domingo, 5 de fevereiro de 2023


 

                         

                                                        Contradição                 

                             

                   Pedro estava arrumando suas coisas; faltava pouco para a pesca.

            — Apressa o café, mulher.  Tá quase na hora.

            - Vai já.  A água ainda não ferveu, mas não custa.

            Tudo ali era simples; a aldeia de pesca, em Itaipu, as casas do lugar, como a de Pedro: sala e quarto, contendo o mínimo indispensável – a mesa com quatro cadeiras, o armário envelhecido, o Cristo pendurado na parede.

            Na cozinha havia um modesto, mas bom fogão a gás e uma geladeira antiga: os peixes não eram ingratos com Pedro.

            Francisca – ela não gostava deste nome – trouxe o café.  Quentinho, cheiroso, perfumando a casa.

            Pedro e a mulher comeram pão com lingüiça, enquanto tomavam o café.  Já haviam comido uma banana antes.

            - O dia vai ser bom, mulher.  A água está quente, e não tem vento forte.  Viu o jeito do céu?

            — Inda não.

            —  Mas veja.  Vai dar peixe hoje, e não vai ser pouco não.

            — Tomara.

            — Enquanto comia, a mulher olhava o seu marido.  Bonito, o Pedro.  Moço, amigo dela e pai cuidadoso do pequeno filho, que havia feito dois anos no Natal.  Eles se orgulhavam disto: o menino nascera num dia de Natal.

            Francisca era feliz; tinha o que sonhava.  Diziam que Pedro era neto de um alemão, daí os seus olhos claros e um tipo nada grosseiro.  Queimado do Sol, mas ainda sem as rugas profundas dos velhos pescadores, e forte.  Forte como todo homem do mar.

            — Tá na hora.

            Beijou a mulher e passou a mão calejada, mas carinhosa, no rosto da esposa.

            — Sorte.

            — Vou ter, mulher.  Sempre tivemos, graças a Deus.

            — Graças.

            O dia já estava quase claro.  Por causa da montanha próxima, Pedro não podia ver aquela unha do Sol, que nascia de trás do mar. Mas já vira muitas vezes; era lindo e ele amava a beleza da aparição.  Primeiro, uma leve claridade.  Depois surgia a unha vermelha, semelhando brotar de dentro d’água, crescendo até se mostrar toda. Aí não se podia olhar mais, porque o brilho da bola vermelha era forte e queimava os olhos.

            Estavam em janeiro e por isso, embora ainda fosse cedo, o calor começava.

            A mulher deu-lhe adeus, da porta.  Pedro saiu para a praia, camisa de meia fina e muito branca, lavada com carinho, calça cortada pelos joelhos, pés descalços na areia fofa e acariciante.

            Numa sacola, levava pão e goiabada, além da garrafa de água.  Os amigos mexiam com ele por causa da merenda, mas vinha a justificativa: sentia fome durante a pesca, e a goiabada tirava um bocado daquele gosto de mar salgado.  Não que ele não gostasse do mar; nada disso.  Mas era bom comer algo doce, lá pelas nove horas, caso ainda não tivessem cercado o cardume.

            Os três homens esperavam-no.  Honório e seu filho Jairo, e o velho Elíseo, pescador experimentado.  Todos eram donos da canoa grande, bem construída e conservada com carinho.  Sempre pintada de novo, para durar bastante, a “Santa Rita” era invejada.  Canoa de peroba, não era de desarranjar à toa.

            Rede tratada vez por outra na fervura de casca de aroeira, que lhe dava mais resistência, além da cor vermelha, renovada.

            A “Santa Cecília" ia para o mar e eles remavam até cercar algum cardume.  Então, era só fazer a volta, estendendo a malha e retornar à praia.

            Puxavam, faziam força, a rede vinha lenta, pesadona de corvinas, tainhas, algumas lulas e, às vezes, xaréus.

            Quase sempre o trabalho era proveitoso; raro não trazerem bons peixes.

            Ruim era quando chovia muito, e a água estava fria.  Mas naquela época do ano isto quase não acontecia.

            — Que beleza, hem, seu Elíseo.  Peixe de dar com o pau!

            - Tempo bom, Pedro. ‘Inda vamos trazer muita coisa daí.

            — Se vamos!

            Recolhiam os peixes, e os compradores estavam esperando.  Guardavam na areia a canoa, estendiam a rede para secar.  Tudo muito organizado e metódico.  Depois, rumavam ao bar.

            - Me dá um negócio.

            E lá vinha a pinga.  Nem precisavam pedir mais; bastava aparecerem e o dono da venda preparava os copos, daqueles de fundo grosso, o martelo, como o chamavam.

