Abrigo 4, Pedra do Sino
O prazer de escalar montanhas é grande. Existem muitas pessoas que têm verdadeira paixão pelo montanhismo, palavra mais adequada para escaladas e caminhadas, leves ou pesadas, no nosso país. Afinal, alpinismo, como muitos falam, é a prática deste saudável esporte nos Alpes, embora o termo seja usado por todos.
Deixando a nossa complicada língua portuguesa com suas regras rígidas e convenções que servem para atrapalhar, num grande número de casos, tanto faz falar em montanhismo ou alpinismo, já que esta última foi consagrada pelo uso. O mais importante é praticar este esporte, desconhecido pela massa, que confunde escalada com subida em montanha. Esta mania de querer explicar tudo torna as coisas chatas. Mas escalada é quando a pessoa atinge o cume das montanhas usando cordas, mosquetões e grampos. Corda todo mundo sabe o que é. A empregada nas escaladas, há mais de quarenta anos, é de seda de nylon, macia, capaz de suportar pesos incríveis e não é pesada, nem endurece quando está molhada, como a velha e tradicional corda de cânhamo ou de outra fibra, como o sisal.
Mosquetão é peça indispensável no montanhismo. Nada mais é do que um artefato feito em alumínio especial, com forma retangular e circular nas extremidades. Possui um mecanismo simples, que permite a abertura de um dos lados com facilidade, e o trancamento também. É uma forma bastante melhorada dos prendedores metálicos existentes na ponta das guias para conduzir cães, e usada do mesmo modo: abre-se a peça e coloca na argola que existe na coleira. O fechamento por pressão é automático, em ambos os casos. Difere apenas no mosquetão, que é trancado por uma mola, enquanto o mosquetão das guias para os cães fecha pela força do próprio metal, que reage a abertura e volta ao normal por conta da propriedade dos metais, sem auxílio de mola.
Restam poucos instrumentos usados nas montanhas brasileiras, como o grampo, que nada mais é do que um prego grande, bem maior dos que usamos, mais grosso e tem uma argola de aço numa das extremidades. A argola serve para encaixar os mosquetões, que darão segurança ao escalador, pois ele está sempre com um cinto de proteção, do qual sai uma pequena corda com um mosquetão na outra extremidade, e que vai à argola do grampo. Por sua vez, este é fixado solidamente na pedra, trabalho que cansa qualquer um, bem mais do que acompanhar toda esta explicação necessária. Se não desistiu de ler, além de ter aprendido na teoria como se tem segurança e como se faz uma escalada, a coisa fica mais amena, a cabeça não faz esforço para pensar em tanta explicação que, afinal, não faz diferença alguma neste fato que vai ser contado.
Nos idos tempos do ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1966, dois jovens adeptos do montanhismo decidiram fazer a travessia entre as cidades de Petrópolis e Teresópolis, numa longa e cansativa caminhada que existe entre as montanhas da Serra dos Órgãos.
O caminho na montanha alta – aqui sempre com mais de dois mil metros de altitude – é um prazer quase indescritível.
O ar é puro, a pessoa respira com prazer, os pulmões agradecem e o resto do corpo e mente também. A mata fechada que caracteriza esta travessia esconde belezas que normalmente o homem não está acostumado. O ar é frio, mas sem agredir quem está caminhando com pesadas mochilas. Durante a noite, pode-se dormir em abrigos, mas geralmente quem faz a travessia não tem tempo de alcançar o abrigo três, que fica na Pedra do Sino, em Teresópolis. Invariavelmente, todos preferem partir de Petrópolis, subir a picada que leva ao cume da montanha ou pegar algum atalho, nome que se dá aos caminhos mais curtos e mais difíceis de serem vencidos, por serem bem mais íngremes do que o caminho comum.
Durante todo este tempo, sente-se o frescor da montanha alta, o silêncio da floresta de árvores centenárias, abreviado, por vezes, pelo canto de algum pássaro. Por causa da altitude, muitas vezes nuvens mais baixas invadem o caminho, quando ficamos molhados pelas gotas d’água que elas contém. Mas é um prazer renovado; não se está caminhando na neblina, encontrada ao nível do mar, mas de nuvens. Quando são muito densas, tornam a visão um pouco prejudicada, mas isto é difícil acontecer.
Todo o resto é cautela para não pisar em alguma cobra, fato raro, pois elas somem quando escutam o barulho que fazemos. De resto, é sentir um mundo belo, calmo, de árvores copadas e muito altas em determinados trechos, olhar com curiosidade plantas que não conhecemos, muitas delas com flores exuberantes no colorido e na forma, típicas da alta montanha.
Durante quase todo o percurso escuta-se o agradável som de água que corre em pequenos riachos, descobrem-se minas que jorram sem cessar uma água puríssima, fria e gostosa de ser bebida.
