quarta-feira, 17 de março de 2021

"Os velhos marinheiros"

                                          “Os Velhos Marinheiros”

 

 

    Nosso escritor maior, pelo menos assim eu o julgo, foi muito feliz quando escreveu “As aventuras do comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão-de-longo-curso.”

    Para quem nunca leu, e para os que leram e gostaram como eu, relembrar é dar gargalhadas, ao mesmo tempo em que podemos com nitidez perceber a alma do artista transformando fatos comuns em acontecimentos grandiosos, quando assim ele entende.  Transforma com facilidade o vencido em vencedor, e sabe suplantar a mediocridade sem ser agressivo nem grosseiro.

    Vasco era um rico comerciante de Salvador, que frequentava uma roda importante, todos ostentando títulos.  Sentia-se pequeno; diploma não tinha.  A cada dia, mais envergonhado, até que o Capitão dos Portos, comandante Georges Dias Nadreau tem uma conversa séria com o amigo.  Queria saber por que Vasco andava tão macambúzio.

    Após insistência, surgiu a verdade.  “Sou um merda, todo mundo é doutor, você, por exemplo, manda em marinheiros, tem patente, é o Capitão dos Portos.”  Revelado o segredo, ouve de resposta que “idiota, com o dinheiro que você tem, troco minha patente por ele.”  Como isto não é possível, Georges arranja uma farsa ideal.  Através de um exame onde imperou a mentira, Vasco torna-se, por obra e graça do Comandante Nadreu, capitão-de-longo-curso, habilitado a comandar navios pelos mares do mundo, mas com uma séria advertência: “veja lá o que vai me aprontar. Não se atreva a comandar navio nenhum”, e a resposta do amigo, agora sorriso só, foi um imediato “Deus me livre.”   

    Jorge Amado diz que os amigos “são o sal da terra”, e são mesmo!  O cabisbaixo Vasco torna-se valente comandante, senhor dos mares, rei das meretrizes que pululam nos portos, tem história atrás da outra para contar.

    Aposentado e desfeita a turma dos amigos, muda-se para Periperi, arredores de Salvador, onde cedo se transforma no mais importante morador da pequena cidade. E tome mentira, uma atrás da outra, casos de naufrágio, tempestades, mulheres apaixonadas...

    Não escapa das maledicências de Zequinha Curvelo, fiscal de rendas aposentado que não suporta o comandante; tomara-lhe o posto de contador de histórias na cidade.  Mas a história de Zequinha era só uma: as “tricas e futricas” sobre o seu processo na justiça, onde lutava por pagamento que, no seu entender, deveria ter sido feito.  Falava horrores da justiça, mas seu ódio era contra o comandante Vasco, a quem chamava de impostor, vagabundo, que nunca havia pisado no convés de um navio.

    Mas como tudo é possível, chega autoridade e solicita os préstimos do comandante, o único ainda encontrado na lista da Capitania.  Vasco recusa, mas sabe que não vai adiantar nada, como de fato aconteceu.  Teria que comandar um Ita, cujo comandante falecera em viagem.  Não tendo alternativa, entrega o comando ao imediato, Geir Matos.  A viagem vai tranqüila até Belém do Grão-Pará, mas na hora da atracação, quando é o comandante e somente ele quem dá as ordens, vem o desastre: desconhecendo como se amarra um navio ao cais, Vasco não duvida em ordenar que todos os cabos, âncoras e ancorotes sejam usados.  O navio parece fazer parte do cais, sob a gargalhada da tripulação e passageiros.

    Um porre de cachaça faz com que ele consiga dormir numa pensão vagabunda.

    Mas a quem Deus prometeu, nunca faltou, dizem todos.  Ventos tenebrosos e mar enfurecido desarvoraram todos os navios, menos o Ita, firme no porto, guiado pela mão segura do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão-de-longo-curso.

    Jorge Amado soube transformar a mediocridade humana num feito de grandes proporções.  Já li este romance um sem número de vezes...     


Imagem: Zélia Gattai, esposa e companheira de Jorge Amado