quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Presença

    

            Tudo no lugar tinha as suas marcas.  É inevitável isso, quando se mora no mesmo local há muito tempo.
            Assistia a um programa de televisão, feito de forma inteligente, pois informava sem o tradicional locutor dando notícias.  Sala grande, móveis indispensáveis, ausente esta mania de mesinhas com jarros e panos bordados.
            Não fumava nem bebia, mas nem sempre foi assim.  Houve época que eram dois maços de cigarros, muito café que ele mesmo fazia, gostava do ritual, pó escolhido entre marcas de alta qualidade, tinha um gosto achocolatado bastante discreto.  Canela em pau?  Parecia estar presente também.  Nada enjoativo ou estranho, era gosto de café forte mesmo, mas com estes traços.  Na caneca de louça pesada, mostrando os dizeres do navio de guerra a qual havia pertencido.  Uma recordação.  Uma tragada, pausa, um gole no café requintado.  O cálice com o conhaque espanhol perto e cheio, ainda não tinha sido tocado.
            O programa seguia dando notícias, sem aparentar ser um jornal.  Não prestava muita atenção, ou melhor, não prestava atenção nenhuma, seus pensamentos voavam, eram seguidos, sem pausa.
            O fato é que a namorada sumira, o homem de cabelos cinza já não via mais os olhos interrogativos dela, sua boca bem desenhada, expressão sempre jovial e descansada.  Deu mais um trago, cinzeiro de cerâmica grossa, grande e profundo, presente de um amigo artista.  O colorido do fundo, azul esverdeado brilhante, era vidro derretido, dava um toque especial na peça feita. Sumira de vez, acontecia, voltava inesperadamente, mesmo rosto juvenil, não poderia ser de outra forma.  Era bem nova.  Trinta anos não é nada para uma mulher, ela geralmente é encantada, cheia de vida, audaciosa.  Se todas não são assim, esta cuidava com carinho da vida que escolhera e seguia à risca. Livre, absolutamente livre.
            O telefone tocou alto, retirando de imediato qualquer pensamento da sua cabeça.  Um chato, na certa.
            — Querido, que voz rouca!
            — É você?  Que coisa!  Tá onde, garota?
            — Na sua porta.  Pode abrir a garagem?  Têm uns tipos estranhos por perto.
            Linda como sempre, estava também na sala. Elegante, vestido de lã marrom-avermelhado.  Olhos faiscantes e lábios cheios!  Não bebia nem fumava, mas aquele talvez tenha sido o beijo mais gostoso que trocaram.
           

             

7 comentários:

petuninha disse...

Olá, Jorge!
Linda Narrativa! Leve e bela, aos poucos desvenda a delícia de um beijo.

Quem era essa mulher elegante e fina? De onde vinha e o quê queria?

Para minha imaginação, ficará na imaginação de quem o ler!

Parabéns! Beijos.

Anderson Fabiano disse...

Jorjão, alguns textos carregam uma força tão precisa, tão irretocável, que não cabem comentários. Poderiam poluir a ideia.
Mas, a vida nos ensina palavras. E para esse seu texto, deito uma que me ocorreu lendo essa maravilha: Perfeito!
Ainda existem botões de rosa chá se abrindo para um pássaro curioso.

meu carinho,
Anderson Fabiano

Celso Felício Panza disse...

Dizem que sou leitor de almas, e como conheço vocêmuito bem e percebo além do horizonte, pois dizem que tenho antena (os amigos), vou longe, muito longe. Sonhar não faz mal, agora um sonho distante. Será que bate na porta "quando em vez(?)". DNA do velho Sader. Ainda bem que não é a Duda, que anda escrevendo na internet, e seu filho Iury.

Célia disse...

Fiquei idealizando um filme "de longa metragem"... Presença marcante!
Abraço.​

Marco Bastos disse...

Muito bom, caro Jorge. A vida também é encantamento. Bom de se ler.
abraços.

Shirley Brunelli disse...

Fiz parte da cena, invisível num canto da sala, observando os movimentos do homem sozinho. Espertinha a moça que cuidava bem dessa vida, sem deixar de alçar outros voos, para depois voltar para esse porto seguro, seguro literalmente. Ela sabia que um beijo calava mil perguntas.
Gostei do conto, dos detalhes leves, na medida certa. Gostei mesmo , Jorge!
Beijo!

Carmem Velloso disse...

Segura narrativa, Jorge. Pelo jeito, vai transformar em conto grande, ou mesmo romance.
Beijos.
Carmem