quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Melhor não ver

                                                 Melhor não ver

            Certas situações são embaraçosas.  A de ser ver cena comprometedora, por exemplo.  Não, não se trata de ficar caçando isso, fotografar e depois fazer mau uso do resultado.  É o acaso mesmo.
            O cara gostava de fotografia.  Invariavelmente estava com sua câmera, produto de qualidade.  No momento, estava diante de um simpático delegado de polícia, sim, isso existe, porque não?  Hábil no seu ofício.  Cabelos cortados sem obedecer as normas da época. Nem curtos, nem longos.  Barba rente, aparecendo só as pequenas pontas.
            — E que mesmo o senhor viu?
            — Nada, doutor. Eu não vi nada, estava começando o pôr-do-sol e eu não queria perder a oportunidade, o dia estava claro demais, eu estava observando isso, e nada mais.
            ‘— Então não viu a camioneta estacionada?
            — Eu nem sabia direito onde estava, doutor.  Não podia perder um segundo olhando coisa que não fosse céu e mar.
            — Mais nada?
            — Mais nada. E com cuidado, já havia tomado uns canecos de chope gelado, deveria ter deixado para depois, quando findasse o trabalho.
            — Pode ser mais claro?  Trabalho? Que espécie de trabalho?
            — Não está vendo, doutor? O senhor é policial. Sou fotógrafo, comecei amador, mas ganhei tantos concursos que comecei a participar mais e exposições, o trabalho antes amador acabou virando profissional.
            O homem estava falando a verdade.  Vestia-se comumente, camisa de algodão de qualidade, sapatos tipo tênis, mas o que chamava a atenção era a calça jeans, quem conhece identifica de pronto.  Inglesa, muitíssimo bem feita, corte fino e de requintada elegância.
            — O senhor não reparou nas duas moças sentadas quase ao seu lado?
            — Como não reparar, doutor? Lindas, as duas. Lindas...
            — Mas o céu estava mais lindo.
            — Não disse isso, doutor, eu não disse isso.  Claro que olhei para as duas, que também tomavam chope e conversavam muito amistosamente.
            — Amistosamente?  Não diria amorosamente?
            — Amorosamente?  Diria que não. Apenas se acarinhavam nas mãos, coisas comuns entre as mulheres.
            — Só isso?  Mais nada?
            — Doutor, não tenho o hábito de ficar bisbilhotando a vida dos outros.
            Não foi exatamente assim.  É evidente que a câmera fotográfica do homem foi examinada e o conteúdo revelador.  As duas lindas jovens, numa grande caminhoneta, seios livres, sem camisas, beijavam-se apaixonadamente, sem o menor receio e com todo o desejo contido, seus cabelos soltos e rostos bem moços, deixavam ver que se tratava de paixão.
O fotógrafo premiado fora contratado pelo marido de uma delas.  Sim, ele faria fotos do entardecer em tão lindo lugar, mas não apenas só isso.  As duas jovens estavam sob sua acurada mira.
É assim, quando tem de ser; não se pode evitar.  Quando há compromisso com homem, como havia, muitas vezes é melhor não ver.  Pode acabar em tragédia Sabe? Nem mais sei se pode mesmo.  Os fatos, os costumes, andam muito mudados atualmente.  Não sei o resultado. No começo, o marido da lourinha quis vingança selvagem.
            Dizem, eu não sei se isto é verdade, que os três convivem harmonicamente entre si.  Exemplo de igualdade social, sexual.
  

9 comentários:

Carmen Velloso disse...

Conheço cenas mais picantes suas, nunca publicadas. Excelente, meu querido. Há que ter coragem! É exatamente assim! Beijo, você é corajoso para a mentalidade tímida literária brasileira! Ponto, grande beijo!
Carmem

Ciducha Seefelder disse...

Gostei poeta!
Tempos modernos nos dias atuais.
Bela fotografia
Beijos

Caio Martins disse...

Hehe! Mestre Jorge, cinquenta anos atrás, quando éramos imortais, o tema seria classificado como "picante"...
Hoje não causa espanto ou celeuma, virou rotina. Ainda assim, para fotos que tais, há uma regra básica: publicou sem autorização do objeto da imagem, pode dar santo bode. No seu texto até que tudo terminou bem! Abração!

Aida Pietzarka disse...

Melhor solução, amor a três. Todos felizes. Pra quê tragédias?

CÉU disse...

E eu pensando que era mãe e filha!
Enfim, um texto mto bem escrito e com imensa imaginação, que decerto pode ser uma realidade.
O diálogo entre o fotógrafo e o doutor é mega interessante.
Menu à trois? Non, merci!

Beijos, querido Jorge!

Tais Luso de Carvalho disse...

Olá, Jorge, pois é, isso tudo é um quadro já meio curriqueiro em nossa sociedade, já não causa mais espanto, mas é certo que muitos correm atrás para ver a cena. Então é que não dá para entender.
Gostei do diálogo (rss), ninguém está aí!! Aquela coisa, ninguém viu, ninguém vê, ninguém sabe!
Um beijo, bom fim de semana, meu amigo!

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Então... agora os três que se cuidem, podem ser fotografados também!

marcia disse...

Jorge ótimo texto, bem atual mas com um porém:dessa vez não me surpreendeu no final bjus

Ana Freire disse...

E viveram felizes para sempre, ambos... os três... :-D
De facto o mundo... está a ficar liberal de mais, numas matérias... mas continua tão retrógrado em tantas outras...
Adorei o texto... e o diálogo... que nos dá a sensação de estar por perto... presenciando...
Um grande abraço! Continuação de uma óptima semana!
Ana