quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Cotidiano

                

            — Não está como devia.
            — Como?
            — Na temperatura certa. Gelou demais, parece refrigerante.
            A observação partia de um homem de meia idade, sentado confortavelmente numa cadeira de palha macia, com uma taça grande na mão, vinho branco, seco, sol e areia quentes, mas não torturantes, praia quase deserta.  O mar, água translúcida servia para completar o local paradisíaco.
            Quatro pessoas, eram dois casais.  Mulheres bonitas, bem tratadas e cuidadas, dinheiro é fonte poderosa de tratar-se como príncipes do século que estamos vivendo.  Como?  Não há príncipes?  Mas que engano... Há sim, e como!  Aqueles dois provavam isso.
            — Vou dar um mergulho.  Reclame com o garçom.  Este vinho está horroroso.
            Ora, é certo: pessoas que trabalham muito e são bem sucedidas têm todo o direito de gastarem seu dinheiro, não se discute.  O muito confortável hotel dava fundos para a praia, mar sem ondas, tudo muito bem cuidado, mesas pequenas de madeira rústica, as já faladas cadeiras de palha macia, mas muito resistentes, a mata do litoral costuma ser bastante forte.  Surgiu o servidor, as garrafas que se encontravam na sombra, debaixo do guarda-sol de grandes proporções, foram substituídas.  Os que ficaram na areia provaram o vinho e perceberam o cuidado dos responsáveis pelo hotel luxuoso em servir da melhor maneira possível seus clientes.  Ali, a concorrência era grande.
            — Sirva um pouco para mim, Milton. — A mulher era realmente deslumbrante, talvez por ainda ser jovem. Ambas que estavam com os dois ‘coroas’ amigos, não eram casadas com eles, e pouco os conheciam.  Profissionais.  Gente que o próprio hotel se encarrega de escolher com cuidado.  Os testes para detectar doenças sexualmente transmissíveis, nos dias atuais, são muito confiáveis.  Saúde externa e interna era o que não faltava.
            — Bem melhor do que estava aqui, gelado demais   — Tomou um longo gole e permitiu a todos que dessem uma boa olhada nos seios que estavam prestes a pular para fora da parte superior do biquíni.  Mesmo acostumado a ver mulheres lindíssimas, o garçom quase deixa cair a bandeja com duas garrafas de vinho e uma travessa de arenque defumado.
            Tudo era festa.  O sol, o mar, o céu infinito, as mulheres que pareciam ter saído de um conto de fadas.
            Longe, muito longe, um médico e duas enfermeiras, uma delas negra, estavam lutando com a respiração de um menino, parecia ter sete anos idade, coisa assim.  O ar não ventilava seus pulmões.  O grande acampamento de barracas de lona, onde se amontoavam velhos, crianças, mulheres e homens quase todos com as vestes em frangalhos, tudo era uma desgraça só.
            Pouco soro, alimentos usados com parcimônia, quase sem medicamentos, e sem qualquer garrafa de vinho branco, havia gente morrendo.


             

24 comentários:

Blogat disse...

Nosso(triste)mundo.

Shirley Brunelli disse...

O ser humano atingiu o terceiro milênio, mas, a maioria desconhece que está à beira de implacável destruição,provocada pelos excessos de ganância, orgulho, ateísmo e imoralidade.
Os contrastes... O sofrimento alheio machuca o nosso coração, mas, cada um é artífice do seu próprio destino...causa e efeito. Cada um está onde precisa e onde escolheu estar para evoluir. Quem sabe o que plantamos durante nossa caminhada pelas estradas do tempo?
Jorge, sou careta, não consigo separar o mundo material do espiritual.
Ótima crônica!
Beijos!!!

Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Gostei. Uma realidade do que se pode ter quando se tem dinheiro e bom gosto. O acidente do menino faz parte da vida cotidiana. Existe os dois lados da moeda. Fico com o sol mar e o bom vinho oferecido. Beijos

marcia mesquita disse...

Essa realidade não perdurará por muito tempo
Tenho fé

TEMAS LIVRES disse...

Putz e o garçon, estonteando com os lindos seios que escapavam do biquini tinha que ser o Milton. Por desaforo saio com esta:

Senhora com decote revelador
Lindos seios à mostra, encantos
A marca selada da mulher,
Pergunta ao dançarino fogoso:
- Sabes dizer os atributos da mulher
De que mais lindo ela tem?
- Sei-os, senhora, mas não direi...

Agora, as tragédias simultâneas e contraditórias da vida falei disso hoje. São os elementos incompreensíveis, aquele muro ao nosso lado que não consigamos ultrapassar que nos desafia e continuará a nos desafiar...
Sabe aquela pergunta que já virou até lugar comum? O sentido disso tudo.

