quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Pensando

Pão de centeio















Estava sentado na mesa da sala, lendo uma revista sobre cozinha. Mais especialmente, pães.
Tão simples, um pão. Mas assim mesmo tem seus segredos. Hoje, com as atuais máquinas, ficou mais fácil. Até o formato elas dão.
Mas quando você separa trigo e fermento, com um pouco de centeio para ficar mais nutritivo e saboroso, muda tudo. Unhas cortadas e escovadas; padeiro tem que ter mãos de cirurgião.
Pedra lisa, bem limpa. E começa o ritual. As farinhas de trigo e centeio são misturadas, faz-se um monte e com um buraco no meio, onde entra o fermento. Atenção com o sal que foi misturado nas farinhas. Pão sem sal não tem gosto, embora sal não seja tempero. Vai-se adicionando água.
E a paçoca está pronta, nada de ovos ou óleo. O copo de vinho leva mais um reforço. Começa a fase mais gostosa, amassar bem com os dedos, ficam imundos, mas de sujeira que não causa repugnância. Sabe, às vezes este amassar é até mesmo erótico.
E tome pancada com o bolo, cada vez mais plástico, vai tomando forma, os dedos ficam limpos na massa, que absorve tudo, e a gente continua sovando, apertando, até os dedos ficarem todos limpos, é um truque.
Mais tinto seco no copo, afinal ninguém é de ferro. Deixe a massa num tabuleiro, coberta com um pano limpo. Escolha um lugar sem corrente de ar, esta massa é cheia de dengos e frescura. Forno pré-aquecido, nem quero saber se tem hífen ou não. Quando estiver quente como uma mulher fogosa, coloque a massa que está o dobro do tamanho original. Risque com uma faca fina, ou gilete, atualmente em desuso.
Depois de quinze minutos, dê uma borrifa d’água com estes plásticos que servem para molhar plantas.
Ficou corado?
Vai para a mesa, com azeite extravirgem, tomates secos, queijo do seu gosto, e vinho. Muito vinho! Um filé de atum completa bem. Depois, maçã e pêra.
É uma delícia, ninguém duvida.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Os olhos da amada (tanca 127)

Rosa














Os olhos da amada
são na cor esverdeada
tranquila enseada.

Água límpida e abrigada
transformo minha morada.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Vela

Virada













Não morri nem quero virar náufrago.
Quem tem mais dos sessenta só pode mesmo é ir até Fernando de Noronha.
Foi o que fez o Lorentz, comandante do Saga, o melhor e mais famoso veleiro de corridas brasileiro. Fez sessenta, vendeu o Saga. E ganhou a Admiral Cup, na Inglaterra, que equivale à copa do mundo da vela.
Guguta é marinheiro excelente, era tripulante do Wa-Wa-Too, na época o segundo mais veloz do Brasil. Já velejamos muito, e a única virada que tomei foi no sharpie dos escoteiros. Perto do Morcego, bateu um vento doido e chuva de granizo.
Tempo bom! Imagina que depois da virada, todo mundo empurrou o barco até uma nesga de areia. Não me lembro se Jacaré estava nessa. Tiramos a água e viemos para o Iate Clube.
Quem eu tenho certeza de estar era o Miguel Ângelo, aquele que tinha uns vinte nomes, morava no edifício de Guy, Lia e Yara.
Obrigado! Fez com que eu tivesse catorze anos novamente, lembrando destes fatos distantes, que o tempo não me permite mais fazer. Empurrar um barco naufragado, na marra, parece causo, mas se você encontrar Guguta, pergunte a ele. Aproveita e manda um abraço para o malandro.
Tanta coisa...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Bimbo

