sábado, 30 de maio de 2009

Mistério completo

Casarão









Quem passa nas ruas de paralelepípedos, colocados por mãos hábeis e caprichosas, caminhando pelas calçadas estreitas e sentindo a magia dos velhos casarões que costumam exibir palmeiras grandes, antigas e muito altas, dentre outras árvores que embelezam casas onde é fácil notar que aquele local já foi rico e importante, não pode deixar de sentir a sensação misteriosa do lugar.
Não são apenas casas grandes, suntuosas, hoje apenas mostra do que foram no passado. Existem muitas outras, quase sempre em vilas ou lugares elevados, onde pode-se ver que o local já foi parte importante da cidade.
Quase todas as construções são de pedra ou alvenaria de primeira qualidade, onde o pó de pedra foi fartamente usado. Os telhados são todos da época em que o velho e muito atraente lugar foi desenvolvendo-se.
Tudo isto, e muito mais, causa esta sensação de mistério a quem apenas passeia a pé pelas ruas do velho bairro, hoje tomado por moradores que não devem ter nada em comum com os que construíram o local.
Saem de dentro das casas sons de instrumentos musicais, o que pode ser explicado facilmente. Muitos professores de música moram no lugar, e quando não são eles que estão tocando seus pianos, violões, saxofones e flautas, principalmente, são os alunos. Fácil distinguir quem está tocando, pois quase sempre os aprendizes ainda estão sem identidade com o instrumento, e quem paga isso são os ouvidos dos que passam pelas ruas.
Outras vezes, dá-se justamente o contrario; caminhantes fazem uma ligeira pausa para ouvir um velho maestro tocando, ou mesmo um artista que em bom momento resolveu morar ali. Durante a noite é difícil escutar um som que não encante os ouvidos, principalmente quando os músicos estão tocando em conjunto, o que transforma o local num teatro.
Não é privilégio de quem sabe tirar a fala de um instrumento morar nas casas antigas. Parece que é regra lugares assim chamarem artistas. Não são poucos os ateliês de pintura, principalmente.
O professor André Ribeiro da Costa, de família ilustre, juntou como diz o povo o útil ao agradável, pois o campus da Universidade Federal está localizado na parte do bairro que fica junto ao mar.
Matemático de talento indiscutível, além de professor no Instituto de Ciências Exatas, era um apaixonado pela pesquisa de uma das partes mais sensíveis daquela ciência. Muitas obras sobre o cálculo de probabilidades eram de sua autoria, e são inúmeros os trabalhos do catedrático sobre o assunto.
Conhecido por todos, morava perto da praça antiga, toda em pedra, com seus bancos sempre ocupados ou por estudantes da universidade, ou pelos moradores. Entendiam-se bem, os jovens alunos e os moradores.
A casa do professor André, durante a noite, ficava iluminada com uma intensa e forte luz branca, que se apagava sempre depois da meia-noite. Seu computador ajudava bastante nas pesquisas, pois possuía programas especiais, todos matemáticos. Mesmo assim, André jamais deixou de lado sua calculadora HP. Foi nela que desenvolveu muitos estudos.
Admirado pelos discípulos, compreensivo e atento ao desenvolvimento dos mesmos, havia assumido uma posição de verdadeiro mestre e conselheiro.
Percebeu que uma talentosa aluna, Rita, não estava progredindo como devia. Perguntou-lhe o motivo e a resposta foi cheia de evasivas, mas isto não impediu que visse uma tristeza nos olhos da bela moça.
André era conhecedor da alma humana, ou pelo menos tentava compreender seus mistérios mais ocultos. Nunca deixou que a ciência tomasse conta da sua vida, que era aleatória também, como a sua especialidade no cálculo não exato, mas bastante provável de acontecer.
O tempo, ele sabia bem disso, mostraria o que estava acontecendo com a jovem aluna. Fosse um tipo comum, ele não daria tanta importância. Mas Rita demonstrava uma inteligência desenvolvida. Foi a partir deste momento que começaram a surgir fatos muito estranhos na sua vida.
Embora toda a área em que morava não pudesse ser alterada, pois estava tombada pelo Patrimônio, ele modificou discretamente a casa onde morava, envidraçando uma grande e fresca varanda que existia nos fundos, dando para um quintal.
Um pássaro, que ele julgava ser um sabiá-laranjeira, começou a dar bicadas nos vidros, pela manhã. A princípio, ele não deu muita atenção ao fato, mas o sabiá, durante a tarde e ninguém sabe como, passou a bicar o vidro do seu quarto também. Parecia conhecer os hábitos do dono da casa, que costumava dormir um pouco, antes de iniciar seus trabalhos noturnos.
- Pois é exatamente o que estou lhe dizendo, Yuri. Este passarinho está fazendo uma confusão na minha cabeça. Parece que me está querendo dizer alguma coisa – desabafou a um colega e amigo.
- André, você é cheio de mistérios! No momento, está trabalhando no quê?
- Nada, Yuri. Estou ajudando uns colegas da universidade, que pesquisam células-tronco.
- Tem certeza disso? Não está fazendo nada de diferente, ou pensando em algum caso em especial?
