Surpresas
Muitos
não acreditam mais em surpresas; mas as temos todos os dias.
Fato
é que se encontravam na confortável e elegante sala, passadas às dez da noite,
poucos, mas gente de qualidade, como se habituou dizer. Conversa comum, sem pretensões, e uma mulher,
meia idade, também atriz como a dona da casa, estava ao piano. Tocava razoavelmente bem, a peça era Liszt.
A
conversa corria na sala, onde todos se conheciam, não havia formalidades
enquanto alguns tomavam uísque, outros um tinto famoso. Coisa de amigos, gente que se gosta,
admira-se, ama-se. Era assim. Dois tipos estavam como convidados de
amigos. Simples, de aparência excelente,
vestidos sem ostentações. A conversa
girava sobre literatura, e havendo atores na sala, tinha nível de respeito.
—
Não gosto de Proust.
—
Motivo?
—
Apenas teórico, fala sobre o que ninguém sabe, nem mesmo ele.
—
E quem sabe bem isto, meu caro?
—
Acredito que Shakespeare. Ah! Hemingway
também.
—
Só eles?
—Não
só, claro. Mas são os maiores. Olha, coloca Sófocles neste rol.
A
conversa esta sendo feita por um velho conhecido da casa, intelectual de
primeira água, e admirador da Física, para fechar muitas bocas. Verdade.
As ciências exatas, em tantos e tantos locais, não são bem vistas,
especialmente quando o ambiente não é de quem as estuda ou domina. O que não quer dizer, por exemplo, que um matemático
admire profundamente Cézanne ou Picasso.
—
E aqui, quem é bom em artes?
—
Caramba! Pegou duro. Quais artes? Todas?
—
Sabe dizer pelo menos uma?
—
Ah, sim, sei sim. Portinari e Iberê
Camargo são os melhores pintores brasileiros.
—
E onde ficam Meirelles, Parreiras, Visconti e tantos outros?
—
Fomos longe demais. Não sei. Bebemos muito uísque, rapaz!
O
que estava com o moletom vestido, uma elegância, tirou o casaco. Sem pressa,
foi até o piano. Não levou o copo. Não
fez nenhum alarde, e era um dos desconhecidos no lugar.
—
Permite, senhora?
—
Sem dúvida. Gosta do piano?
—
Muito. Há longo tempo. — Sua figura tomou outro aspecto quando se sentou,
ajeitou o banco e tomou posição diante do instrumento que fala direto no
coração de todos, dependendo de quem está diante do teclado. Todo instrumento musical é soberano. Não foi feito ou existe para ser usado, mas
para ser respeitado e amado. Madeiras e metais são exigentes, demasiadamente
exigentes, principalmente os instrumentos de solo. Foi assim que o desconhecido, alinhado
perfeitamente junto ao piano, como se dele fizesse parte.
A
sucessão foi grande. Música após música,
o sentimento tanto dele quanto de quem o escutava, crescia com admiração e
embevecimento. A sala era um silêncio
completo, o pianista colocou o instrumento para falar, falar de amor, de
ternura, de delicadeza.
O
ar cheirava paixão!
Por incrível coincidência, procurando a imagem, para ilustrar e encontro uma de um pintor citado na crônica, Eliseu Visconti. Acaso? Não sei...