            Pedro não tomava a cachaça de um só trago, igual aos outros.  Bebia um gole, acendia um cigarro, tirava umas baforadas.  Isto feito, liquidava o resto.

            Conversavam no botequim, fala calma, pausada, enquanto tomavam cerveja e comiam sardinhas fritas, com moderação.  Depois, iriam para casa almoçar.

            — Sorte hoje, mulher.  Eu não disse?

            — Pegaram muita coisa?

            — Então.  E vai continuar dando peixe, estamos na época.

            A comida era simples.  Feijão cozido com pedaço de toucinho e louro, para temperar bem.  Arroz branco e solto, farinha torrada e quase sempre, peixe.  O preço da carne estava exagerado; no mais, por que comprar carne se tinham tanto peixe?  Só na quarta-feira comiam carne, variando o prato.  Aos domingos, o almoço era mais cuidado, com salada e pudim de sobremesa.

            Depois, o café.  Pedro fumava um cigarro e dormia um pouco; o trabalho era bom, mas pesado.  Quando não botavam espinhéis ao largo, ele podia dormir mais e depois, com os outros, guardar a tralha de pesca.  Se colocavam espinhel, a canoa ficava dentro d’água e lá pelas três da tarde eles iam recolher as linhas.  Quando tinham sorte vinham peixes bons, coisa fina, de qualidade.

            Mas nem sempre deixavam o linhão comprido, pedra numa das pontas e bóia na outra, cheio de anzóis iscados esperando os peixes.

            “É duro puxar um espinhel”, pensava Pedro.  “Corta a mão quando tem muito peixe, ou quando vem algum grande. Miséria quando é cação.”

            Adormeceu pensando a grandeza do mar. Quando acordou, sentiu um pouco de frio.

            — Como tá o tempo, mulher?  Parece que o vento rondou.

            — A cara não é boa não.  Vai ver.

            Pedro foi até a porta da cozinha, uma que dava para o mar. Olhou o céu.  Lá longe, mas distante mesmo, a pretura.  O sudoeste começando fraco, mas insistente.

            — Vem ele, Chica.  Tá vindo de manso, mas não custa a soprar feito o cão.  E o aguaceiro vai ser brabo.  Olha lá – e apontou na direção das nuvens carregadas.

            — Que vale que você está aqui – falou a mulher, apertando-o contra o seu corpo.

            — É, mas aqueles na lancha, não.  Que imprudência!  Lanchão grande, podem chegar ao Rio muito antes do pau começar.  Nem ligam...

            Acarinhou a mulher, e tomaram mais café fresco.

            — Vai ser um bruto toró.  Mas amanhã é sábado e não íamos pescar mesmo, a de hoje foi muito boa, compensou por demais.  Esse raio desta gente que invade a praia espanta até marisco, e não deixa o pessoal trabalhar sem ficar pedindo um peixe.  Fingem que puxam a rede e depois já sabe: “me dá aquele ali?”.  Só apontam os graúdos.  Comigo não!  Dou nada, só se o cara for pobre mesmo.

            Conversou mais com a mulher, passando-lhe a mão nas pernas.

            — Pedro...

            — Ora, mulher.

            — De dia.

            — Que diferença faz?

            Deitada, Francisca pensou uma vez mais na sua felicidade; estava sorrindo ao lado daquele homem tão bom e correto.  Que mais podia desejar?

            — Vou esquentar a janta e preparar mais umas postas.

            — É, deu fome.

            Pedro foi até a venda.  Encontrou lá seus camaradas, que tinham o mesmo hábito, antes do jantar.  Mais uma cachacinha e conversa fiada.

            — Os caras da lancha vão se danar.  Ainda estão ali – falou.

            — Também vi.  Devem ser macacos velhos – disse um.

            — Qual!  Gente que entende de mar não se atreve.  São uns araras – foi a vez do velho Elíseo.

            — Porque têm estes lanchões, pensam que podem enfrentar qualquer coisa.  São burros.  Vai ver: tudo principiante.  Pelo jeito do barco não tem mês de construído.

            — Mas alguns são espertos, Elíseo – foi a vez de Honório.

            -—Lá isso são.  Mas poucos.  Gente danada mesmo é essa que tem barco a vela.  Ali não tem lugar pra trouxa, não.  Já conversei com muitos deles.  E digo: uns entendem muito mais de mar que a gente.  Sabem nomes de estrelas, força da vazante e da cheia, imagine, tem até aparelho para medir a velocidade do vento!  Já entrei num barcão destes.  Beleza de coisa bem tratada.  E que mastro!  Todo muito seguro por cabos de aço, falaram o nome, não mais.  Atravessam o mar, vão para África e não sei mais onde.  Já pensou?

