Antero do Sino
Vindo ainda pequeno de Feira de
Santana com pai, mãe e irmãos, Antero Siqueira desfrutou da calma e da
camaradagem dos seus novos amigos que moravam na cidade onde o pai tinha
escolhido para sair da Bahia.
Não existiam motivos para a saída da
cidade baiana, até que o pai de Antero, Honorato Siqueira, meteu a faca num
adversário maldoso e antigo que
tinha. Cupelo morreu na hora, não
resistiu aos golpes recebidos. Azar o
dele, não tinha nada que se meter com Glorinha, filha mais velha de
Honorato. Descaradamente, Cupelo havia
passado a mão nas pernas da moça, na feira, quando ela fazia compras para a
mãe. Embora vistosa e com cara muito
bonita, a moça de apenas 16 anos não merecia a gracinha de Cupelo, visto e
revisto na cidade como um conquistador audacioso e barato.
Quando Honorato interrompeu os goles
de pinga que o safado estava calmamente bebendo, e pediu satisfações ao
namorador ordinário conhecido, este não teve dúvidas. Abriu o paletó e mostrou a garrucha que
sempre o acompanhava. Esqueceu, porém
que quando um pai vai tomar satisfação de mal feito a filho seu, não costuma ir
desarmado. E aconteceu o
inevitável. Honorato já não estava
calmo, nem razões havia para isto. A faca
que carregava, desta do tipo de escoteiro, não muito comprida, mas amolada e
guardada na bainha de couro, apareceu rápida nas mãos do pai injuriado – era
como ele via o fato. Os médicos que
examinaram Cupelo constataram três ferimentos, mas ninguém presente, nem mesmo
Honorato, contou os golpes desferidos no debochado que deveria saber que mais
cedo, mais tarde, iria terminar desta forma nas mãos de um pai, noivo ou marido.
Até resolver direito o que faria,
Honorato ficou sob a proteção do coronel Elias, proprietário de um mundão de
terras na região. Podia continuar na
fazenda, mas não queria viver como bicho coitado.
O coronel, homem de conhecimentos,
sugeriu a cidade no interior de São Paulo.
Tinha um irmão que morava lá, vivia da lavoura e proclamava a pequena
cidade como sendo o próprio paraíso.
Honorato mais mulher e três filhos rumou para a cidade, onde já o
aguardava o irmão do coronel Elias, que também era conhecido seu.
Enquanto não arranjou onde ficar,
morou na fazendola do Quincas, que o conhecia muito bem, trabalharam juntos
numa pequena fundição em Salvador, quando jovens. Faziam muitas peças, praticamente todas sob
encomenda. O negócio pequeno não era
nada ingrato; rendia uns bons trocados.
E foi exatamente uma pequena
fundição, em sociedade com o velho amigo e ainda saudoso de ver o metal líquido
ganhando forma, que Honorato começou vida nova.
Quincas arranjou um empréstimo com o irmão, o investimento não era de
monta, mas também não era de assustar ninguém.
A fundição foi inaugurada e os
moradores da pequena e calma cidade ficaram orgulhosos de existir naquela
pacífica terra um negócio de cidade grande, segundo eles pensavam.
A cidade era toda arborizada, clima
ameno, gente tranqüila jogando cartas ou dominó nas praças onde não faltavam
canteiros floridos.
O tempo passou, Glorinha casou,
Honorato foi avô de uma linda menina com os olhos claros, pois sobravam
italianos e descendentes na cidade.
Antero foi bom aluno, podia ter
estudado para ser doutor, mas preferiu trabalhar com o pai, na fundição. Em pouco tempo, dominava a arte de construir
moldes, conhecer a exata temperatura do forno para derreter metais e compor
ligas que faziam a parte final do que executavam. As encomendas eram quase todas de fora da
cidade.
Têm fatos que não se explicam. Num temporal furioso, um raio destruiu a
torre da igreja da cidade, e o sino veio abaixo, rachando não muito, mas o
suficiente para soar muito mal, quando tocado.
Cidade do interior sem igreja não é
cidade. Tão logo moradores que tinham
por ofício a construção, repararam a torre.
Deu trabalho, mas valeu a pena.
Ficou faltando o sino, guardado nos fundos da igreja, num pequeno pátio.
Lembraram logo de Antero, que agora
dirigia a pequena fundição, para reparar o sinaleiro das horas e instrumento
indispensável nas festas.
Antero examinou, pensou, mediu. O sino no pátio tinha conserto e cabia no seu
forno. Depois de cuidadosamente
reparado, tendo atenção especial para quando soasse não dar a impressão que
tinham batucado numa lata velha, mas num instrumento de respeito, o sino voltou
ao seu lugar original.
Para encantamento dos moradores e do
próprio Antero e os homens que conseguiram recuperar a peça, seu som ficou mais
bonito.
Comemoração geral, agradecimentos
até do bispo!
E o já não moço fundidor ganhou o
apelido de Antero do Sino. Nunca havia
desejado fama ou riqueza, mas ficou conhecido, comprou um forno maior e
contratou novos empregados, que ele mesmo se encarregou de ensinar o ofício e
trabalhar observando sempre o cuidado, o amor pelo que se faz.
O tempo passa célere, e assim
aconteceu com Antero e outros moradores.
Antero do Sino já havia completado 40 anos.
O filho mais velho do Cupelo tinha
um pouco menos idade. Mas guardava o
rancor ainda dentro do peito, esta coisa amaldiçoada que destrói gente e o
mundo. Descobrira onde estava o homem
que matara seu pai, e havia jurado vingança.
Honorato estava muito velho, quase não fazia mais do que comer e
dormir. Permitia-se, e que ninguém se
metesse, a tomar um trago de pinga antes do almoço, e só. Nem cartas ia jogar mais com os velhos
amigos, só aos sábados comparecia.
Canalhas não merecem nomes para a
posteridade. O filho de Cupelo, na
tocaia, atirou quatro vezes contra Antero.
Não vai pai, vai filho, pensou a cabeça imunda.
Antero tombou mortalmente. A antiga história de Feira de Santana
permaneceu desconhecida.
No seu enterro, o sino da igreja
tocou todo o tempo. Som triste, choroso, despedindo-se de quem lhe havia dado
alma.