- Não, Yuri. Estou é aprendendo este assunto novo, eu compreendo muito pouco e não quero me envolver nesse estudo. O que faço é analisar os resultados para os geneticistas.
- E aquele mendigo que você abrigou, durante tanto tempo?
- Voltou para a fazenda em São Paulo.
Esta era outra história misteriosa em que André se meteu. No velho e simpático bairro, havia um mendigo que não incomodava ninguém. Morava na praça durante o verão e debaixo da marquise onde estava a loja de artigos para artistas plásticos. O professor acomodou o mendigo num quarto nos fundos da sua casa, e notou que o homem tinha mudado de comportamento completamente. Tomava banho todos os dias, lavava sempre as roupas que André havia dado e não possuía mais o aspecto de mendigo, até que acabou confessando ser professor de Literatura, a quem a vida não lhe tinha sido nada fácil. Perdera mulher e filha num desastre estúpido, e assumiu uma estranha vida de abandonado no mundo.
Depois de algum tempo, voltou para São Paulo, onde tinha uma fazenda que se achava sendo administrada por sobrinhos. André nunca mais soube notícias dele, até saber que Marco Antonio, assim era o seu nome, estava aposentado como professor de Literatura e morando na fazenda. Leu a carta do seu protegido, se é que foi isto mesmo que aconteceu, e ficou exultante.
Como poderia saber, com um gesto tão humanitário de abrigar um mendigo, que o homem também era professor? Era mais um fato bastante estranho na vida do matemático que já passara dos cinquenta anos de idade.
Procurou Rita, na saída de uma aula. Ela mantinha um olhar distante e triste. O que se abrigava dentro daquele coração, ninguém saberia dizer, só ela mesma. A moça permaneceu calada, mesmo quando ele perguntou a razão da sua falta de interesse nas aulas.
- A culpa é minha, Rita?
- De modo algum, professor. Acaso você não vê o progresso dos outros alunos?
- Sim, eles estão bem. Mas você é talentosa, Rita. Mostrou isto no ano passado.
- No ano passado, André, você conheceu outra Rita. Aquela já não existe mais, tento disfarçar, mas meu interior está mudado.
Percebendo que aquela conversa estava precipitada, André voltou para casa.
Tinha sido presenteado com uma excelente garrafa de vinho tinto, que gostava muito. Seus alunos eram atenciosos.
Enquanto tomava um cálice do tinto, o sabiá transmitia num estranho código Morse sua indecifrável mensagem. Este fato, agora, tinha-se transformado num hábito comum. O pássaro não sossegava mais.
“Este passarinho até parece que está querendo me dizer alguma coisa”, pensou. Jantou e dormiu com aquela idéia na cabeça.
Na manhã seguinte, para o seu espanto, foi acordado pela sua aluna que não estava correspondendo o esperado. Rita tocou a campainha da casa.
Com lágrimas nos olhos, pediu que não fosse abandonada.
- Mas o que você tem, Rita?
- Estou com os dias contados, professor.
- Dias contados? Anda estudando probabilidade demais, mocinha?
- Quem dera que fosse isso, André. Estou doente, e preciso de carinho para enfrentar o que estou passando.
- Mas está com belo aspecto, Rita. Você disse que está doente. Posso saber qual a doença?
- Você vai saber na hora certa.
- Mas que hora é esta?
- É fácil. Quando eu disser para você que quero viver! Não me abandone, André.
O professor, muito sério e respeitado, não entendeu o que a moça estava dizendo. Mas percebeu de imediato que não havia maldade nenhuma no que ela estava confessando.
- Vamos fazer um café, Rita. Estamos precisados.
- Eu faço com o maior prazer.
Não demorou, e toda a casa estava perfumada com o cheiro do café preparado por Rita, que esquentou o pó antes, um procedimento que poucos conhecem, hoje.
Tomaram o café juntos, havia queijo e pão integral, na geladeira.
- Rita, fale o que você tem comigo. Vão acabar pensando mal, você sabe como é esta gente.
- Você vai saber no momento certo, André. Mas por favor, não me abandone. Eu preciso de quem me proteja. E este alguém é você.
- Eu, Rita? Você tem pai e mãe. Por que eu?
- Porque você me encantou, André. Não fez força nenhuma para isto, mas as histórias que sei ao seu respeito me dizem com certeza que você é o meu Anjo da Guarda.
- Mas é o quê isto, menina?
- Vai saber, André. Tudo tem o seu tempo certo.
Tudo tem o seu tempo certo... Fato que a Vida e probabilidade podem explicar. Mas no caso de Rita, do que se tratava? Ela continuava sem dizer alguma coisa, mas pedia carinho. Fato estranho, mas não assombroso.
Num dia de aula, ela, que não faltava nunca, não estava ocupando a cadeira que era sua. André estranhou. Perguntando aos alunos, colegas e amigos de Rita, soube que ela tinha viajado. Procurava os pais.
Quando chegou a casa, encontrou um bilhete: “André, quero viver.”
Poucos dias depois, André sabia do seu falecimento. Ele não entendeu nada. Só que tinha sido alento para uma jovem que estava no fim da Vida.
E o passarinho continua bicando os vidros, onde quer que ele esteja.
Um completo mistério...

