Os
primeiros raios de sol, ainda filtrados pela intensa camada de ar frio que
aparece nos pampas, já eram suficientes para acordar e começar o dia de
trabalho. Trabalho difícil, diga-se de
passagem. Difícil e perigoso.
O pequeno acampamento abrigava vinte e três homens, todos
acordados. Cigarros eram acesos pelos
fumantes mais inveterados. Outros
aguardavam para fazer o mesmo, os encarregados das refeições já mantinham fogo
aceso, em carvões colocados com cuidado na vala aberta, que parecia uma ferida
na terra. Uma chapa fina de ferro, um
misto de grelha e frigideira, suportava o panelão onde estava sendo feita a
polenta com linguiça e o grande jarro metálico que servia para esquentar água
do chimarrão, mas no momento era uma cafeteira.
Os homens, falando baixo e aguardando a primeira refeição
do dia, olhavam com certa ansiedade para a cozinha de campo. Os cavalos já tinham sido examinados, todos
em perfeito estado, segundo exame rigoroso de cada dono da montaria. A mata era rasteira, não faltando um bom
capim que estava sendo devorado por mangas-largas, principalmente. Fortes e muito bem tratados. No campo, o cavalo supera o mais moderno jipe
ou caminhoneta. Assunto para quem
entende, não adianta discutir.
A polenta foi servida junto com o café que perfumou o
campo verde, talvez até a fronteira.
Ambos, como de costume, estavam deliciosos.
A jagunçada, enquanto comia a polenta com linguiça, que
alimentava seus estômagos famintos, continuava a conversa baixa. Falar alto no campo ou no mar, dependendo do
vento, é escutado por quem está longe, desde que estejam na direção do vento,
no mesmo sentido dos que falam. Daí a
cautela.
Muitos homens examinavam suas armas. Examinavam e limpavam, como se fosse preciso
limpar o que estava impecavelmente sem qualquer sujeira. Revólveres, na sua maioria, todos de calibre
trinta e oito, pois o tiro é de respeito e as carabinas usam o mesmo cartucho. Estas tinham um poder de fogo terrível, tiro
capaz de derrubar um boi, se fosse bem dado, principalmente na cabeça, onde era
certa a morte. Ali, ninguém deixava de
acertar uma latinha de cerveja. De
carabina, a uma distância de uns cinquenta ou pouco mais metros.
Revólver é mais difícil. Quem não
se atrapalha com mandar para o alto uma lata, a cinco, ou seis metros de distância, pode
sentir-se seguro.
Estes homens estavam sob o comando de Raul Camargo,
antigo policial civil, aposentado aos quarenta e oito anos de idade, após longa
carreira nas mais diversas delegacias onde esteve lotado. O segundo homem era da sua inteira
confiança. Cumpria ordens sem perguntar
nada, bastava que acreditasse em quem dava a ordem.
A ronda noturna havia terminado, e eles voltavam para uma
fazenda grande, onde não se contava o número de cabeças de gado.
Só o chefe subiu os oito degraus que levavam até a enorme
varanda da fazenda, que tinha porão para evitar que a umidade e as variações de
temperatura incomodassem os moradores, além de proteger a construção.
—
Bom dia, chefe – cumprimentou Raul o fazendeiro de compleição forte, olhar
decidido e mãos grandes.
— Bom dia, Raul.
Alguma novidade?
— Felizmente não, meu senhor. Tudo parece estar na mais perfeita ordem.
— Tem certeza disto?
— Pelo que vimos durante a noite, tenho. Mas nunca se sabe a ideia destes safados.
— Eu sei Raul. No
momento em que você descuida, a terra está toda invadida. Estes sem-terra são uns moleques bem
dirigidos.
— Comigo não tem esta não, coronel Leôncio. Se passar da cerca, é homem morto.
— Eu sei, Raul. Por isso contratei seus serviços. E pare de me chamar de coronel. Não tenho
patente.
— Questão de respeito, senhor. Quem tem mando é superior, é coronel.
Leôncio fazia ares de quem não gostava de ser chamado
coronel, mas adorava o título dado pelos empregados. Sua fortuna pessoal era grande, mas não como
a de outros fazendeiros, principalmente dona Iza. Segundo contavam, tinha a maior fortuna do
lugar, e era muito bonita.
Colocaram-lhe o apelido, muito próprio, de A Bela dos
Pampas. Qualquer assunto mais difícil de
ser resolvido, ou decisão a ser tomada, Iza, a Bela dos Pampas, dava sempre a
última palavra. Ninguém sabia direito
suas origens, mas todos conheciam sua fortuna.
Como os outros fazendeiros, detestava os sem-terra, que invadiam,
destruíam, plantavam milho e não colhiam, e viviam como ciganos em barracas de
plástico preto.
No início do movimento, tinham diretrizes e eram ordeiros
na medida do possível, nas invasões que faziam em terras devolutas, ou terras
sem produzir nada. Mas agora não
respeitavam mais nada, era o caos, invadiam e ficavam impunes até mesmo prédios
públicos.