            — Mas eu também iria com eles – falou Pedro.

            — Ir, vai.  Disso eu sei.  Mas quem dirige o barco? Você?  Pedro, eles sabem coisas estranhas. Orientam-se pelo Sol e pelas estrelas, usando um aparelho que também esqueci o nome, e usam hora diferente da nossa, é coisa complicada, não entendo nada disso – completou Honório.

            — É, mas vai ver que não sabem distinguir um cardume de sardinhas para um de corvinas.

            — Bom, este é o nosso ofício.

            Interrompeu o que dizia, quando alguém alertou sobre o tempo.

            — Gente, que chuvarada.  Cruzes!

            Realmente a chuva era das grandes.  Tocada forte pelo sudoeste apertado, lavava o chão e revirava as copas das árvores.  Um molecote entrou bar adentro, olhos espantados.

            — A lancha tá vindo para a praia!

            Os homens, todos que estavam bebericando, saíram rápidos e olharam o mar. Estavam encharcados pela chuva.  E viram a lancha vagarosamente vindo para a areia; o ferrou não estava bem unhado.

            Apanharam uma canoa leve, a “Neguinha”, uma âncora velha, mas em estado de ainda ser usada, e um rolo de cabo.  Não foi fácil chegarem ao barco ameaçado, mas homens calejados com as tempestades chegaram depressa.

            — Joga este ferro longe – berrava um.

            — Liga o motor, homem de Deus.

            — Unhou.  Veja, a lancha tá firme.

            Tão rápido subiram que nem puderam ver quem estava lá.  Cessado o tumulto, verificaram: só um casal.

            O rapazola, nervoso ainda com o acontecido, e a moça beirando o pânico.

            —  Muito, muito obrigado.  Não sei como agradecer.

            O rapaz apertava as mãos fortes que haviam salvado seu barco.

            — Estão encharcados!

            —  Ora, moço.  Num é a primeira vez...

            —  Vamos tomar algo.

            — Isso é bom, amigo!

            Ele apanhou uma garrafa de uísque estrangeiro, que estava muito na moda e encheu os pequenos copos, oferecendo um a um aos pescadores.

            — Ô que diferença para a cana brava!

            — E forte também.  É bom.

            — Vamos, bebam a vontade.  Vou pegar um queijo.

            — Não é preciso, moço.  A garrafa vai muito bem.  Inda vamos jantar.

            — Esperem até que a chuva e o vento passem um pouco.

            — Vamos esperar – falou novamente Elíseo – porque a situação ainda está meio braba.  Que houve com sua mão, Pedro?

            — Um corte, só.  Coisa de nada.

            A moça, bem mais calma, bonita e de uma graça perigosa, prontificou-se a pensar o ferimento.

            — Não senhora, já disse, não é nada.

            Exibiu o corte.  Não era profundo nem perigoso.  Sangrava um pouco, apenas.  Mas ela insistiu e já com a caixa de socorros, obrigatória em todos os barcos, limpou a mão de Pedro com água pura e passou bastante mertiolato, colocando uma pequena proteção de gaze e esparadrapo.

            Pedro não pode deixar de perceber o olhar da moça, infantil e malicioso ao mesmo tempo, seu corpo bonito, os cabelos compridos, a bermuda curta mostrando as pernas bem feitas.  Mas o diabo mesmo era aquele olhar!

            Como todo homem de vida simples, ele não a fitou mais.  Poderia ser percebido; não ficava bem.

            — Sorte a minha, vocês estarem por perto.  Ia encalhar, na certa.  E podia perder a lancha, com a arrebentação.

            — Por que não ligou o motor, moço?

            — A máquina não virou.  Bateria pifada.

            Pedro ajeitara-se num canto, e esquentou o corpo com o uísque, coisa boa que ele nunca bebera.  Gostou daquilo.  Era forte e tinha um cheiro bom, não queimava as narinas, como as cachaças ordinárias.  Vez por outra, atrevia-se a um olhar para a moça, mirada rápida.

            Durante a conversa comum, alegrada pelos goles, sentiu-se tonto.  Não só pela bebida: aquela mulher buliu com algo que dormia dentro dele.  E agora ela havia sentado bem junto ao canto onde ele estava.  Suas pernas tocaram-se de leve.  Pedro recolheu-as depressa, medroso.  O contato com as pernas macias aterrorizou mais ainda quando veio pela segunda vez.  O pequeno lampião aceso tinha luz fraca, mas ele se afastou novamente.  Não estava direito, e pronto.  Foi o que pensou na hora.

