Tudo no lugar tinha as suas marcas. É inevitável isso, quando se mora no mesmo
local há muito tempo.
Assistia a um programa de televisão, feito de forma
inteligente, pois informava sem o tradicional locutor dando notícias. Sala grande, móveis indispensáveis, ausente
esta mania de mesinhas com jarros e panos bordados.
Não fumava nem bebia, mas nem sempre foi assim. Houve época que eram dois maços de cigarros,
muito café que ele mesmo fazia, gostava do ritual, pó escolhido entre marcas de
alta qualidade, tinha um gosto achocolatado bastante discreto. Canela em pau? Parecia estar presente também. Nada enjoativo ou estranho, era gosto de café
forte mesmo, mas com estes traços. Na caneca
de louça pesada, mostrando os dizeres do navio de guerra a qual havia
pertencido. Uma recordação. Uma tragada, pausa, um gole no café
requintado. O cálice com o conhaque espanhol
perto e cheio, ainda não tinha sido tocado.
O programa seguia dando notícias, sem aparentar ser um jornal. Não prestava muita atenção, ou melhor, não
prestava atenção nenhuma, seus pensamentos voavam, eram seguidos, sem pausa.
O fato é que a namorada sumira, o homem de cabelos cinza
já não via mais os olhos interrogativos dela, sua boca bem desenhada, expressão
sempre jovial e descansada. Deu mais um
trago, cinzeiro de cerâmica grossa, grande e profundo, presente de um amigo
artista. O colorido do fundo, azul
esverdeado brilhante, era vidro derretido, dava um toque especial na peça
feita. Sumira de vez, acontecia, voltava inesperadamente, mesmo rosto juvenil,
não poderia ser de outra forma. Era bem
nova. Trinta anos não é nada para uma
mulher, ela geralmente é encantada, cheia de vida, audaciosa. Se todas não são assim, esta cuidava com
carinho da vida que escolhera e seguia à risca. Livre, absolutamente livre.
O telefone tocou alto, retirando de imediato qualquer
pensamento da sua cabeça. Um chato, na
certa.
— Querido, que voz rouca!
— É você? Que
coisa! Tá onde, garota?
— Na sua porta.
Pode abrir a garagem? Têm uns
tipos estranhos por perto.
Linda como sempre, estava também na sala. Elegante,
vestido de lã marrom-avermelhado. Olhos
faiscantes e lábios cheios! Não bebia
nem fumava, mas aquele talvez tenha sido o beijo mais gostoso que trocaram.
7 comentários:
Olá, Jorge!
Linda Narrativa! Leve e bela, aos poucos desvenda a delícia de um beijo.
Quem era essa mulher elegante e fina? De onde vinha e o quê queria?
Para minha imaginação, ficará na imaginação de quem o ler!
Parabéns! Beijos.
Jorjão, alguns textos carregam uma força tão precisa, tão irretocável, que não cabem comentários. Poderiam poluir a ideia.
Mas, a vida nos ensina palavras. E para esse seu texto, deito uma que me ocorreu lendo essa maravilha: Perfeito!
Ainda existem botões de rosa chá se abrindo para um pássaro curioso.
meu carinho,
Anderson Fabiano
Dizem que sou leitor de almas, e como conheço vocêmuito bem e percebo além do horizonte, pois dizem que tenho antena (os amigos), vou longe, muito longe. Sonhar não faz mal, agora um sonho distante. Será que bate na porta "quando em vez(?)". DNA do velho Sader. Ainda bem que não é a Duda, que anda escrevendo na internet, e seu filho Iury.
Fiquei idealizando um filme "de longa metragem"... Presença marcante!
Abraço.
Muito bom, caro Jorge. A vida também é encantamento. Bom de se ler.
abraços.
Fiz parte da cena, invisível num canto da sala, observando os movimentos do homem sozinho. Espertinha a moça que cuidava bem dessa vida, sem deixar de alçar outros voos, para depois voltar para esse porto seguro, seguro literalmente. Ela sabia que um beijo calava mil perguntas.
Gostei do conto, dos detalhes leves, na medida certa. Gostei mesmo , Jorge!
Beijo!
Segura narrativa, Jorge. Pelo jeito, vai transformar em conto grande, ou mesmo romance.
Beijos.
Carmem
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