — Armandinho, meu irmão! Podia esperar tudo, menos que você aparecesse nesta hora.  — Deu um abraço de tamanduá no amigo e foi berrando: — bota outra, copo grande. Pra mim também.
            Abraço de bêbado parece coisa de namorados.  Não desgrudam, mas a visão dos copos cheios separou na hora.  O santo não ganhou nada, brindaram e só aí que foi pouca coisa para o chão, essa mania de ficar dando pinga para santo não era com eles.
            — Estive pensando...
            — Para, homem, o ar vai ficar fedido.
            — Mas Murilo, é coisa séria!
            — A última coisa séria que você disse eu levei uma porrada daquele PM, aí o estrago — e mostrou o olho esquerdo, meio avariado pelo soco do soldado ofendido com as palavras que Armandinho dirigiu à companheira do policial.
            Estavam num porre que fazia gosto.
            — Rapaz, deixa eu contar.  Curvelo morreu, nunca mais ouvimos as piadas dele, o cara era demais, estive pensando se ele foi pro céu, era alma boa.
            — E daí?
            — E daí que achei que morrer deve ser uma boa.  Curvelo prometeu que se fosse dessa para a melhor, baixava e me contava tudinho como era!
            — É?  E ele contou o quê?
            — Nada, eu é que estive pensando.  A gente não precisa mais trabalhar, nem ganhar dinheiro, nem andar de metrô, não precisa acordar cedo...
            O outro foi na história, não demorou.  Beleza!  Nada de trabalho, tudo fica pela conta de São Pedro, cachaça melhor do que qualquer bebida de classe, não ficava de porre se não quisesse, não tinha ressaca, nem fome, nem sono, nem PM para dar soco no olho, nunca mais iria aturar aquele maldito chefe, carinha metido a besta, e ainda por cima de tudo era corno, que vergonha, sabia de tudo, o safado.  O dentista!  Ah, miserável dentista, carniceiro, chato, consultório vagabundo, sempre cheio.
            Nada de botequim nojento como aquele, a empada causava náusea, o copo de cachaça esta engordurado, a mulher reclamando da hora que ele chegava, no Céu não tem disso não, é tudo livre, pode fazer o que quiser, só não pode pecado, mas eles não eram pecadores, nem safados, eram apenas pobres diabos, quer dizer, coitados que a Vida deixou na amargura.

            Beberam mais, saíram juntos cantando uma música antiga, abraçados, enquanto a chuva fina molhava a calçada e suas roupas amarrotadas. 


imagem:  "Los borrachos", o/s/t , Diego Velásquez