Caminhar com a mochila pesada cansa. É quando sentamos no chão e procuramos alguma coisa para comer, geralmente fatias de salaminho ou lingüiça defumada, cortada com facas amoladíssimas, que sempre estão nos cintos dos montanhistas. Existem dois utensílios que não podem faltar nunca na tralha de quem se mete floresta adentro. Uma é uma excelente faca de campanha, com bainha. Outra é a lanterna de confiança, com pilhas novas e sobressalentes bem guardados na mochila. Hoje em dia, um celular pode ser de extrema necessidade, mas não é sempre que ele consegue alcançar uma antena repetidora, que vai possibilitar a comunicação.
Estas pequenas pausas, tanto para dar um pequeno descanso, como para se repor as calorias perdidas, com as fatias dos embutidos e pão, têm uma espécie de ritual. Não se costuma falar mais do que o necessário. Come-se em silêncio, enquanto as mochilas saem das costas molhadas pelo suor, por mais frio que esteja fazendo. Os mais precavidos levam sempre uma pequena manta, que colocam nas costas e esperam o suor secar, coisa rápida. Muitas vezes um gole pequeno de conhaque é bebido, mas alguns não gostam de beber enquanto estão fazendo esforço. Refeitos, é colocar a mochila nas costas e continuar desfrutando do enorme prazer que é sentir no corpo e na alma o ambiente tão calmo e acolhedor, embora temido por muitos. Temido porque nunca subiram uma alta montanha. Ter medo de escalada é normal, mas caminhar na mata fechada não assusta ninguém que esteja fazendo isto.
Era o que estavam fazendo Ivan e Alexandre, dois jovens Aspirantes da Escola Naval. Não estavam treinando. Faziam, há muito tempo, escaladas não muito difíceis e longas caminhadas pelas montanhas que existem no Estado do Rio de Janeiro.
Não se arriscaram em tentar atingir o abrigo três, da Pedra do Sino, pois haviam iniciado o percurso partindo de Petrópolis. Antes de escurecer já o terreno do acampamento onde iriam passar a noite estava limpo, o buraco feito no chão cavado e cheio de galhos secos e pequenos pedaços de tronco de árvores que se encontravam pelo chão. Garantiria o fogo de toda a noite, não em chamas, mas queimando em brasas. Foi nele que preparam a sopa de pacote, acompanhada por mais salame e pão. Depois, embora dê trabalho, nada como um bom café com uma farta dose de conhaque. Naquela época, o cigarro não era visto como hoje, um maldito veneno. Quase todo jovem fumava. Acenderam seus cigarros enquanto bebericavam o café e o conhaque, conversaram em voz baixa e tão logo estavam dormindo na pequena e muito protetora barraca de nylon, metidos em aconchegantes sacos de dormir. Foi um sono profundo e reparador.
Acordaram muito cedo, cada um procurou seu canto para aliviar os intestinos, lavaram-se num pequeno córrego, um fiozinho d’água, e continuaram a caminhada, após terem desmontado o acampamento e jogado no braseiro a terra que estava acumulada ao lado.
Seguiram caminho, após um farto café da manhã. Enganam-se os que pensam que não é possível uma boa refeição numa mata fechada. Quem tem experiência, sabe perfeitamente escolher um bom queijo que não se deteriore com facilidade, um leite condensado ou mesmo uma lata de leite em pó, pão integral, salame e café. Foi o que comeram. Depois, passaram uma flanela nas Colt. 45 da Escola Naval. Tinham permissão para isto; eram alunos do último ano e talvez os melhores competidores de tiro da Escola.
Por volta do meio-dia, atingiram o abrigo três, da Pedra do Sino. Este abrigo é velho e estava aos pedaços, interditado. Foi reconstruído e é uma excelente pousada na montanha. Um montanhista experimentado atinge o cume da Pedra do Sino, a partir do abrigo, em menos de meia hora.
Para a agradável surpresa de Ivan e Alexandre, havia um grupo de vinte bandeirantes, que estavam ocupando o abrigo. Todas se espantaram quando viram as pistolas nos coldres de couro cru com aba protetora, usados pelas forças armadas. Identificados, passaram a ser vistos com ótimos olhos e foram convidados para almoçar o bem feito angu com linguiça e queijo parmesão. E ovos cozidos, um verdadeiro banquete na selva. Em frente ao abrigo tem um descampado de bom tamanho. Os dois, metidos em sacos de dormir e na sombra, só acordaram às quatro horas da tarde, efeito do cansaço, do farto almoço com as bandeirantes e da boa dose do conhaque.
Combinaram com a chefa das bandeirantes que dormiriam no descampado, já que o abrigo estava todo ocupado. A intenção deles não era esta. Tinham planejado antes fazer uma rápida refeição no abrigo, levar o mínimo necessário, alcançar o topo do Sino e voltarem direto, até a sede do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, onde dormiriam no acampamento base e no dia seguinte voltariam para o Rio, de ônibus.
