Capítulo 1
Estavam sentados em torno da grande mesa, feita de uma só tábua de madeira nobre.
Grande a casa, pé direito alto, construção que mostrava bom gosto. A sala onde alguns beliscavam queijos e grãos oleaginosos, um hábito deles. Oito homens, mas somente um preferiu beber conhaque, naquela noite. Os outros estavam tomando uísque, em copos médios, com muito gelo. Terminada a rodada, a maioria, como de costume, dava boa noite e se retirava.
Palmas e campainha tocando? Àquela hora? Um dos poucos servidores voltou do portão e falou baixo ao mais velho, que acabara de colocar seu copo na mesa.
— Um tipo estranho, senhor. Está vestido com uma espécie de túnica branca. Parece um peregrino e tem ótimo aspecto.
— E o que ele quer?
— Pediu pousada. Só quer dormir e amanhã sai antes do Sol nascer.
— Estranho. Traga até a antessala. E fique por perto, nunca se sabe o seu intento.
Escolheu uma bengala pesada, ajeitou o robe e aguardou que o visitante estivesse dentro da casa. A um sinal do empregado, foi ao encontro.
Realmente, o tipo tinha aspecto excelente, muito limpo e exalando um perfume completamente desconhecido. Leve e muito discreto, cheiro de homem mesmo. Estava com uma túnica branca, barba longa e usava uma sandália de couro, o mesmo da bolsa que trazia a tiracolo.
— A Paz esteja nesta casa, senhor. Obrigado por atender.
— É hábito neste lugar. Meu empregado disse que quer abrigo.
— Se for concedido, aceito de bom grado. Venho caminhando há muitos anos.
— Toma uma bebida conosco, antes de dormir, peregrino?
— Se for vinho, aceito.
Estranho. O homem tinha um andar como se na terra não estivesse. O olhar inspirava grande confiança. Ninguém lhe perguntou o nome. Quando viu os pães redondos feitos na casa, pediu licença, rasgou um pedaço para ele, e fez um gesto que parecia estar convidando a comerem juntos. Provou o vinho, deu logo após um longo gole, quando um barulho se fez escutar.
Era um ruído estranho, muitas vezes seguido de um vento frio. Vez por outra, o fato acontecia no lugar.
— Fora! Este lugar não é para você. Fora!
Ninguém entendia nada. Com quem falava? Súbito, as luzes apagaram.
— Fora! Fora!
E os presentes viram que seu corpo emanava luz, clareando o ambiente. A energia elétrica retornou.
Tranquilo, o homem perguntou se poderia tomar mais um cálice de vinho, logo posto no seu copo pelo mais velho do casarão.
Na manhã seguinte, como havia falado o peregrino estava de saída.
— Volte sempre, amigo! Gostamos de você.
— Vou em corpo. Não se incomodem. Estarei sempre presente. E desapareceu como se não existisse.
A vida guarda segredos insondáveis. O que tinha acontecido naquela casa era inexplicável. De nada adianta ficar indagando; não se tem resposta.
Manhã clara no casarão, onde as janelas, bem calculadas arquitetonicamente, permitiam a luz de o Sol iluminar com harmonia toda a sala principal. Os mais velhos conversavam, dominados ainda pelo acontecimento noturno. O mistério atrai profundamente os homens, e era exatamente o que tinha acontecido. Afinal, o que teria acontecido, na realidade? Que significava a visita do estranho e pacífico homem que pediu pousada? E os acontecimentos sequentes? As frutas e o chá, consumidos com moderação pelos que haviam testemunhado os fatos, não auxiliavam a compreensão dos mesmos.
Casa de fazenda grande, produtora de leite e grande plantação de legumes; anacrônica, diziam.
O tempo havia passado e a construção refeita. Datava da época da escravidão, mas nenhum traço poderia revelar tal fato. Nem mesmo a capelinha restaurada com todo rigor que se fazia necessário. E o pelourinho.
As diversas casas dos trabalhadores distanciavam-se pouco do casarão.
Faina começando cedo, cheiro de café, pão caseiro. Não havia desperdício de alimentos, mas uma fartura que não é notada em casas de trabalhadores. O tradicional doce de abóbora, a broa de milho com os sabores de quem conhece, cravo, especialmente.
Dizer que a vida transcorria sem graça era um exagero. Pois que havia sim, bastante movimento quando não estavam trabalhando. O rio, manso, em muitos lugares não dava pé, água fria o ano todo, mesmo no verão.
Raul e mulher, ele excelente carpinteiro, ela doceira de mão cheia, aguardavam a chegada dos padrinhos de batismo do filho mais novo.
O lugar era uma mata rasteira, árvores poucas, meio torcidas: vegetação de cerrado. O riacho fazia a música do lugar, água fria, cristalina que corria em destino a outro bem maior.
— A água tá fria?
— Tá uma gostosura. Lavou até por dentro.
— Por dentro não lavou foi nada. Nem bebeu um gole, e ‘inda que tomasse não lavava, bicho ruim.
Bastião Neném não ouviu bem o comentário da amiga. Estava enxugando o couro grosso e pelejando com uma garrafa de cachaça. Couro grosso sim, aquilo não poderia ser chamado de pele.
Rita já havia tirado toda a roupa, e seu corpo brejeiro foi alvo de elogio do velho companheiro. Fazia seis anos estavam juntos.
— Só meu. Isso tudo é só meu.
— Dá um beijo.
— Mulher gosta dum beijo. Não reclama do cheiro. Dei uma talagada grande.
— Depois tomo meu jenipapo também. E fazemos alguma coisa...
— Agora não, a barriga tá roncando.
Iriam batizar o menino Januário, sobrinho deles, filho de uma irmã de Rita. Mais dois dias de tropel, estariam dormindo em redes velhas, mas coisa de primeira: nem um pouco esgarçadas, limpas e perfumadas de ervas.
Bastião Neném ouviu barulho na mata. Não era coiteiro nem metido em bandos. O que passou, passou. Correu para um emaranhado de mato, escondeu-se e no maior silêncio engatilhou sua velha mas bem cuidada parabellum, antiga ferramenta de trabalho.
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