            O temporal arrefeceu, e com mais agradecimentos do moço, foram-se embora.

            Naquela noite, dois homens não ferraram no sono.

            O rapaz, invejando a vida simples, saudável e alegre dos pescadores, que tiravam com as mãos, do mar, o seu sustento.  Gente amiga e dura para enfrentar a vida, o mar, o tempo.  Sim, ele gostaria de poder existir da mesma maneira, morar na aldeia, ser pescador.  Tão diferente da vida que levava, como engenheiro numa grande firma, morando numa cidade sufocante.  Como eram felizes os pescadores!

            Pedro, pensando na moça. Que pernas!  E o estranho feitiço no olhar que possuía?  Francisca era ótima esposa, mas aquela mulher!

            Nova, rica, fresca e tão linda.

            Pela primeira vez na vida ele sonhou em um dia, ser dono de uma traineira.  Com o dinheiro dos lucros, compraria outra, e mais uma, até ficar também um homem rico.  Poderia morar na cidade grande, ter uma lancha igual àquela e, quem sabe, uma mulher com as pernas tão macias e olhos tão fascinantes..


Imagem: canoa de pesca.

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segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Eleições

                                              Eleições

 

            Meu blog silenciou.  Mas eu não o matei.

            Em primeiro lugar, presto minha mais sincera homenagem à Rainha Elizabeth II, que sempre admirei com o máximo respeito.

            Talvez não deveria constar de crônica política local, mas se minha mão não parou, respeito.  A gente começa a escrever com uma ideia, os pensamentos fluem e o resultado fica bastante diferente.  As eleições presidenciais, o sistema republicano democrata mais retrógrado que os estudiosos políticos ainda aplaudem,  dão poder a alguém de ser ditador com mandato certo durante um espaço de tempo, ainda existe.  E temos com isso os mais completos disparates.

                        Quase todos justificam com o regime político norte-americano, que não é nenhuma perfeição, mas a força descomunal do legislativo garante um bom equilíbrio, o que não se vê em outros países, Brasil incluído.  Um homem não pode representar um povo!  Só vários, em congresso, num gabinete determinado, cujo Primeiro-ministro comanda, é legal e democrata.  Falhou, vai a julgamento parlamentar. Vencido, nova eleição é feita pelos representantes do povo, até que logo a maioria declare, por voto, quem será o novo dirigente, que vai organizar o seu gabinete. 

            É a forma de poder mais honesta, racional e democrata que existe, hoje praticada pela maioria das nações.

           

            Envergonhado, volto a falar no Brasil.  Os candidatos que se destacam são Bolsonaro e Lula.  Um, completamente insano; outro, desonesto. 

 

            A imagem é homenagem a mais simpática, doce e honesta dirigente que já tivemos!  Obrigado, Lilibeth.    

 

sábado, 4 de junho de 2022


 

                                      O crime do século

 

            Sim, é o maior crime praticado no século vinte e um.

            Uma molecagem comunista, parida do czar Putin, o soberano de todas as Rússias.  Exatamente assim, contra uma nação bem menor, muito menos armada, agressão covarde, desumana e cruel.

            Putin está destruindo toda uma nação, um povo, uma república vizinha, e existe gente que ache normal tal fato, por ser um ‘negócio interno’.  O que está fazendo na Ucrânia é uma covardia sem limites.  Interessante.  Desde a revolução comunista, a Rússia moveu todos os ataques e massacres, tanto internos quanto externos.  Simplesmente, uma covardia nojenta, suja e covarde.

            Falam de Hitler, o grande canalha, como o grande safado de todos os tempos.  Um inocente, comparado com Stálin.  A vala de sangue aberta pelo comunismo soviético é a mais tenebrosa que o mundo conhece

Não sou direitista.  Nunca o capitalismo me envolveu.  Mas a democracia, soberana e honesta, é apaixonante!  Sem mandantes autoritários, ou donos da verdade.  Eles não existem.  O regime político livre não os suporta.  Em qualquer lugar desta terra.  Ideologias extremadas?  Danem-se!

Não só na Rússia, poderosa militarmente.  Também em outros lugares, onde os exércitos ainda utilizam fuzis enferrujados.

