A fantasiosa alma do povo, que
caracteriza os mais diversos grandes grupos existentes na Terra, além de
interessante é contraditória: existem várias interpretações para um fato
determinado.
Todas as artes são fruto da mais
dignificante expressão humana, mas a música parece levar uma vantagem sobre
todas as outras. Pelo menos para mim,
parece.
Contam que Joaquim Rodrigo, o
violonista flamengo admirado por todos, perdeu um filho moço, de muito pouca
idade. Sua mulher ficou desesperada, não
comia, não dormia direito, só fazia chorar.
Na verdade, mãe nenhuma deveria perder um filho, especialmente quando
ele é um menino que começa a dar os primeiros passos em direção ao seu estágio
mais compreensivo da Vida. Ninguém
duvida disso.
Joaquim, como pai e bom marido,
preocupava-se com a esposa e sentia a dor da perda. Sofria duas vezes.
Procurou por várias formas consolar a
mulher, e com este ato estava procurando alívio para si também. Quem disse que só as mães sofrem a perda de
um filho? Não conseguia nem confortar a
mãe desesperada, nem mitigar seu sofrimento.
Perdido, totalmente sem rumo e incapaz
de enfrentar uma situação tão adversa, Rodrigo passou a meditar como seria
possível sair desta situação triste, doída, sofrida, malvada e perversa. Sua mulher era a principal preocupação,
poderia passar à insanidade a qualquer momento.
Os músicos são privilegiados. Costumam
chorar suas dores e lamentos usando suas armas.
Os instrumentos falam!
O pai desencantado já não tocava mais
seu violão. Estavam mudos, naquela casa,
Rodrigo, sua mulher e o violão guardado na sua caixa de madeira. Não era mexido. As idéias do seu dono, massacrado pela perda
irreparável, não traziam nenhum incentivo a tocar, ou compor.
Desilusão...
Mostrava-se claramente, na casa do
músico famoso, cuja mulher definhava a cada dia. O único filho, morto! De que adiantava ser o maior violonista de
Espanha?
Os amigos procuravam confortar. Os amigos, que são o sal da Terra. Mas nada, nem mesmo os mais queridos
conseguiam diminuir a tristeza de Rodrigo e da sua mulher.
Joaquim não era covarde. Procurava a cada momento dar algum destino ao
sofrimento que passavam, mas na sua altivez, preocupa-se antes de tudo com a
sua sofrida companheira.
Pensava, rezava como todo bom
músico. Não chegava a nenhuma conclusão,
o que fazia aumentar seu sofrimento.
Mas, dizem os entendidos, a dor não é
permanente.
Faz parte da Vida. Não, o homem não nasceu para sofrer, embora
muitos filósofos negativistas entendam desta maneira, que não conduz a lugar
nenhum. Ajudam a piorar o estado dos que
já padecem...
Rodrigo chegou à conclusão de que
precisava se aproximar de Deus, de pedir que o sofrimento da mulher fosse
consolado, que ele pudesse retornar ao seu violão, tocando, compondo,
encantando. Pedia isso todos os dias às
paredes, ao Sol, às estrelas, às flores do campo.
Determinada manhã, quando o dia estava
iluminado, as árvores com suas folhas verdes, o céu transparente e mostrando o
esplendor do que não acaba, o que não tem fim, Rodrigo tirou o violão da caixa
de madeira limpa e bem cuidada.
Segurou o instrumento como se fora o uma
parte sua, seu filho, talvez.
Estava um pouco desafinado, mas os
dedos nas cordas, e os da mão esquerda nas cravelhas logo colocaram o violão
com seu som distinto de todos os outros, o violão flamengo.
“Eu preciso rezar, eu preciso falar
com Deus”, pensou o músico. Fez alguns
acordes, notou que o som saía limpo, claro e afinado.
Ninguém jamais saberá explicar a
causa. Rodrigo talvez rezasse mal, mas
quando tocava, era uma bela prece que estava fazendo.
Tangia as cordas com facilidade, a
música tomou conta de toda a casa. Para
seu espanto, sua mulher chorava de maneira diferente. Não era mais o choro sofrido, doído, amargurado. Mostrava felicidade, e sorria para o marido
que continuava seu improviso, o improviso que rogava a Deus que o escutasse,
que fizesse parar a tortura a que estavam submetidos.
A cada toque na corda, o ambiente
alegrava-se. Tudo estava mudando como num
grande passe de mágica, não havia mais tristeza, as dores foram-se embora, a
mulher sorria, e o violonista continuava tocando o que hoje conhecemos como o
Concerto de Aranjuez.
Esta é a mais bela lenda que envolve a
peça flamenga, que fez os corações pararem de chorar de dor, tristeza e
melancolia.