Celso Felício Panza disse...

Jorge Sader Filho, longo tempo de conhecimento, tenho uma palavra só, você me conhece, disse que aqui, embora sempre você solicite, que não mais escreveria nesse espaço, que é público, como da última vez não fiz, embora vc instasse para tanto, as razões já foram dadas. Diante, contudo, da reiteração, iteração permanente,e da solicitação educada e sempre agradecendo com antecedência, e de você viver nessa clausura que impede nos avistarmos com frequência, mas parece que faz falta para você o que eu possa dizer. Isso sensibiliza e te atendo. Só por isso quebro o silêncio nessa coluna como antes dito. Faço um comentário sem que nada fosse preciso diante do comento inteligente da Efigênia, que assevera ser preciso ter bom gosto e condições para usufruir as conquistas honestas da vida. Não vejo na comparação paralela muita propriedade, desculpe, a humanidade tem vários destinos e sortes, exegese singela até para os menos inteligentes. Para exemplos necessitamos por vezes falarmos de nós mesmos, por exemplo estudei, estudo, muito, sou consultor jurídico, ainda, sem precisar, trabalhei e trabalho, lutei, coisa que muitos não fazem e ganham pelo trabalhos dos outros, via impostos, na Prefeitura onde vc é aposentado é um desse locais, vc pode ser testemunha, ganha-se sem nunca ter trabalhado, muitos, que nada fizeram para o retorno existente. Ganham como Ministros do Supremo, fiscais e outras categorias, e conhecem quase nada de tudo. Ainda faz pouco, um amigo na rua me disse quanto ganhava um desses beneficiários,um escândalo,como tudo no Brasil, que alguns atacam e estão na "boquinha". Estarei em Búzios como sempre em João Fernandes em janeiro, veja, tomando espumante na Praia de João Fernandes, e servido por garçons. No mundo continuarã morrendo pessoas, ajudo a a muitas pessoas, e a renda de meus livros dou para MÉDICOS SEM FRONTEIRAS, não posso fazer mais na fraude que caminha pelo mundo e ausência de caridade. Porissonão vejo propriedade na comparação.Pago pela edição de meus livros,dinheiro do meu trabalho, bem vendidos os livros, não são ficções, um esgotado, e não reembolso nem um tostão pela renda ocorrente, e não direi quanto já dei para vc não se assustar, podia te assustar. O pior é abandonar os que nos são caros, conheço alguns casos, um deles um primo de Thereza, o Zeca, vc conhece, que alugava de uma senhora uma edícula nos fundos da casa desta senhora. Conseguiram ( o sobrinho)que a senhora, sem sucessores diretor, doasse o imóvel a ele, após tomaram o mesmo dela, e a colocaram em um catre na Rua Santa Rosa, casa de "idosos", sem nenhuma assistência. Thereza,mimha mulher foi e constatou. Lá morreu, conheço muito outros casos de abandono com conhecidos e profissionalmente quando pude interferir. Essa tribo nãopresta e pagará e muitos já têm pago por esse tipo de conduta. É bom acentuar esses paralelos para que quem pode ajudar e não ajuda, e monopoliza o que tem e nada doa, poder se conscientizar, coisa meio difícil,mesmo sabendo que nada levará para o túmulo. Abr. Celso

Marcelo Sguassábia disse...

Pra dar jeito nisso, só a justiça divina. A dos homens já não consegue mais - o mundo acaba antes.

Rita Helena Neves disse...

O texto retrata, indiscutivelmente, os dois lados da miséria humana: a dificuldade financeirade uma família para salvar a vida do menino.
Por outro lado, a riqueza financeira que leva o homem à sua mais profunda pequenez. Ambos são miseráveis: o primeiro, cego à luz do conhecimento, subalterno, conformado, legado à própria sorte; o segundo, cego pela ganância, materialmente rico, mas, dominado por valores tão insignificantes, diante da vida. José Saramago, em "Ensaio sobre a cegueira".
A humanidade nsi

Rita Helena Neves disse...

A humanidade não mais caminha...; rasteja...

Rita Helena Neves disse...

Parabéns, Jorge! Seu texto grita aos homens de boa vontade.

Marco Bastos disse...

Hoje, como dantes, no seio da sociedade, sei-os, desde menino - encontros e desencontros, contradições e apropriações, como se não houvesse memória - maldita vaidade! Mas não espero por justiça divina. Há um fosso que separa e a cada dia mais se aprofunda. abrçs.

Dolce Vita disse...

Seu texto coloca em relevo profundos contrastes. Parabéns, Jorge!

