Café
Ruim como a peste. Ele mesmo não sabia a causa, fora educado com carinho.
Pensava na desgraça que o acompanhava, desde muito moço, embora velho não fosse, enquanto tomava uma média num balcão de um bar mal frequentado.
Não conhecia o que era uma boa amizade, o amor de uma mulher. É evidente que estes fatos incomodam. Ele tinha noção da sua maldade com os outros e consigo mesmo. Doido? Talvez fosse.
Acabada a média com pão e muita manteiga, refeição primeira, ia para o trabalho, uma famosa fábrica de tintas. Não fizera uma amizade sequer, em quatro anos de serviço. Conhecia, cumprimentava e basta.
Ainda no balcão terminando o café da manhã, sentiu-se pela não se sabe qual vez, sozinho e afastado do mundo. Nem sempre fora assim. Talvez o serviço militar, em força especial, houvesse transformado aquele homem que um dia foi obrigado a matar um cidadão. Estava de guarda, e um homem negou-se a parar e passar pelo meio da rua, em frente ao quartel onde ele servia. Era um inocente; verificou-se depois que bebia horrores, e estava muito alcoolizado quando do tiro.
Não se tornou um marginal ninguém sabe a causa, nem ele mesmo.
Pagou a conta e foi para a parada do ônibus que o levaria ao trabalho. Deu poucos passos na calçada e ouviu uma gritaria de gente que olhava para cima.
Instintivamente, fez a mesma coisa. Uma pessoa estava caindo de um prédio, e seria em cima dele, estava próxima.
Sua primeira reação foi esquivar-se. Nem ele mesmo sabe o motivo. Era uma criança, que havia caído por uma destas fatalidades que ninguém explica. Como se fosse um goleiro de futebol retesou os músculos, postou-se firme e aparou a menina que logo abriu um descomunal berreiro.
Correram todos. A menina só chorava, e levada para um hospital, constatou-se não haver fratura ou rompimento de órgão interno.
Um herói!
Hoje ele é um dos mais solicitados diretores da creche do seu trabalho, que o desviou para lá de imediato. A pirralhada adora o ‘tio’. Ele, retribui com carinho.
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13 comentários:
rsrs... Teu texto me provocou um sorriso. Gostei do final! A vida é mesmo irônica assim. Sofria por haver tirado a vida de um inocente, e a vida lhe dá a oportunidade de dar a vida a outro inocente. bjs e parabéns. Gostei muito mesmo.
Gostei Jorge,um final feliz é sempre bem vindo!
Maravilha de texto, Jorge! A vida vive nos pregando peças, que por vezes nos levam ao fundo do poço e, por outras, nos dão a chance de chegar aos céus. Que bom que este homem teve a oportunidade de se refazer e mostrar a que veio neste mundo.
Parabéns!
Beijos
Márcia
Pois, é! É assim mesmo que os milagres acontecem. Caem sobre nossas cabeças. Mas somente alguns conseguem abraçá-lo para sempre.
Foi mesmo um herói acidental. Ainda bem para ele e para a criança.
Abraço
Escrevendo certo por linhas tortas, o "De Lá de Cima"... E meu Mestre Jorge Sader escreve certo por linhas certas...
Parabéns, mais uma vez, e que sejam muitas mais!
Magnífico, Jorge! Fazer o inventário de vida é algo que o ser humano deixou de lado e quando buscamos isso, a vida nos responde com possibilidades. Adorei a simbologia e a emoção visceral. Parabéns!
Mais uma vez, uma lição de vida em forma de narrativa, impecável.
Conheço vários tipos assim, aparentemente indiferentes à beleza e aos sentimentos mais nobres e concordo com a idéia de que é preciso "humanizar o homem".
O personagem não se tornou herói por acaso, até os mais duros são capazes de ser tocados, coisa do destino ou desígnio divino, depende daquilo em que se crê. Eu, particularmente, prefiro sempre esperar no melhor do meu próximo...
Beijo*
Que final surpreendente, e que grande lição este seu texto, amigo Jorge. De rematada peste a herói da cidade, que história, heim? Muito bom. Abraços.
É bom te ler Jorge e saber apreciar as surpresas que a vida nos oferece ..bjus
A criança que se salva acaba salvando o homem que já não esperava redenção. Quando tudo está perdido, o melhor a se fazer é seguir os instintos e se jogar com tudo, dentro da vida, é claro.
Ótima história.
Abraço.
Parece que um milagre em vermelho acabou de assaltar os meus olhos!
Do início ao fim prendeste a minha atenção. Linguagem elegante, concisa, objetiva, firme. Aliás, não compreendo como consegues ser tão objetivo e tão sedutor, ao mesmo tempo! Coisa mais difícil!
O conteúdo temático é instigante. A primeira palavra que, após a leitura, surge à nossa mente e ao sussurro dos nossos lábios é esta mesmo: "milagre"! Contudo, prefiro entender como Lei Universal de Causa e Efeito. Nada acontece por acaso. A criança merecia viver e ele, ser o herói desta epopéia... Tragédia humana evitada!
Excelente, Jorge! A cada dia admiro mais o teu dom de escritor, volto a dizer, objetivamente sedutor.
Meu carinho e respeito, sinceros.
Sílvia Mota.
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