sábado, 20 de fevereiro de 2016

Faz frio

                             
Já havia colocado a pesada japona usada na marinha, lã pura, azul fechado.  Antes de sair, esquentou o café ainda fresco que havia tomado antes de vestir roupa para o frio.  Colocou na caneca de cerâmica e bebeu em pequenos goles, estava delicioso.
Saiu, desceu a escada, um só lance, pois estava no primeiro andar, abriu a porta do edifício velho, mas muito bem conservado, como todos do local.  Uma rajada de vento frio açoitou-lhe o rosto.
“Diabos soltos, vento e neve fina”, pensou.  Meteu as mãos nos bolsos, estava sem luvas, não gostava de usar, incomodava, tirava o tato. Colocava quando não tinha jeito mesmo, o frio era selvagem.
O relógio no poste mostrava dez e quinze, boa margem para chegar ao grande escritório da redação.  Duas quadras, não seria penoso aguentar aquele maldito vento gelado no rosto.  Lembrou-se de Sofia Irinova, sua pele macia e quente, seu corpo aconchegante.  Estaria esperando com as instruções e a papelada, formalidades indispensáveis para o encontro com o presidente.  Conseguira a entrevista, fato quase impossível, graças ao seu amigo Timothy Bancroft-Hinchey, diretor da edição em português do Pravda.  Não é qualquer jornalista, por mais conhecido e importante que seja que se aproxima do todo poderoso Vladimir Putin, o mais forte político da Federação Russa.  Forte e temido, havia sido o último chefe da KGB, o serviço secreto da Rússia comunista.  O assunto era a compra de aviões militares, principalmente caças, e interessava ao governo tanto a venda, como a divulgação da notícia, que poderia ser dada por um ministro ou militar que trabalhasse na área, mas não.  Desta feita o próprio Putin queria passar a informação, valendo-se dela para usufruir pessoalmente as vantagens do bem sucedido negócio russo com o governo brasileiro.
Sofia Irinova resplandecia beleza no seu vestido cor terra-de-siena queimada.  A calefação transmitia uma intimidade naquele espaçoso escritório onde a fumaça dos cigarros era intensa.  “Mas como fumam, estes russos!  Fumam, bebem e comem.”  Alan acendeu também um cigarro, enquanto saboreava outro café, desta vez oferecido por Sofia, cujo corpo perfeito estava modelado pela roupa justa.   Guardou a papelada numa pasta pequena, que a bela jornalista russa havia lhe passado, junto com os documentos.
O almoço não poderia ter sido melhor.  Batatas cozidas cobertas de creme de leite, salmão defumado guarnecido com aspargos, arroz e vinho branco.  Trocaram carícias e passariam o fim de semana juntos, no apartamento dela.   Havia mudado de roupa para o encontro.
Putin, como sempre, estava num elegante terno cinza claro, gravata vermelha e fala solta.  Quem o imagina mudo ou reticente está enganado.  Quando interessa, o homem fala pelos cotovelos.  Era o caso, a notícia correria os jornais europeus e americanos.  Venda de armamento sempre é manchete destacada, os concorrentes que perderam o negócio amarguram a derrota, as fábricas perdem dinheiro e prestígio.
Reunião terminada e rua novamente.  Parada obrigatória para tomar um conhaque da Armênia, mais café, e outro cigarro.  Quinta-feira, ele estava perto de ficar colado a Sofia, e semana seguinte, Rue du  Faubourg Poissonnière uma vez mais.  Paris, França.  Ouviu os passos próximos, olhou para trás e não gostou do que viu.  Rápido o chaveiro que era colocado num mosquetão de escalada e no rapel, tão em moda, serviu para ser usado como um soco-inglês.  O golpe desferido foi na têmpora esquerda do tipo.  Marginal, sem dúvida, a polícia não perderia tempo apurando quem havia feito tão bom trabalho.
Alan fizera o serviço militar nas forças especiais francesas, treinadas contra o terrorismo urbano.  Sabia como se defender, e sabia também que quanto mais cedo fora da Rússia, melhor.  Sofia Irinova ficava para a próxima, e no dia seguinte estava outra vez bebendo um tinto num bistrô na esquina do Boulevard Poissonnière com a Faubourg Poissonnière, perto da estação do metrô Bonne Nouvelle.  Tão logo o verão carioca terminasse, voltaria para o pequeno, mas muito confortável apartamento na Rua Barão da Torre.  Os dias cinzentos ficariam luminosos e coloridos.     
   