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Abandono: povo da rua

Abandono / Aluizio Freire










Existe um mundo misterioso, onde habitam seres das mais diversas raças, classes, procedência e comportamento.
São pessoas impenetráveis; poucos mostram o seu sentimento. Misturam-se neste mundo marginal por conta própria, sem serem criminosos, mas onde muitos destes se encondem quando a situação obriga. Não permanecem no meio onde não existe nada que não seja o código do sem teto, sem alimentos, sem documentos, sem nada.
O código é simples e só tem um mandamento: “não se meta comigo e eu não me meto com você.” Cumprida esta regra fundamental, nada mais existe que regule a vida estranha, confusa e incompreensível para muitos.


O frio cortante da madrugada fazia com que fossem puxadas as cobertas, insuficientes para proteger seus donos do ar que lhes causava desconforto. O frio do chão era evitado por folhas de caixas que servem para os mais diversos tipos de invólucros comerciais. Papelão, em camada única ou com mais de uma, dependia do dono. As cobertas, sujas como os seus donos, corroídas como eles e quase sempre pequenas, serviam para proteger o sono dos que estavam sob a marquise de um velho prédio, numa rua pouco movimentada.
De acordo com o ganho de cada um deles, as blusas de lã, os pelegos e a cama de papel, tinham melhor ou menor qualidade, se esta palavra pode existir neste mundo estranho.
Breve o Sol apareceria, o incômodo do frio seria amenizado, e cozinhas de tijolos, que usavam madeira de caixas recolhidas nas ruas, entrariam em funcionamento para preparar um café ordinário, sempre acompanhado de pão fresco, mendigado ou pago na padaria mais próxima, ou dormido e requentado no fogão primitivo.
A primeira refeição do dia era esta, mas para a maioria dos homens e mulheres que moravam nos mais diversos lugares da cidade, o café com pão era precedido de farta dose de cachaça. Apenas as crianças, frutos das uniões entre estes homens esquecidos pela sorte e pela vida, não bebiam aguardente.
Assim é o início do dia, na comunidade dos mendigos.
Esta palavra choca a todos que tem um teto, mesmo que favelados. O mendigo é olhado pela sociedade como sendo o resto dos restos, e ele é isto mesmo, na realidade. O que espanta a todos é que eles existem em países pobres, em desenvolvimento, e ricos. Nestes, os abrigos existem em maior quantidade, dorme-se numa cama onde o colchão não é macio, mas é muito melhor do que a folha de papelão. A coberta, nos dias frios, protege bem melhor, e sempre há calefação no lugar. O café da manhã, pago pelos órgãos assistenciais dos governos ricos, é quase o mesmo, embora haja sempre um mingau de aveia. Os que lá procuram acolhida têm noites mais tranqüilas, mas após a primeira refeição tratam de abandonar rápido o local que os acolheu durante a noite.
Ganham as ruas, alguns em busca de trocados do povo, outros catando objetos que a sociedade de consumo jogou fora, e muitas vezes não tinha alternativa. É lixo mesmo, garrafas, caixas, latas e não poucas vezes comida não tocada, ainda podendo ser consumida.