Vá para longe, Putin e não retorne.  Leve seus admiradores e muitos que se dizem contra.  Estamos precisando de ar!  Ar puro!


imagem: o jornal Pravda, ou Verdade....

sexta-feira, 27 de maio de 2022

"À sobra das chuteiras imortais"


 


“À sombra das chuteiras imortais”

 

 

 

Quando uso o título, que era uma coluna de Nelson Rodrigues, quero prestar uma homenagem ao nosso teatrólogo maior, a Newton Santos e a Garrincha.

Quem contou esta história, na coluna que me apoderei do nome, foi Nelson.

O Brasil jogava a Copa de 1958, na Suécia, onde após luta feroz sagrou-se campeão do mundo pela primeira vez.  Invicto!

Eram os áureos tempos de Didi, Newton Santos, Garrincha e um menino que aparecia, chamado Edson e apelidado Pelé.

Deixo o futebol de lado e passo aos fatos.  Garrincha era um cidadão que nunca ninguém conseguiu definir; se um pouco retardado ou incrivelmente ingênuo.

O fato é que viu numa loja em Estocolmo uma raridade com que todos sonhavam: um pequeno rádio de pilha. Desejo de qualquer um no Brasil possuir a cobiçada peça.

Não duvidou.  Comprou o rádio e chegou feliz com ele na concentração.

Ligou o rádio, mas as estações suecas não paravam de falar, e ele ficou muito decepcionado.  Quis trocar o rádio, mas o velho Newton Santos, seu protetor até a morte, prontificou-se.  Comprou o radinho.  Fez questão.

Newton pagou a mesma quantia que Garrincha e ficou com o rádio.

Foi o que bastou para o homem das pernas tortas, terror das defesas inimigas, sair contando que “o compadre Newton deve estar doido. Fez questão de comprar um rádio meu que só fala uma língua que ninguém entende.”

A Copa foi ganha, o Brasil vibrou e apareceu no futebol o tal garoto genial, o Pelé.  Encantou o mundo, e em pouco tempo o apelido de “Rei” foi dado e dura até hoje, merecidamente.

Chegando ao Brasil, mesmo no avião, Newton Santos ligou o famoso radinho que comprara de Garrincha.  Falava um português perfeito, captando as emissoras locais.  Garrincha não entendeu nada!  Rindo, seu velho amigo devolveu o aparelho ao antigo dono.  Não quis de forma nenhuma receber o dinheiro, embora Garrincha insistisse.  O pobre Mané não sabia que na Suécia o rádio só iria pegar ondas locais mesmo.

Ficou numa alegria de menino, coisa que ele nunca deixou de ser, e contava para todos sobre a bondade do amigo.

São coisas do futebol; coisas da vida.


imagem:  Newton Santos, ainda jovem

sexta-feira, 25 de março de 2022

Antero do sino




 

                                                     Antero do Sino

 

 

 

 

            Vindo ainda pequeno de Feira de Santana com pai, mãe e irmãos, Antero Siqueira desfrutou da calma e da camaradagem dos seus novos amigos que moravam na cidade onde o pai tinha escolhido para sair da Bahia.

            Não existiam motivos para a saída da cidade baiana, até que o pai de Antero, Honorato Siqueira, meteu a faca num adversário maldoso e antigo  que tinha.  Cupelo morreu na hora, não resistiu aos golpes recebidos.  Azar o dele, não tinha nada que se meter com Glorinha, filha mais velha de Honorato.  Descaradamente, Cupelo havia passado a mão nas pernas da moça, na feira, quando ela fazia compras para a mãe.  Embora vistosa e com cara muito bonita, a moça de apenas 16 anos não merecia a gracinha de Cupelo, visto e revisto na cidade como um conquistador audacioso e barato.

            Quando Honorato interrompeu os goles de pinga que o safado estava calmamente bebendo, e pediu satisfações ao namorador ordinário conhecido, este não teve dúvidas.  Abriu o paletó e mostrou a garrucha que sempre o acompanhava.  Esqueceu, porém que quando um pai vai tomar satisfação de mal feito a filho seu, não costuma ir desarmado.  E aconteceu o inevitável.  Honorato já não estava calmo, nem razões havia para isto.  A faca que carregava, desta do tipo de escoteiro, não muito comprida, mas amolada e guardada na bainha de couro, apareceu rápida nas mãos do pai injuriado – era como ele via o fato.  Os médicos que examinaram Cupelo constataram três ferimentos, mas ninguém presente, nem mesmo Honorato, contou os golpes desferidos no debochado que deveria saber que mais cedo, mais tarde, iria terminar desta forma nas mãos de um pai, noivo ou marido.

            Até resolver direito o que faria, Honorato ficou sob a proteção do coronel Elias, proprietário de um mundão de terras na região.  Podia continuar na fazenda, mas não queria viver como bicho coitado.

