quinta-feira, 18 de julho de 2019

Surpresas

                                             Surpresas

            Muitos não acreditam mais em surpresas; mas as temos todos os dias.
            Fato é que se encontravam na confortável e elegante sala, passadas às dez da noite, poucos, mas gente de qualidade, como se habituou dizer.  Conversa comum, sem pretensões, e uma mulher, meia idade, também atriz como a dona da casa, estava ao piano.  Tocava razoavelmente bem, a peça era Liszt.
            A conversa corria na sala, onde todos se conheciam, não havia formalidades enquanto alguns tomavam uísque, outros um tinto famoso.  Coisa de amigos, gente que se gosta, admira-se, ama-se.  Era assim.  Dois tipos estavam como convidados de amigos.  Simples, de aparência excelente, vestidos sem ostentações.  A conversa girava sobre literatura, e havendo atores na sala, tinha nível de respeito.
            — Não gosto de Proust.
            — Motivo?
            — Apenas teórico, fala sobre o que ninguém sabe, nem mesmo ele.
            — E quem sabe bem isto, meu caro?
            — Acredito que Shakespeare. Ah!  Hemingway também.
            — Só eles?
            —Não só, claro.  Mas são os maiores.  Olha, coloca Sófocles neste rol.

            A conversa esta sendo feita por um velho conhecido da casa, intelectual de primeira água, e admirador da Física, para fechar muitas bocas.  Verdade.  As ciências exatas, em tantos e tantos locais, não são bem vistas, especialmente quando o ambiente não é de quem as estuda ou domina.  O que não quer dizer, por exemplo, que um matemático admire profundamente Cézanne ou Picasso.
            — E aqui, quem é bom em artes?
            — Caramba!  Pegou duro. Quais artes?  Todas?
            — Sabe dizer pelo menos uma?
            — Ah, sim, sei sim.  Portinari e Iberê Camargo são os melhores pintores brasileiros.
            — E onde ficam Meirelles, Parreiras, Visconti e tantos outros?
            — Fomos longe demais.  Não sei.  Bebemos muito uísque, rapaz!
            O que estava com o moletom vestido, uma elegância, tirou o casaco. Sem pressa, foi até o piano.  Não levou o copo. Não fez nenhum alarde, e era um dos desconhecidos no lugar.
            — Permite, senhora?
            — Sem dúvida.  Gosta do piano?
            — Muito. Há longo tempo. — Sua figura tomou outro aspecto quando se sentou, ajeitou o banco e tomou posição diante do instrumento que fala direto no coração de todos, dependendo de quem está diante do teclado.  Todo instrumento musical é soberano.  Não foi feito ou existe para ser usado, mas para ser respeitado e amado. Madeiras e metais são exigentes, demasiadamente exigentes, principalmente os instrumentos de solo.  Foi assim que o desconhecido, alinhado perfeitamente junto ao piano, como se dele fizesse parte.
            A sucessão foi grande.  Música após música, o sentimento tanto dele quanto de quem o escutava, crescia com admiração e embevecimento.  A sala era um silêncio completo, o pianista colocou o instrumento para falar, falar de amor, de ternura, de delicadeza.
            O ar cheirava paixão!


Por incrível coincidência, procurando a imagem,  para ilustrar e encontro uma de um pintor citado na crônica, Eliseu Visconti.  Acaso? Não sei...


sábado, 6 de julho de 2019

Meganha

                                        

            O nome é hoje pejorativo.  É como era mais conhecido, anos atrás, o soldado da Polícia Militar.
            Invadido pelas forças paraguaias de Solano Lopez, a terra brasileira não possuía um bom e firme exército.  O Imperador Pedro II não tinha esta prioridade.  Mas a verdade estava posta.  Era necessário combater os soldados estrangeiros que invadiram o Brasil, fazendo muitas vítimas. 
            Deu exemplo o próprio Imperador, que dormindo em tendas de guerra no Rio Grande do Sul, em companhia de soldados do Exército Imperial, pouco treinados e com armas deficientes, convocou o povo a formar os famosos batalhões dos Voluntários da Pátria.  Quem eram estes homens?  A História oficial não registra.  Diz-se que antigos escravos, todos sem ocupação e valentes; marginais de todas as espécies, processados e alguns já condenados, mas com a promessa de esquecimento absoluto das suas faltas e penas e por fim aventureiros que nada possuíam, mas entenderam boa hora de tirar proveito da situação.
            Verdade ou não, esta é uma das partes da Guerra do Paraguai, uma parte suja.  A própria morte de Solano Lopez, ferido gravemente e morto sem qualquer motivo pelo cabo Chico Diabo, quando estudei no primário tido como herói e hoje visto como um covarde desajustado, que liquidou por conta própria o tirano ferido de morte, é prova disso.  Foi punido, segundo o comando do Exército.  Prender, claro.  Matar era idiotice. 
            Tudo isso nos foi contado pelo saudoso professor e intelectual Josias Alt, folclorista de renome e conhecedor da guerra citada.  Digo nos foi porque era ele, o intelectual Josias, nosso professor de português no Liceu “Nilo Peçanha”, em Niterói, cidade onde nasci e vivo até hoje.  O Liceu e o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro eram símbolos do ensino, naquela época.
            Voltando aos Voluntários da Pátria.  Grande ala era formada de gente com história de brigas duras.  Um batalhão era temido pelas mais instruídas tropas paraguaias.  Duros no combate, fortes e implacáveis.  Eram temidos e sabiam disso.  Não sendo uma tropa distinta, pegaram um lençol, e fizeram a inscrição “Ninguém me ganha”.  Esta bandeira simples, demasiadamente simples, fazia tremer os inimigos.  Muitos não lutavam: debandavam de pronto. Para a inscrição “Ninguém me ganha” passar a meganha, o passo é curto, todo brasileiro sabe disso, usa o mesmo método, hábito. Meganha. Este é o apelido, ou era, os tempos passam, dos valentes soldados da Polícia Militar.  Eles detestam, não sabendo que não é pejorativo, mas um tratamento de valentia.
            Assim é!  Sem os meganhas não existiriam hoje as cidades brasileiras, mas locais tomados pelos bandidos!
            “Ninguém me ganha”, esta é a bandeira!