Este mundo não pode ser definido por falsos entendedores do comportamento e da alma humana. A garimpagem dos objetos deixados nas ruas, lugar onde este povo vive, garante muitas vezes um ganho mensal maior do que o de muitos trabalhadores. As carroças utilizadas para a cata e o transporte do material têm as mais diversas formas possíveis, de acordo com a engenhosidade do proprietário e do material que ele conseguiu para a construção da engenhoca. Uma vez cheia, o material é levado aos depósitos compradores desta sucata que vai ser reciclada.
Outros preferem mesmo é usar da caridade do povo, esmolando. Não trabalham como seus colegas catadores, mas ganham um razoável dinheiro. Há muitas lendas a respeito. Dizem que existem mendigos donos de verdadeira fortuna, afirmação que não tem procedência.
Vida tortuosa gastam o dinheiro em bebidas, principalmente. A grande maioria dos mendigos é de alcoólatras. A miséria não é a causa desta inexplicável maneira de viver, onde tudo é livre. A habitação não existe, ora é numa marquise, ora é na praia, o lugar nunca é certo e determinado, a comida sempre existe, pois a marmita de papel alumínio é barata, comprada em bares e botequins quase sempre tão estropiados quanto eles. O dinheiro arrecadado diariamente garante o sustento, quem não acredita nisto e pensa que o mendigo é um faminto se engana.
A loucura, este flagelo que ataca a humanidade sem o menor preconceito, quase sempre é fator determinante da mendicância, seja ela provocada pelo alcoolismo ou não. Segundo muitos reais conhecedores do assunto, o mendigo é um doente mental e não o fruto de uma sociedade seja ela capitalista ou socialista.
O que acontece neste mundo, ninguém sabe contar direito. Embora destituídos do espírito gregário, eles mantêm uma união, por força da necessidade.
Mas não é só isso que acontece neste meio.
Um homem de meia idade, barbado, vestindo um moletom visivelmente de terceira mão, tênis recolhido em algum lixo, com um hálito de cachaça que impregnava o ambiente, viu um colega passando mal, com falta de ar, tosse contínua e cor vermelha, no rosto, peito e costas.
- Chamem uma ambulância depressa. Geraldo está muito mal – foi o que disse tão logo deu uma rápida olhada no homem que sufocava.
Por incrível que pareça, em pouco tempo uma ambulância do Corpo de Bombeiros estava no local. O maltrapilho, dirigindo-se ao oficial médico, falou sem qualquer suspeita de dúvida: - edema agudo de pulmão. Tem que ser medicado já, senão morre em pouco tempo.
O jovem tenente médico estranhou muito o diagnóstico daquele tipo tão arrebentado. Sim, embora não fosse cardiologista, já tinha visto muitos casos semelhantes, e o diagnóstico estava certo.
- Quem lhe disse que ele está sofrendo um edema agudo?
- Ninguém, doutor.
Saiu do local, dirigindo-se ao botequim próximo e tomando um grande gole de cachaça, pensou consigo mesmo que a vida era estranha, o mundo era incompreensível, mas estava visivelmente satisfeito.
Há muito anos atrás, o competente e conhecido médico ainda tinha, em outra cidade, mulher e filha de quatro anos. Era chefe da equipe de cardiologia do mais confiável hospital da cidade. Sem razão alguma, não tinha problemas familiares, ao contrário, era muito querido, e profissional conhecido, foi aos poucos mudando de atitude, em virtude do consumo exagerado do álcool. Mudou-se e hoje faz parte desta multidão de anônimos, que a Vida esqueceu e eles pouco se importam com isso.