            O coronel, homem de conhecimentos, sugeriu a cidade no interior de São Paulo.  Tinha um irmão que morava lá, vivia da lavoura e proclamava a pequena cidade como sendo o próprio paraíso.  Honorato mais mulher e três filhos rumou para a cidade, onde já o aguardava o irmão do coronel Elias, que também era conhecido seu.

            Enquanto não arranjou onde ficar, morou na fazendola do Quincas, que o conhecia muito bem, trabalharam juntos numa pequena fundição em Salvador, quando jovens.  Faziam muitas peças, praticamente todas sob encomenda.  O negócio pequeno não era nada ingrato; rendia uns bons trocados.

            E foi exatamente uma pequena fundição, em sociedade com o velho amigo e ainda saudoso de ver o metal líquido ganhando forma, que Honorato começou vida nova.  Quincas arranjou um empréstimo com o irmão, o investimento não era de monta, mas também não era de assustar ninguém.

            A fundição foi inaugurada e os moradores da pequena e calma cidade ficaram orgulhosos de existir naquela pacífica terra um negócio de cidade grande, segundo eles pensavam.

            A cidade era toda arborizada, clima ameno, gente tranqüila jogando cartas ou dominó nas praças onde não faltavam canteiros floridos.

            O tempo passou, Glorinha casou, Honorato foi avô de uma linda menina com os olhos claros, pois sobravam italianos e descendentes na cidade.

            Antero foi bom aluno, podia ter estudado para ser doutor, mas preferiu trabalhar com o pai, na fundição.  Em pouco tempo, dominava a arte de construir moldes, conhecer a exata temperatura do forno para derreter metais e compor ligas que faziam a parte final do que executavam.  As encomendas eram quase todas de fora da cidade.

            Têm fatos que não se explicam.  Num temporal furioso, um raio destruiu a torre da igreja da cidade, e o sino veio abaixo, rachando não muito, mas o suficiente para soar muito mal, quando tocado.

            Cidade do interior sem igreja não é cidade.  Tão logo moradores que tinham por ofício a construção, repararam a torre.  Deu trabalho, mas valeu a pena.  Ficou faltando o sino, guardado nos fundos da igreja, num pequeno pátio.

            Lembraram logo de Antero, que agora dirigia a pequena fundição, para reparar o sinaleiro das horas e instrumento indispensável nas festas.

            Antero examinou, pensou, mediu.  O sino no pátio tinha conserto e cabia no seu forno.  Depois de cuidadosamente reparado, tendo atenção especial para quando soasse não dar a impressão que tinham batucado numa lata velha, mas num instrumento de respeito, o sino voltou ao seu lugar original.

            Para encantamento dos moradores e do próprio Antero e os homens que conseguiram recuperar a peça, seu som ficou mais bonito.

            Comemoração geral, agradecimentos até do bispo!

            E o já não moço fundidor ganhou o apelido de Antero do Sino.  Nunca havia desejado fama ou riqueza, mas ficou conhecido, comprou um forno maior e contratou novos empregados, que ele mesmo se encarregou de ensinar o ofício e trabalhar observando sempre o cuidado, o amor pelo que se faz.

            O tempo passa célere, e assim aconteceu com Antero e outros moradores.  Antero do Sino já havia completado 40 anos.

            O filho mais velho do Cupelo tinha um pouco menos idade.  Mas guardava o rancor ainda dentro do peito, esta coisa amaldiçoada que destrói gente e o mundo.  Descobrira onde estava o homem que matara seu pai, e havia jurado vingança.  Honorato estava muito velho, quase não fazia mais do que comer e dormir.  Permitia-se, e que ninguém se metesse, a tomar um trago de pinga antes do almoço, e só.  Nem cartas ia jogar mais com os velhos amigos, só aos sábados comparecia.

            Canalhas não merecem nomes para a posteridade.  O filho de Cupelo, na tocaia, atirou quatro vezes contra Antero.  Não vai pai, vai filho, pensou a cabeça imunda.

            Antero tombou mortalmente.  A antiga história de Feira de Santana permaneceu desconhecida.

            No seu enterro, o sino da igreja tocou todo o tempo. Som triste, choroso, despedindo-se de quem lhe havia dado alma.  

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

A verdade do Joca


 

                                   A verdade do Joca

 

 

            Joca é o apelido familiar de um cidadão sui generis.  Seu nome é João Carlos.

            Nascido com dificuldade, até hoje conseguiu suplantar todo o empecilho que encontra pela frente, ninguém sabe direito como consegue.  Mora sozinho numa casa grande, e de lá não sai de forma alguma.  Por mais que tentem, com todas as suas pseudo dificuldades, ele é taxativo:  “a casa é minha, gosto dela e ninguém me tira daqui.”