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Ela

                                          

             Difícil esquecer.  Aliás, não é difícil, é impossível.
            Gente que entra, muitas vezes sem pedir licença, na alma de outros.  Repare, mire, veja: nunca são feias ou inexpressivas.
            Carnaval.  Conversa sem maiores implicações ou responsabilidades.  A cerveja especial bem gelada, e os petiscos deliciosos.  O bar, no Rio, é famoso até hoje por causa disso.  Limpo, bem iluminado, continua ser local para encontros entre conhecidos íntimos, e desconhecidos que pretendem ver um a alma do outro.  Tarefa difícil.
            Linda, lindíssima.  Vestia branco, o que ressaltava sua pele dourada e seus olhos de mel.
            A conversa corria mansa, num quiosque de praia famosa do Rio.  Já haviam tomado juntos, boas talagadas do manjar. Linda, simplesmente linda a moca doirada.
            — Você me encanta!
            — Ora, o sentimento é recíproco.
            Ela era uma deusa jovem, ele poderia, talvez, ser seu pai.
            — Não vê nossas diferenças?
            — Que diferenças? Sou uma mulher formada, não enxerga?
            Situação delicada.  Um querendo a outra, casal de mulher jovem e homem nem tanto.  Ah!  Famosos.  O que pode tornar tudo muito mais fácil, ou escandalosamente mais difícil.  O mais delicado era seu corpo.  Não só o rosto lindo, mas suas formas perfeitas e atraentes. Elegantes e educados.  Facilita tudo!  Boas uniões necessitam de pares parecidos; não iguais, mas parecidos. Educação, comportamento.  As disparidades servem para afastar e o tempo mostra isso.  Deram um mergulho e, mãos dadas foram para casa.
            — Não vou tomar banho com você.  Ainda tomo um uísque.
            — Vai, burrão!  Assim perde a oportunidade de me agarrar nua.
            — Ora, o dia não acabou.  Começou a escurecer agora.  Está com ideia de sair, comer fora?
            — Não.  Tem muita coisa na geladeira, a começar pela salada de grão-de-bico.  E eu quero é comer você — gargalhou quando disse.
            Sabe, é verdade, tem muita gente que se ilude com isso.  Falta de maturidade, experiência e observação.  O homem pensa que manda, que ele comeu, a palavra parece ordinária, tirada de texto vagabundo.  Nada, isto não existe mais, é comeu mesmo.  Continuando: ele não percebe que a escolha não é só sua, mulheres são voluntariosas, é característica delas, escolhem seus homens e não são comidas por eles, comem também, muitas vezes com muito mais vontade, um furor mesmo.  

            Estavam limpos e perfumados do sabonete de qualidade.  Uísque não combina com grão-de-bico, mas era Carnaval, estavam preparados, cerveja não faltava na geladeira grande, sem contar as acondicionadas nas caixinhas de papelão.
            Carnaval... Enquanto a segurava nua, maravilhosamente nua e desejosa, lembrou como tudo começara.  Não a conhecia bem, era um sábado de Carnaval e levou o convite direto:
            — Vamos para a casa de meus pais em Caxambu?
            Ele não foi, não poderia ir, era casado com outra.  Um casamento doente, errado, mas o convite não poderia ser aceito.

            Dizem, ninguém sabe se é verdade, que tudo está escrito.  O maktub dos árabes é um mistério.  O mais interessante é que até hoje, nunca ficaram uma só vez em Caxambu, origem de tudo.