Júri/Google
Nem sempre é dado ao homem o poder de julgar casos que não são da sua competência. O homem julga o homem, não entidades que supostamente conhecemos.
A sala do Tribunal do Júri obedecia ao padrão internacional: austera.
O juiz, promotor e jurados, austeros igualmente. Quem destoava era o advogado de defesa. Aparentando muita tranquilidade, ele ajeitava alguns livros e papeis na sua tribuna. Sempre que fazia júris, era a mesma coisa: apenas uma grande dose de uísque, para descontrair. Nunca mais do que isso; o prejuízo seria do acusado e seu.
Gostava de usar a beca negra. O Tribunal exigia vestes talares, e o ar refrigerado não conseguia deixar um resquício de calor nos corpos dos debatedores. Enquanto o sisudo promotor tinha por baixo da beca paletó e gravata, o advogado tinha apenas as calças, meias e sapato. Retirava camisa, gravata e paletó; a veste negra, uma grande capa, encarregava-se de esconder o tronco nu. Não sentia calor, era um velho hábito.
Todos já sentados quando o oficial de justiça apregoou o acusado. Entrou cabisbaixo, como todos os réus. Dois policiais fardados o ladeavam e sentaram-se nas cadeiras a eles reservadas.
O juiz fez um breve relatório do caso e iniciou o interrogatório. Nenhuma das suas perguntas foi respondida, tanto por vontade própria do réu, como pela orientação do advogado. Todos naquela sala olhavam com certo temor a figura sinistra. Respondia a quatro homicídios, mas estava sendo submetido a apenas um. No crime continuado, aquele onde o autor comete de uma só vez delitos da mesma natureza, responde apenas por um, mas tem a pena bastante aumentada.
O promotor, jovem especialmente indicado para iniciar o exorcismo, se é que o fato pode ter este nome, colocou o réu abaixo de qualquer linha de comportamento humano possível. Volta e meia, o homem sentado a sua frente levantava os olhos e com uma aparente imagem pura e angelical, fitava-o com destemor e leve sorriso. O juiz, que a tudo assistia, não encontrava motivos para impedir que tal fato ocorresse. Afinal, não havia ofensa nem deboche, apenas um sorriso amistoso.
Acusações e mais acusações pesavam contra aquele homem, e o Tribunal era silêncio.
Terminada a fala do promotor, a pedido da defesa, o julgamento foi suspenso por vinte minutos, para descanso dos jurados. Na cantina onde podia se tomar um excelente café, os comentários eram os mais variados. Todos, sem exceção, estavam admirados com o julgamento; nunca presenciaram fato semelhante.
Juiz e promotor, no gabinete daquele, confabulavam com certa precaução. Nem um, nem outro, havia participado de júri semelhante.
O tempo concedido ao descanso terminou. Todo na sala uma vez mais foi dada a palavra ao defensor do acusado, o sem-nome, o perverso.
O homem falou muito. Passou por todos os pontos onde a maldade está presente. São tantas... Inflado pelo entusiasmo, o causídico desfiou o rol dos males, a guerra, a fome, a miséria, a falta de educação para as crianças, o trabalho indigno, e a solidão humana. Repetiu mais de uma vez que o homem nasce sozinho, vive sozinho e morre sozinho. Mesmo o mais querido humano vive esta realidade.
O que ninguém esperava, enquanto o defensor terminava o seu discurso, foi o forte vento, a falta de luz por causa de um curto-circuito e um início de incêndio.
Terminado o incidente, todos viram que o réu tinha desaparecido, e nunca foi encontrado.
No antigo oráculo de Delfos, na Grécia antiga, em pedra está entalhado o dizer “Invocado ou não invocado, Deus está sempre presente.”
Tudo indica que o mal também esteja, e cabe a cada um pedir que não seja seu instrumento.
Ainda atônito, tomado por medo, o juiz deu por encerrada a sessão.
O réu? Está em toda parte. Deus me livre dele...
3 comentários:
O atrevimento de julgar O Sujo dá nisso.
Tem boa proteção, Jorge? Descrever um Júri assim é perigoso.
Parabéns.
Profundo demais, é uma leitura do bem e do mal. Excelente, maduro e forte.
Beijos
Há várias citações em vários lugares: "A grande sacada do diabo é fazer-nos acreditar que não existe". Todavia, o grande Jorge nos mostra que é melhor ficarmos atentos, limpando o peixe e de olho no gato. E valham-nos todos os santos e santas, orixás e entidades... XÔ!
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