            — Mas Joca, esta casa é muito grande para você.

            — É nada.  Dou conta dela muito bem.  É minha, não saio daqui.

            — Mas uma casa menor seria mais fácil de morar, Joca!

            — Não quero saber.  Eu gosto dessa, entendeu? – e era muito difícil tentar convencer o eremita dentro da casa grande.

            Algumas pessoas, nunca sabemos determinar o motivo, são assim.  Não é nada fácil, ou melhor, é impossível tentar convencê-las.  O problema seria bem mais fácil de ser entendido a partir do momento que passamos a respeitar a vontade alheia, quando ela é autêntica e não vai de encontro a nenhuma norma estabelecida.

            — E para comer, Joca?

            — Tenho telefone, basta ligar para onde eu quero e pedir.

            — Uma pensão talvez fosse bem mais fácil.

            — Eu como na hora que quero, e não gosto de lavagem – era como ele se referia à comida de pensão, por melhor que fosse.

            — Prefere esta comida gordurosa de padarias, que só servem para engordar.

            — Prefiro, e você não tem nada com isto. – Ficava irritado quando alguém queria impor sua vontade sobre ele.  Fora disso, é uma pessoa agradável, conhecedora de assuntos que o cidadão normal não se interessa muito.

            Houve época, quando era mais moço, que conhecia de cabeça pelo menos cem telefones de amigos do pai, lojas de ferragem, pontos de táxi, casas que vendem disco.  Freguês antigo do “Rei da Voz” e da sua principal concorrente, as “Lojas Palermo”, encomendava os discos de sua preferência.

            Encomenda do Joca é coisa séria!  Os vendedores cuidavam de procurar os discos de ópera, sua preferência, e outros gêneros requintados.  Joca sempre teve créditos, créditos altos, diga-se de passagem, nas lojas de disco.  Jamais deixou de honrar um compromisso.  Freguês assim, todo vendedor gosta!

            Hoje não sai mais de casa.  Tendo tudo o que necessita, só em casos especiais desce a escada que chega ao portão.  Aniversários e festas, não perdoa.  Comparece a todas, com um belo apetite para os salgadinhos que só não arrebentam com sua pressão porque está sob controle de anti-hipertensivo, e o pequeno aumento na pressão que tinha simplesmente desapareceu com o remédio.

            Liga pouco, na verdade não liga nada na maneira de se vestir.  Morando sozinho, não tem explicações a dar a terceiros, e não aparece para estranhos, salvo o irmão e a cunhada, sua anja da guarda.  Aliás, o Joca tem esta característica.  Sem fazer a menor força, nem pagando dinheiro, tem o poder de angariar com facilidade anjos da guarda.  Não fossem eles, estaria comprometido, pois seu estado não permite mais fazer as estripulias.  Quando mais novo, era um problema sério, mas que nunca praticou uma ofensa a quem quer que fosse.

            Joca tem casos famosos.  Nunca enxergou direito.  No entanto, durante uma época que faltava açúcar no Rio, e ele tinha uma tia moradora em Santa Teresa, não duvidou em prestar auxílio.  Era época de chuvas fortes, e o bonde estava em greve.  Bonde não faz greve, mas como todos falam assim, quando os trabalhadores param de trabalhar, bonde, banco, correio e até hospital – imaginem o absurdo – fazem greve.

            Como chegar a Santa Teresa?  Subindo a pé pelas ruas?  Seria o normal.

            O normal para Joca não existe.  Foi a pé mesmo, pela linha do bonde, no alto dos Arcos de Santa Teresa.

            Estava literalmente como um burro de carga.  No braço esquerdo, uma mala com roupas e um guarda-chuva.  Na mão direita, um saco reforçado que continha cinco quilos de açúcar.  Mercadoria entregue, a tia ligou para a casa dos seus pais, espantada com o “presente”.  Não, não era um favor da irmã, mãe do Joca.  A iniciativa foi própria...

            Interessante que Joca passava uns dois, três dias com a tia Geta. Mas quem ia trazer de volta o aventureiro era o seu irmão, coisa que o incomodava. Tia Julieta tinha sempre um delicioso café com broa de milho, que o irmão adorava.  Depois de conversar um pouco e fumar muito, devido ao excelente gosto do café, trazia o fujão de volta.

