A casa arrebentada, com marcas de
ataque de mísseis manuais, tiros de fuzis automáticos e sacos de areia que se
amontoavam até o teto, estava ocupada por vários homens. Alguns usavam capuzes, outros não.
Fortemente armados com fuzis Kalashnikov
AK-47, eles compunham a corte encarregada de efetuar os julgamentos que
envolviam crimes praticados contra o povo.
Os juízes, escolhidos pelo Grande Conselho da Al-Qaeda, eram cinco. Os seguranças, todos guerrilheiros com alto
treino de combate, não se sabia o número.
O calor do lugar não incomodava os
homens de muitas roupas e nenhuma cara.
Nasceram ali, iriam morrer no mesmo lugar. Estavam acostumados ao calor do dia e ao frio
da noite. Todos eram terroristas, e por
Maomé ou Alá não hesitariam em dar suas vidas.
Na improvisada mesa dos juízes, que
nada mais era do que tábuas suportadas por cavaletes, tábuas grossas, que
poderiam a qualquer instante se transformarem num excelente abrigo, os cinco
homens olhavam com a mais absoluta frieza para os dois réus. Haviam cometido um dos mais sérios crimes que
o povo tem horror: estupro e posterior morte da vítima, mulher casada, de
trinta e cinco anos, e três filhos.
— Os dois. Cometeram o pecado que falam nossos irmãos
que os prenderam? – foi a primeira pergunta do presidente do julgamento.
-
Não senhor – respondeu o mais magro, com barba muito mal tratada e olhar para o
chão. Não podiam olhar seus
inquisidores, a lei proibia, por terem cometido um crime nefando.
— Não cometeu? Então nossa guarda está mentindo?
— Sei que foi cometido o pecado
contra os mandamentos do Profeta. Mas
sou inocente.
— E você, homem velho?
— Meu grande senhor, eu não seria
capaz de cometer isso!
— Os dois negam a acusação. Façam entrar as testemunhas. – A voz do
presidente, rouca e cheia de suspeita, era realmente tenebrosa. Torquemada
parecia um santo, perto dele. O Santo
Ofício torturava e matava, mas não era violento como este.
Entraram os milicianos, quatro ao
total. Haviam feito a prisão em flagrante dos dois que se encontravam sendo
julgados. Normalmente, nos tribunais,
uma testemunha não assiste o depoimento da outra. Ali este princípio era completamente
ignorado.
Embora civis, perfilaram-se como
soldados perante a corte.
— Pelo Grande e Sábio Profeta, juram
dizer a verdade?
— Juramos, senhor nosso!
— O mais velho que preste seu
depoimento.
O mais velho não era tão idoso
assim. Deveria ter trinta e cinco anos,
mais ou menos. Ocupou o lugar dos que
prestam testemunho.
— O senhor era o chefe da patrulha,
no momento da prisão?
— Sim senhor.
— Faça o favor de nos contar o
ocorrido, com toda a verdade que nossa lei nos obriga.
O homem bebeu um grande gole d’água,
aprumou-se mais ainda e começou a descrever o fato. Estava patrulhando a área, quando viu dois
cidadãos correndo.
Interceptados pela patrulha,
disseram que estavam indo às pressas para uma reunião palestina. A desculpa costuma ser sempre esta. Pedida a
senha do dia, não souberam responder.
Era “o Sol e a Lua não brigam.”
Foram presos imediatamente, pois se fossem do movimento, saberiam a
senha.
Os outros milicianos falaram
exatamente a mesma coisa. Acrescentaram
que ouviram vozes de moradores.
— Eram estes os homens que
prenderam?
— Sim, nosso julgador! – a voz, em
conjunto soava como um raio que destrói a palmeira do deserto.
— E os moradores diziam o quê?
— Falavam sobre gritos de
mulher. Perguntamos aos presos o que
significava isto.
— Foi quando alguém achou o corpo da
mulher atacada?
— Sim, e fomos à direção que ele nos
conduzia. Uma mulher estava morta, e com
sinais de violência. Crueldade extrema,
senhor juiz.
— Foi examinada por médico?
— Um dos moradores era médico e
pediu a presença de miliciano para observar o corpo.
— Prossiga, soldado.
— Nós quatro fomos testemunhas. Pedimos a identificação do homem, ele era
médico mesmo, e autorizamos o exame.
— Procederam com cautela. Mandaram os curiosos afastarem-se?
— Sim senhor. E o médico verificou que a mulher morta tinha
sido vítima do mais vil pecado que pode ser cometido contra nossas
mulheres. Morreu por esganadura, disse o
doutor.
— Temos o laudo dele aqui. Vocês o levaram até a delegacia das milícias.
— Sim senhor. Tivemos este cuidado, e lá ficaram presos os
dois acusados que aqui se encontram.
Visivelmente
irritado e colérico, o juiz dirigiu-se aos réus.
— Como tem o cinismo de negar tal
fato?
— Ela não seguia nossos princípios,
senhor.
— Você é o mais velho e me diz
isto. Não seguia como?
— Era tarde da noite, e ela não
usava véu!
— Verdade, senhor comandante? –
perguntou ao miliciano.
— Mentira, pelo Santo Profeta! Estava de manto e tinha o véu, que se
encontrava perto.
O sentimento de justiça entre este
povo não é compreendido pelos que se orientam segundo o direito romano. Tão logo ouviu esta afirmação, que a vítima
fora esganada e não era prostituta, o mais jovem oficial levantou-se e se
encaminhou para o mais velho dos réus.
Tinha nas mãos um cano de ferro.
— Não tinha véu, era uma prostituta?
— Parecia, meu senhor.
O
golpe foi duro. Aplicado no joelho
esquerdo do acusado, fez com que um berro de dor fosse ouvido até por quem
estivesse do lado de fora, protegido por muitos sacos de areia.
— Alá é minha testemunha! Era uma mulher do povo.
Em muitas ocasiões, o melhor é
permanecer calado. O homem invocou o
nome de Alá, quando era culpado.
O segundo golpe foi no peito. O homem começou a respirar com dificuldade.
Fora de propósito, o julgador
transformar-se em
carrasco. Mas todos
olhavam com asco os malditos assassinos.
— E você, o que diz? – perguntou o
presidente ao mais novo.
— Somos vítimas de um engano, meu
nobre senhor!
O
senhor não era assim tão nobre. Foi até
junto aos réus e sacou a pistola. Um
tiro no peito de um, um tiro no peito de outro.
Gostava da Colt, calibre 45.
Tiveram morte instantânea, fato que não dispensou o disparo de
misericórdia, dado pelo comandante da milícia.
Pouco depois, todos os julgadores e
milicianos, enquanto serviçais limpavam o lugar, tomavam áraque com queijo de
leite de cabra.
A lei tinha sido cumprida.