Abandono

















Dizem que nem o cachorro do mendigo não o abandona jamais. Que esta é uma característica canina, nunca duvidei.
Existe cão famoso, Azor, imortalizado por Dostoievsky em Humilhados e Ofendidos.
Azor jamais abandonou seu dono. Compartilhava com ele as agruras do mundo.
Mas Bimbo, um vira-lata comum abandonou o velho mendigo por fome.
É natural que isto aconteça. A fome é uma desgraça que não atinge, naturalmente, só os seres humanos, todos sabem disso.
E Anastácio, seu dono, ficou sem a única companhia que possuía. Sentiu muito a perda. Afinal, era o seu único amigo.
Bimbo saiu mundo afora, revirou lixo, achou comida de primeira que não se sabe a razão, jogam fora. Encontrou cadelas que o aceitaram.
O mundo é estranho. Bimbo estava gostando da nova vida, comida vez por outra, cadelas igualmente. Mas mesmo os animais de estimação sentem saudade, quem não sabe disso?
Sentiu saudades da mão que o afagava, no frio da noite. Quando a cama era papelão grosso, e a coberta de trapos recolhidos nas ruas.
Os cães têm memória privilegiada. Encontrou o antigo dono. Mas tinha gente, muita gente olhando ao redor. Seu dono havia morrido, ninguém sabe se de fome ou de frio, ou dos dois juntos.
Dizem, eu não sei se isto é verdade, que Bimbo morreu três dias após.

sábado, 4 de setembro de 2010

Erro quase fatal

Ela

















O médico, velho amigo, examinava cuidadosamente os resultados dos testes e radiografia. Sua aparência era cada vez mais sisuda e preocupada.
- Alguma coisa errada?
- Não é possível. Você não apresenta sintoma nenhum disso.
- Disso o quê?
- Calma. Deixa eu olhar outra vez.
- Coisa séria?
- Pelo que vi, sim.
E mergulhou nos exames do amigo. Conferiu, reconferiu. Um tumor grande no pulmão esquerdo. Sinais de metástase.
Eram amigos há longos anos.
- Ou seus exames estão errados, ou a coisa vai de mal a pior. Vamos repetir esta porcariada. Você não tem sintomas disso.
- Câncer?
- Tomado. Tem tumores demais. Deixa que eu ligo para o laboratório.
Deu um abraço no amigo, levou até a porta e tentou acalmar: “ou erraram feio, ou trocaram o exame.”
O condenado entrou num bar próximo, tomou dois uísques grandes e fumou, o que não fazia tinha tempo.
Era sozinho. Morava num excelente apartamento de dois quartos, um luxo para os que não têm família. Vera não aguentara as estranhas atitudes do seu companheiro. Aparentemente, ele não ligou. Gostava dela, mas sua paixão mesmo era pelo corpo perfeito e a entrega total.
Estava com fome e sem a mínima vontade de pedir a excelente comida do restaurante ao lado, pratos sempre apetitosos. Abriu a geladeira, com o copo de uísque na mão. Sem gelo. Gostava da bebida e tinha sempre duas garrafas no seu móvel da sala. Esta comida não agrada ninguém. Arroz gelado e carne assada idem. Foi o que comeu.
Era major do exército, foi para a reserva quando perdeu dois dedos pequenos do pé esquerdo ao tentar chutar para longe uma granada de efeito moral.
Procurou sua Colt, no lugar onde sempre guardava. No extremo da cama, quase embaixo. Era fácil de ser encontrada. Pegou e olhou.
O brilho azulado profundo confundia com o negro. Retirou o carregador. Não gostava de usar cartucho na câmara, a bala na agulha. Pesada, a quarenta e cinco.
Imaginou-se tomando morfina sintética para passar as dores. Colocou mais uísque no copo. Bebia bem, mas não abusava.
Dormiu sem saber como, e foi acordado pelo telefone do amigo médico.
- Callado, os exames não são seus. Acabo de receber a informação do patologista.
- Não são meus? Não tenho nada?
- Nadinha!
Pegou a Colt e outro carregador. Nas forças especiais, o capitão Callado tinha o apelido de “Coisa Ruim”. Na noite anterior, quase tinha usado sua arma. Contra si mesmo. Foi direto para o laboratório. Não iria usar a quarenta e cinco, mas um golpe que poucos, muito poucos legistas sabem diagnosticar a causa mortis. Levou um susto.
Verinha, com seu escultural corpo, era a assistente do médico. Foi uma noite de amor desesperado.