Mudaram de idéia quando encontraram as bandeirantes, resolvendo ficar. Ivan tinha machucado a mão e fez um curativo que já estava na hora de ser trocado. Coisa simples, mas nunca é demais cuidar destes pequenos ferimentos, que podem acabar se transformando em coisa séria.
Uma das bandeirantes perguntou a ele o que era aquilo. Ivan mostrou o ferimento, estava mesmo na hora de fazer novo curativo.
- Deixa isto comigo, rapaz. Sou a médica da turma. Eu faço o curativo.
Ivan não pode deixar de ver os belos olhos verdes, o rosto simpático da moça, seu interesse. Em pouco tempo, a bandeirante que não era médica, mas tinha todo o jeito de ser, inclusive pela caixa de aço inoxidável que trouxe, onde tinha todo tipo de pinças, tesouras e até mesmo fio de sutura, fez o cuidadoso curativo na mão do paciente.
- Pronto, rapaz. Não vai infeccionar, garanto.
- Muito obrigado. Ia pedir ao meu amigo para fazer isto, mas nada como ser atendido pela médica do grupo.
- Não sou médica. Estudo Letras. Mas sou a mais habilidosa de todas para fazer este tipo de atendimento. Quer café? Acabou de sair.
De fato, o cheiro de café perfumava todo o abrigo, e um bom café seria muito bem-vindo. Chamou o amigo e tomaram uma grande xícara, que havia no abrigo, enquanto fumavam. A chefe das moças veio falar com eles, que estavam na pequena varanda do abrigo.
- Poderiam fumar lá fora, por favor? As janelas já estão fechadas, para ir esquentando o abrigo. Não tem lugar para vocês. Acho que não se incomodam de dormir aí no descampado, pois já vi que são experientes e têm material para isto. Temos temperaturas negativas, nas madrugadas.
- Claro, não há problema algum. Dormiremos lá fora mesmo, e vamos fumar longe daqui – falou Alexandre, que ainda não tinha se manifestado muito.
- Ótimo. Vai ter um Fogo do Conselho durante a noite. Vocês estão convidados.
- Obrigado, Regina. Vamos participar com o maior prazer.
Ivan tinha perguntado a Lúcia, a médica do grupo, o nome da moça que comandava as bandeirantes.
Após uma saborosa sopa que parecia conter todos os ingredientes de uma cozinha dentro, descansaram e aguardaram a hora do Fogo do Conselho.
Para quem não conhece, é um hábito tradicional entre escoteiros e bandeirantes. Uma fogueira é acesa, e em volta dela fazem orações, recitam versos, comentam o dia e cantam. Os dois amigos viram uma bandeirante com um violão.
Ivan procurou sentar perto da sua protetora. Estava encantado com a moça e a noite estrelada, onde se podiam ver as constelações que eles, alunos da Escola Naval, conheciam tão bem, com o nome das estrelas inclusive, e não se fizeram de rogados quando elas pediram explicações. O Cruzeiro do Sul, todas conheciam. Abaixo estava a brilhante Alfa do Centauro, Rigel Kent, a estrela mais próxima de nós, uma dupla. Assim chamada porque a olho nu, só se vê uma estrela muito brilhante, azul. Mas usando um modesto binóculo, vemos a companheira, que gira em torno da principal como os planetas giram em torno do Sol.
Para deslumbramento das moças, os dois iam apontando para o céu e falando.
- Ali, perto das Três Marias. Aquela mancha é a grande nebulosa de Órion. Segundo os estudos, é o resultado de uma grande explosão de estrela. Apareceu um binóculo. Rigel Kent foi a escolhida pelos marujos para ser observada, e foi uma alegria geral quando viram que realmente não era uma só estrela, mas duas. As moças estavam adorando os ensinamentos, que agora, com o binóculo de uma delas, se tornavam mais interessantes.
Veio o chocolate quente, que seria servido a todos.
Mas antes, todos cantaram juntos o “Luar do Sertão”. Foi como uma prece. Afinadíssimos, com o violão muito bem tocado. Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco, de onde se encontram hoje, devem ter chorado de alegria, quando ouviram a música que os consagrou ser cantada com tanto entusiasmo e carinho.
Muitas outras coisas mais aconteceram.
Inclusive, o casamento de Ivan e Lúcia, que dura até hoje.
3 comentários:
Romântico, lírico, com fluente prosa, Sader vai transformando o seu blog num dos mais aprazíveis que temos. Deu vontade de estar cantando Luar do Sertão neste Fogo do Conselho.
Acompanho Jorge Sader no seu trabalho. Escreve para os melhores sites com brilhantismo, apresentado textos como este "Caminhos longos". Trabalha de verdade, o que eu admiro.
Como é que é, mesmo? Angú com linguiça (coitada, perdeu o acento...),queijinho, chocolate quente, ainda por cima a moça de olhos verdes curando dodói do cavalão? Só tinha que dar casório, a vontade do fulano rolou encosta abaixo... Grande Jorge, vale, e vai, o "Luar do Sertão" como homenagem à crônica e ao autor.
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