domingo, 24 de maio de 2009

Certo e errado

A Liberdade Conduzindo o Povo / Eugène Delacroix










O homem, na sua suprema arrogância de estar acima de tudo, criou estes estranhos conceitos de certo e errado.
Muitos fatos que existem na sociedade são intoleráveis a todos. Os crimes, por exemplo. Como maltratam toda a sociedade, é unânime a opinião que são do grupo errado. Até aqui, sem discussões. Acontece que o conceito não fica preso nas normas legais, que sempre apontam fatos reconhecidamente errados cometidos pelo ser humano.
Mas a generalização é uma temeridade. E muitos fatos hoje perfeitamente aceitos, estão no conceito errado de grande parte da sociedade dita rígida nos costumes e na moral. Aqui o homem se perde totalmente. O que foi errado ontem pode não ser hoje, e vice versa. Qualquer decisão que se tome neste sentido, não pode ser precipitada. Certo e errado são conceitos relativos, e como tal devem ser encarados.
As culturas dos povos são vitais. Fato perfeitamente normal para um povo pode ser uma ofensa das mais graves para outro. Prova é o terror, admitido por muitos povos, não só árabes. O terror está em toda parte, inclusive no Brasil. Ou é possível dizer que a ameaça cotidiana feita por marginais não é uma grave forma de terror? Esta forma de comportamento anormal fez com que o brasileiro mudasse seus hábitos. Não se conhece mais a beleza do interior de um prédio. Ela é atrapalhada pela grade colocada para dificultar a ação de marginais.
As grandes cidades viraram enormes conglomerados de edifícios, pondo um ponto final na beleza arquitetônica. Lugares encantados são vistos em cidades pequenas, geralmente no interior. Praças urbanizadas, vida sem tumultos, solidariedade entre o povo.
Quando cresce um pouco, a baderna varia proporcionalmente com este aumento. O homem muito grupado tem este sentimento. Costumes tradicionais passam a ser vistos com maus olhos. O sentimento de modernidade toma conta de tudo. O intrometido estado, criado para servir ao homem, e somente isto, passa dos limites, dizendo o que é certo ou errado.
Geralmente, este comportamento do órgão que o povo criou para a sua defesa, inverte sua posição de maneira absolutamente arbitrária e passa ser o dono da verdade. É quando se esquece que os cidadãos têm paciência, e esta pode se esgotar. O mundo inteiro está dizendo não ao autoritarismo estatal, familiar, religioso. Ele é ultrapassado. Quem quiser ficar nele, que morra com ele. O que não quer dizer de casamentos oficiais entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo.
Liberalismo nunca quis dizer baderna legal. Se estamos vivendo num mundo novo, é necessário que seja muito bem interpretado o certo e o duvidoso..
Está mais do que na hora distinguir o certo e o errado, se é que podemos. Todos que acompanham meu trabalho sabem que não gosto de textos longos. Fiz este apenas para mandar um recado aos chefões executivos e legislativos. Cuidado com esta arrogância.
A Bastilha pode se repetir a qualquer momento, em qualquer lugar.