            Joca é um cidadão do Mundo.  Um mistério, igualmente.  Com o pai à morte, falava sem cessar, não se sabe a causa certa.  Poderia ser para atenuar a ansiedade.  Um menos avisado, vendo o fato, falou baixo:

            — Insensível. Não tem a noção da realidade.

            Não teria mesmo?  Ou sua maneira de pensar é superior, entende perfeitamente o que está a sua volta, por uma questão de necessidade  de compreender o mundo?

            Difícil dizer.  O homem é uma incógnita de equação difícil, elegante na sua maneira de resolver.  Como podemos avaliar com isenção de ânimos e preconceitos quem sabe a história de tantas óperas, e ri às gargalhadas quando lê “Dom Quixote”, que conhece quase de cor?

            Uma coisa é certa.  Joca é uma pessoa feliz.

            — Sem meu cachorro e minhas músicas eu não fico!

            Suas únicas exigências, num mundo tão cretino que vivemos hoje.  O amor do cachorro bassê Sharpie e da música que não tem começo, nem fim.

            Os seus sanduíches de atum, praticamente diários.  Sua permanente meia, que usa sempre.  O gosto pelas coisas simples.

            Defeitos?  Têm todos os que a humanidade carrega nas costas!  Muitas vezes chato, chatíssimo, chatérrimo, mas sem rancor.  A violência que o mundo prega e vive não faz parte do seu cotidiano.  Está ficando velho, o Joca. Velho e sábio.

            Como sei disso tudo?  Sabendo, ora.  Joca é o meu irmão João Carlos, uma das três rosas rosas da imagem que sempre uso quando falo da família.  As duas outras são Julinha e Jorge, mãe e pai, todos falecidos

            No dia quinze deste mês do ano, Joca faria setenta e oito anos!  Saudade de todos! 

        

 

 

 

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

A mangueira morreu


 

                                            A mangueira morreu

 

            Pois é!   A enorme e bela mangueira, que era uma referência da minha casa, morreu.

            Existe uma praga de cupim, que ataca árvores frutíferas, com mais frequência.  Pegou a mangueira que eu e meu pai plantamos.  Na época, aos sete anos de idade, ou pouco menos.  Mas guardo recordação disso até hoje.

 

            Ela cresceu muito, seu tronco só dois homens o abraçavam.  A fruta?  Deliciosa e quando chegava novembro, já apareciam as primeiras, deliciosas, enormes, sem fiapos, doces que só elas!  Uma dádiva!  A molecada da rua botava-nos, eu e minha mulher, doidos: “moça! Moooçaaaaaaa! Me dá uma manga?”  Então fui obrigado a instituir uma regra.  Manga só de manhã, durante a tarde nem pensar.  Lei respeitada por todos, comentavam uns com os outros  a decisão de seu Jorge.

            O que eu não sabia é que seu Jorge havia ficado famoso.  “Muito boa praça, mas meio doido só deixa pagar manga de manhã.  E avisa que pode ‘pelar’ a mangueira”,  é o que diziam.  Realmente, era assim.

            Desconfiava que muitos estavam matando a fome com as mangas enormes. Sim, caso você comesse  uma inteira, não almoçava, várias vezes experimentei isso, no calor de verão. Fosse comida uma manga tirada do pé, doce como era, não autorizava depois um prato de feijão.  Só mais tarde, bem mais tarde.

            Certa noite fui até a padaria próxima, comprar cigarros, havia esquecido dos dois maços tradicionais.  No meio do quarteirão, vejo uma figura forte, e se dirigindo para mim.  “Ferrei-me”, pensei.

— Seu Jorge!

— Sim, eu!

— Está de cabelos brancos!

— Ninguém é jovem a vida inteira, meu caro. Mas diga.  Donde me conhece?

— Não se lembra do Nico, que o senhor chamava de mico, quando subia na mangueira da sua casa?

Em pouco tempo lembrei-me do fraquinho e bem moreno guri, que vinha com um saco, subia nos pontos mais altos da mangueira, depenava tudo e me deixava nervoso, tão alto ele subia, em galhos finos.

— Lembro sim!  Não me diga que é você, cara!

— O próprio.  Por sua causa não tive fome muitas vezes.

— Como assim?

— Eu comia uma manga, vendia as outras e quase todo o verão era a mesma coisa. Não lhe dou um grande abraço porque estou muito doente.  Obrigado, seu Jorge.  E foi-se embora rápido.

Nunca mais o vi.

 

Sabem?  Deu-me mais saudade da minha mangueira. Soube agora que ela tem 'filha' e 'neta', em sítio de um primo. E mais outras, perto da minha casa.  A morte não existe! 


Imagem: rosa.  Eu plantei. De galho, na poda.