Os fazendeiros do Rio Grande, temendo que lá surgisse
outro local parecido com o Pontal de Paranapanema, montaram verdadeiros
exércitos particulares, que vigiavam as propriedades dia e noite, todos com
ordem de atirar se preciso fosse. Mas
deveriam obedecer ao comandante, sempre um homem experimentado, que não
vacilava em dar ordens severas. Os
participantes destas guardas não eram homens que se intimidam diante de uma
arma, fosse ela foice, facão ou mesmo espingarda de cartucho. A resposta era imediata. Poucos gostavam do uso de espingardas calibre
doze, porque espalhavam muito chumbo e o alcance não é grande. A carabina trinta e oito, fabricada no Brasil
mesmo, imitando com perfeição absoluta as velhas Winchester americanas,
ferramenta indispensável na conquista do oeste norte-americano, onde foram
cometidas barbaridades sem limites, serviam muito bem para repelir invasores e
os mais audaciosos.
Surgiu uma invasão, que ao contrário de todas as outras,
não aconteceu durante a noite. Urgia providência, mas mulheres e crianças
estavam à frente dos invasores. Difícil
tomar uma decisão, numa hora destas.
Raul não teve dúvida.
Com mais dois, rumou célere até a fazenda da Bela dos Pampas. Embora Iza estivesse almoçando, imediatamente
foi atender ao jagunço.
— Têm crianças e mulheres protegendo estes moleques?
— Isso, dona Iza.
Está cheio.
— Atirem nas mulheres.
— Nas mulheres?
— Sim, nas mulheres. Matar crianças é bobagem, tchê. Você mata a mãe, se for preciso.
— E por que isto,
dona Iza?
— Porque se você mata a criança, os pais enterram, é
noticiário ruim, mas alguém tem que tomar conta das crianças. Elas dão trabalho aos maiores. Muitos não têm experiência disto, e não
poderão fazer parte dos combates. As
mães. Matem as mães.
Felizmente não foi preciso. Os invasores retiraram-se quando ouviram o
barulho do estampido e da bala zunindo sobre suas cabeças.
Imagem: A belíssima atriz Daniela Escobar, uma homenagem.
12 comentários:
Sou dos tempos das Ligas Camponesas, de finado Julião.
Era coisa de homem da terra, de agricultor de verdade. Havia ideologia e romantismo.
Pra esse grupo liderado pelo terrorista Stedile, é bala mesmo. E de 38! Na cabeça!
Meu carinho,
Anderson Fabiano
Jorge,ótimo conto.Linda Daniela...
Bjus
Me admirei por saberes tanto da rotina dos gaúchos e também sobre armas. Sempre surpreendendo, Jorge, tanto nos contos como na vida.
Abraços
Aida
Um conto muito bem escrito, de história interessante, a começar pelo cheiro bom de café carregado pelo vento. Sempre gostei das bravas histórias nas fazendas, muitas permeadas pelas guerras e combates que marcaram com bravura o Rio Grande do Sul. Érico Veríssimo tem seus famosos livros, alguns que foram filmados.
Não gosto nem admito as invasões dos "sem terra", Stédiles e outros, e todos sabem porquê.
Primoroso o teu conto, Jorge.
Abraço. Petuninha.
Bacana, tchê!
Um lindo e bem elaborado conto, Jorge.
Oportuno e responsável.
Beijos,
Carmem
Li, reli, gostei, regostei! Coisa de Mestre, Jorge! Abração!
Delicia ler esse conto, Jorge!
Amo esses cenários, aqui, mentalmente os visualizei,, local, aroma de café, sabor da polenta recheada de linguiça.Minha origem, não resisti, risos.
Lembra-se do Tempo e o Vento do grande escritor Érico Veríssimo?
Guardo o livro, até hoje, li, reli, N. vezes.
Feliz a escolha da imagem ilustrativa,.... bha tchê... que prenda linda.
Abraços.
Nadir
Invasores... Lembrei-me dos sem-terra. Tenho muito medo deles.
Belo o seu conto, Jorge.
Beijinho!
Fez-me lembrar logo no início de Érico Veríssimo. Boa narrativa do café, linguiça, cenário, cavalos manga-larga (conheço bem). Dos jagunços, do vento que elevam as vozes, isso é tiro e queda.
Bom conto, Jorge! A Daniela é linda.
Grande abraço aqui dos pampas. O vento está começando...
É uma parte do "Casarão", certo (?), já conhecia. Tem gente vendo similaridade com MST, isso lembra a "jararaca". Queria levar paulada na cabeça, parece que deram das boas. E e o "grande articulador", beócio, não consegue comprar mais ninguém, tá sem grana, seu cofrinho estourou, a PETROBRAS, ele estourou. Abraço. Celso
Passei por aqui e foi bom reler...
Um ótimo domingo, Jorge!
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