Célia disse...

Sempre vivemos e convivemos com os contrastes sociais... Sociólogos, antropólogos e economistas em geral debatem, reúnem-se, defendem suas teses sempre regado à mordomia gastronômicas em hotéis de alto nível! Muitas vezes, até chegam a conclusões plausíveis, mas a solução jamais aparece. É o poder de poucos subordinando a muitos! Como mandar se não houver subordinados?
Abraço.

Carmem Velloso disse...

Jorge, acredito que esta situação durará por muitos e muitos anos. O homem ainda é bastante inconsciente, brutal e primitivo.
Beijos
Carmem

Sikas Albuquerque, disse...

É a vida,sempre foi assim, o homem é maldoso e somos produto do mal. Não havia o bem, só o bem no Éden, no Jardim tão conhecido? E omal prosperou, comeram a tal maçã. E logo depois veio a morte de Abel,fratricídio. E nada irá mudar isso, mas cada um vive o que lhe foi dado, desde que não faça mal aos outros, é simples e dá para entender. Um cenário do que eu disse e será sempre assim como você mostra e todos conhecem, enquento uns se distraem outros sofre, Gostei. Vim por indicação.Silas

marcia disse...

jorge,relatou com maestria o cotidiano em qualquer lugar desse... mundo sem porteira...Bjus

AIDA disse...

Essa pode ser a radiografia da nossa realidade. Enquanto nossa presidente paga diárias caríssimas em hotéis estrangeiros, com o dinheiro desviado dos contribuintes brasileiros, em vários hospitais, falta o básico.
Ou vendo a questão por outro ângulo; pessoas extremamente ricas, acostumadas ao luxo a vida toda, não se dão conta da realidade ao seu redor, tudo existe para lhe servir e dar prazer.
Mas adorei a descrição da praia paradisíaca. Poderia ser apenas um casal...

bela.brandao disse...

Jorge,

quão diversas são as formas de ver o cotidiano: para você, tão desigual, para o Chico (Buarque) tão igual afinal "Todo dia ela faz tudo sempre igual..."

Abraços,

Isabela

Tais Luso de Carvalho disse...

Esse cotidiano, essa diferença monstruosa entre as classes sociais sempre existirá. A verdade é que é cômoda a situação dos abastados que adoram um vinho e programas de luxo. Vivem a realidade deles, uma minoria poderosa, mas seja pelo motivo que for jamais abrirão mão dela. Cegueira, ganância, burrice.
A maioria é sobrevivente, distante, ainda mais em países onde a pobreza, a corrupção, a violência se alastra e predomina. Não há vontade de trabalhar pela coletividade. Sua crônica me levou a pensar na situação atual em que vivemos. Mas o efeito bumerangue avança, chegará neles, questão de tempo. Mas aí, Inês é morta...
Abraços, Jorge. A foto acima comove.

Rita Lavoyer disse...

Não precisamos mais, Jorge, ensaiarmos cegueiras: Ela já vem interpretada no nosso DNa e a atuamos muito bem nos nossos palcos diários.
Chocada com tanta realidade que nos expõe sem viseira alguma - nua e crua como ela é -
difícil de engolir, por isso viramos o rosto para não enxergamos onde a verdade dói.

Anderson Fabiano disse...

O homem ainda não aprendeu quem é esse tal de "próximo"... o homem ainda não sabe quem ele próprio é... e pior, o homem ainda não aprendeu a amar. E assim, o Sermão da Montanha vai pro vinagre a despeito de todos os bens que poderia produzir para a humanidade.
Um cara ganha grana e gasta com vinhos finos, resorts e moças de aluguel. Nada de errado se reservasse algum para quem não sabe o que é um Riesling.
Num outro ponto do mesmo mundo, um idiota lança uma bomba em nome de sabe-se lá quem, mata uma família, que deixa um órfão, sem remédio e com poucas chances de saber o que é um resort e muito menos de poder cobiçar seios perfeitos e oferecidos...
Triste mundo esse... e, como diria Guarnieri, um grito permanece solto no ar.
Meu carinho, parceiro querido, porque talvez só as nossas vozes sejam bálsamos para essa gente.
Anderson Fabiano

Vania Lopez disse...

diante da morte a vida segue como se fosse humana.


VL

Unknown disse...

Jorge, já te disse e repito: Tu tens o dom da descrição. Teu conto (?) poderia ser filmado. Esta é a realidade do mundo, há muito tempo. Não sei por quê me lembrei da Guerra da Bastilha. Abrs

Unknown disse...

O contraste terrível que vivemos: riqueza e pobreza lado a lado. Esta crônica está perfeita.