segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Sexagenário


                                                    Sexagenário




            Sempre fui fumante convicto e inveterado.  Acordava e já acendia logo o pequeno cilindro branco, que tem uma fumaça admirável para os que fazem uso, e detestável para o outro time.
            Minha mulher, por vezes, acordava antes de mim e eu tinha um delicioso café já preparado, que enchia a casa com seu perfume e aumentava minha vontade de tirar umas boas baforadas.  Caso eu acordasse antes, sabia e sei fazer um café bem gostoso.  Como dizem, modéstia à parte.
            Mas bem perto da minha casa existe até hoje uma padaria que descobri ter um café simplesmente delicioso.  Muitas manhãs, quando acordava, para lá me dirigia devidamente armado com meu maço de cigarros e isqueiro.
            Lembro-me até os dias atuais da frequência.  Homens de todos os tipos, desde os mais humildes operários, que invariavelmente tomavam meio copo de cachaça, destes copos comuns, para ficar determinada a quantidade ingererida acompanhada do delicioso café, xícara grande, e meia bisnaga de pão francês com mortadela.  Outros como eu e um homem magro, franzino, risonho e com ares matreiros, aguardavam o ritual do preparo do café.  Enquanto isto fumávamos, naturalmente.
            O rapaz que preparava o dito cujo café seguia um ritual perfeito.  Qual nada de pó moído!  Grãos eram retirados de um grande saco, colocados na máquina de moer e devidamente triturados finamente.  Só este fato já perfumava o quarteirão, acho.  A água já estava fervendo, e o saco de flanela recebia a quantidade certa do pó maravilhoso.  Em seguida, com uma longa colher de pau, o produto que se encontrava no coador era mexido com cautela e carinho.  Isto posto, era colocado na máquina, e aguardávamos ficar pronto.
            Não é preciso descrever as faces de quem observavam o ritual.  A do rapaz magro parecia estar vendo alguma coisa descida dos céus, e creio que esta era a cara de todos nós.
            O café era maravilhoso, eu tomava sempre duas xícaras pequenas, e atacava os pulmões com dois ou três cigarros.  O tipo franzino que estou me referindo fazia a mesma coisa.
            Com o passar do tempo, conversávamos alegremente, desfrutando daquele prazer matutino, e muitas vezes o dia ainda não estava totalmente claro.  Observei que todos se conheciam, e eu já fazia parte do grupo, sendo que sempre o meu companheiro de conversa era o mesmo magro e simpático frequentador.
            Certo dia, perguntei ao dono do lugar quem era aquele tipo.  Ele se espantou e disse que era um escritor conhecido, com o semblante orgulhoso em ter o mesmo por freguês de muito tempo.  Disse-me o nome e levei um susto, não esperava a resposta.
            - É o doutor José Cândido de Carvalho, não o conhece?  Fala com ele todos os dias e não sabe quem é? – foram as palavras do homem.
            No dia seguinte, dirigi-me ao acadêmico famoso com respeito.  Pedi desculpas em não ter reconhecido o autor do “O Coronel e o Lobisomem”.  Zé não se incomodou nem um pouco, e achou graça.  Disse que não era artista de televisão nem político, eu não tinha que pedir desculpa nenhuma.
            Assim passaram-se alguns anos, até que um dia ele me falou que havia gostado muito do meu pai, fato que me surpreendeu, sem dúvida.  Explicou-me que tinha um companheiro em outro lugar, onde também tomava café e incendiava os pulmões.  Ambos haviam-se tornado amigos.
            José Cândido escrevia num jornal de Niterói, “O Fluminense”.  Descobri um recorte do jornal, datado de 15 de fevereiro de 1985, uma sexta-feira.
            A coluna chamava-se “Recado”. Sob o título de “Ser chamado de sexagenário, nunca!”, vinha na íntegra o recado.
            “Jorge Sader, fluminense de cultura e talento, tão conhecido em Niterói como a Pedra do Índio ou a Igreja de São Lourenço, tem os seus caprichos.  Por exemplo: nunca vai ao Rio de Janeiro.  E diz de maneira altamente espirituosa os motivos desta não ida:
            - Não vou para não dar oportunidade de ver noticiado que o sexagenário Jorge Sader foi atropelado na Praça 15 com um embrulho de empadas debaixo do braço.  Ser sexagenário já não faz graça para ninguém rir, ainda mais desmoralizantemente esfrangalhado por um ônibus da linha Padre Miguel - Largo do Boticário. “
            Não fumo há anos, meu pai não morreu atropelado e, pelo que sei, Zé Cândido não morreu por causa do cigarro.
            Deus os guarde.

Homenagem ao meu pai Jorge Cortás Sader

 


18 comentários:

Caio Martins disse...

A cada texto,você se supera, marujo. Gostei muito, fechou de modo magistral. Pode mandar mais!

Ana Bailune disse...

Seu texto me fez lembrar das minhas aventuras em padarias, quando eu trabalhava fora. As lembranças são tão boas: o cheiro do café, o encontro com amigos, as paqueras sobre o balcão, o pão na chapa... até hoje adoro dar uma paradinha para um café na padaria!

marcia disse...

Bom dia Jorge,você realmente é ótimo!...bjus

Célia disse...

Bem, Jorge,(não o Jorge Ben) já o título "Sexagenário" é uma investida à melhor idade que de melhor... fica muito a desejar... mas o sabor do café entre amigos, sem a reverência a títulos ou jargões para V.Excia traz um reconfortante bem-estar! Curto muito isso tudo! Acho incríveis tais momentos que, na simplicidade, gravam momentos únicos.
É o que fica de bom aos 60 / 70 / 80 ou mais...
[ ] Célia.

Nadir disse...

Jorge, boa tarde!

Boa mesmo, com a oportunidade de ler sua crônica, interessante
como certas situações marcam nossas vidas.
Bom conhecer certas peculiaridades, você nos trouxe algo
sobre o Escritor José Cândido Camargo, que não encontraríamos
em nenhuma pesquisa.
Quem resiste ao aroma de um bom café? Pensar que foi graças ao sentido de observação de um pastor de cabras, etíope, é que hoje... podemos degustá-lo!
Sou fissurada em café, Serra Negra produz um excelente produto,
devido suas condições, geográficas e climáticas.
Retornado à sua crônica, sutil maneira de homenagear seu pai!
Nadir

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Muito bom seu texto, Jorge. Que privilégio ter privado da amizade desse mestre, autor de uma das melhores obras da literatura brasileira. "O Coronel e o Lobisomem" é uma joia de fino humor. Abraços.

Unknown disse...

Ótima tarde Jorge, é assim que lhe chamo desde os bons tempos daquele MURAL... Bem, confesso-lhe que o tempo é um professor excelente para quem si dá a oportunidade de ser bom aluno.
Muito bom o seu texto. Mostra de que nas coisas simples há encanto ímpar.
Saudosismo, singeleza... abundam neste maravilhoso texto, repleto de imagens vivas -pelo menos para mim, assim se fez!

Abraço grande,
EstherRogessi

Maria Luzia Fronteira disse...

Memórias de um tempo que ficaram gravados e aqui partilhadas com requinte, como sempre o faz Jorge.
Abraços
Manuela

Marco Bastos disse...

Olá, Jorge, como sempre bela crônica. Gosto do café de padaria, mas hoje preparo o meu aqui em casa mesmo. Fica gostoso. Só não tem esse bom complemento das conversas no balcão. rs. O cigarro continua ainda (e acho que não o deixarei) mesmo depois dos anos da sexalescência, como há dez dias me disseram ser o nome de uma das idades que segue à adolescência. Não é somente cronológica, mas os outros atributos dizem que os conservo. rs). Tenho percebido a sua admiração pelo seu pai, e isso é muito bom. abraços.

Gisa disse...

Senti o perfume do café moído.
Excelente crônica.
Um grande bj

Anônimo disse...

Hum...eu só faço café em saco de pano, como sempre vi minha avó fazer...seja lá onde eu estiver...beijos, Jorge querido.
Duda

Anônimo disse...

Ops...corrigindo...SEJA LÁ ONDE FOR OU ESTEJA ONDE ESTIVER...kkk...mais beijos.
Duda

iderval.blogspot.com disse...

Mestre :Sou defensor ferrenho do café em todas as idades ,o café só faz o bem,nas minhas explanações sempre ovaciono o café,tenho uma grande preocupação,a geração atual não gosta e não tomam café,preferem outras bebidas,principalmente as inventadas que só causam mal.Tenho orientado os gestores a oferecer o café de todas as maneiras,:em forma de café, com leite,em balas,em doces,em sorvetes,licores,bolos,bebidas,com doce de leite e de todas as maneiras.O Café é saúde,o CAFÉ é nosso.Aprenda a usar o café e tenha em casa para oferecer às suas visitas.Ofereça o Café sempre que possível.
O cigarro tem os seus desencontros , agora tenho um artigo no blog http://www.iderval.blogpot.com com o título- O FUMANTE.
Um abraço
Iderval Reginaldo Tenório

iderval.blogspot.com disse...

Leio com atenção, aprendo muito com estas crônicas e nesta o autor foi muito mais do que o esperado.Um abraço Iderval tenório

lino disse...

Uma bonita homenagem!
Abraço

Anderson Fabiano disse...

Bom dia, Jorjão,

Vou resumir: MARAVILHOSO!

Menino, o café, o cigarro, o bule, o coador de pano, o parceiro de balcão, tudo perfeito. Parabéns!

PS: Bin Laden segue seu rumo, lançamento dia 11 de setembro. Vou mandar convite e depois, exemplar autografado.

Meu carinho,
Anderson Fabiano

Márcia Sanchez Luz disse...

Maravilha de texto, Jorge! Ler você é sempre prazeroso, amigo.
Vou tuitar a postagem para que saia em meu jornal ainda hoje.

Beijos

Márcia

Unknown disse...

Linda homenagem!
Adorei a crônica!
Parabéns!
Abraços
Yara