sábado, 23 de maio de 2009

O "profeta" Gentileza

Gentileza / Paulo José, Globo

















Nascido e criado em Niterói, onde apareceu o totalmente insano Gentileza, por muitos dito “profeta”, gostaria de contar a sua história.
Sei que muitos o admiram, pois ele falava muito em amor. Conheci-o pessoalmente. Eu e todos os meus amigos, naquela época muitos.
Era totalmente inculto, nada sabia de religião e os psiquiatras não cuidaram dele porque era tido como louco manso. Era pacífico, mas não quando via alguma mulher, principalmente moça, usando minissaia. Gentileza partia para o mais feroz ataque, nunca se esquecendo de ofender a moça. Ameaçava com palavras dizendo que vestir-se desta forma era uma artimanha do diabo...
Sempre com roupas brancas, desenhadas com garranchos e cheias de flores, carregando uma tabuleta com escritos indecifráveis, Gentileza tornou-se figura conhecida. Morava num caminhão todo enfeitado, em frente a um grande largo que hoje abriga um supermercado e o DETRAN. Diziam que perdera toda a família no incêndio catastrófico do circo, fato que marcou a cidade. Morreram muitos, e entre eles, segundo diziam, toda a família do “profeta”. Deslavada mentira; os policiais conheciam Gentileza muito bem. Foi morar naquele caminhão porque o mesmo estava preso e abandonado. Se estava estacionado perto do local onde houve o incêndio é porque simplesmente ali era o depósito de veículos presos.
Gentileza nunca foi visto mendigando, mas todos sabiam que alguns comerciantes do centro da cidade, para se verem livre da estranha figura, o que atrapalhava seus negócios, garantiam a sua subsistência, especialmente uma lanchonete, hoje fechada, que era “ponto” do barbudo magro e de cabelos longos.
Não posso omitir que eu mesmo fui obrigado a ameaçar Gentileza de pancada. Ele estava atacando furiosamente mãe e filha, pois esta estava usando minissaia. Geralmente pacífico, ficou agressivo e as duas mulheres ficaram tomadas pelo pânico. Eu estava passando pelo lugar, na hora. Pedi ao “profeta” que parasse com o ataque que estava fazendo. Foi o que bastou para ele começar a me ofender e até mesmo ameaçar. Montanhista naquela época, acostumado a escalar picos conhecidos, naturalmente era forte, embora não corpulento. Não tirei o paletó. Parti firme e ia dar uma coça em Gentileza, apoiado moralmente por todos os presentes. O pobre coitado, como todo louco, tinha horror a apanhar. Todo doido é assim. Enfrenta um revólver ou faca, mas foge da pancada como o diabo da Cruz.
Esta fama que pegou, segundo dizem, foi graças a um trabalho de um estudante da UFF, que defendendo tese, escolheu o pobre infeliz e o classificou como profeta. A Rede Globo encarregou-se de espalhar aos quatro cantos a sabedoria e a bondade de Gentileza, que se mudou para o Rio e pintou grande parte dos pilares de um elevado, no centro da cidade. Não foi como Antônio Bispo do Rosário, que se vestia de modo mais extravagante ainda, mas apesar de ser um pintor conhecido, nunca se livrou dos muros de um manicômio. Este sim era um gênio, e dos mais produtivos. A Globo redimiu-se da invenção. Paulo José fez uma passagem em novela atual. A semelhança com Gentileza está perfeita.
Conheço muitas histórias da Vila Real da Praia Grande...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Ela, a bruxinha

Ela/Google


















Praia de águas claras e límpidas. Parece milagre, mas é verdade. Dois tipos aparentando não fazerem mal a ninguém, tomam cerveja na sombra da eficiente barraca.
- E você está triste com a perda?
- Triste não. Não haveria como ficar com aquele anjo.
- Anjo? Não anda lendo Nelson Rodrigues demais?
- É um anjo. De cara. A alma é vagabunda. Linda!
- Apaixona-se por prostitutas agora?
- Não é questão de agora. A paixão não tem tempo.
- Sei. E a traição também.
- Acompanha todos nós.
- Todos nós uma ova! Traição comigo é pancada e separação.
- Sempre pensei assim, até que veio esta.
- Vele a pena?
- “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena” – respondeu com uma frase do poeta português.
- Esse cara era doido!
- Acaso você não é também? Não somos todos nós? Fernando Pessoa nunca se disse são. Mas suas verdades são sublimes...
- Mas você está apaixonado pela bela Maria Eduarda. Não faz sentido. Ela casou com outro, foi-se embora.
- Embora? Não. Isto é coisa passageira, mais cedo, mais tarde, ela está de volta.
- Como tem tanta certeza?
- Fácil. Outra terra, outra gente, costumes diversos. Ela é daqui, e daqui não vai sair.
- Presunção sua! Já saiu...
- Mas volta. Cedo ou tarde ela volta.
- Como pode ter certeza disso?
- Conheço sua alma...
- Conhece como, se não é vidente ou coisa que o valha?
- Ela volta.
- Pode ter uma desagradável ilusão, meu caro!
- Engano seu. Seguiu porque não tinha alternativa.
- Casada?
- Casada. Está iludida, é muito nova. Quando abrir os olhos, vai ver a tolice que fez.
- Tolice? Vai com essa, amigo! Tolice por qual motivo?
- Simples. É e sempre foi muito livre. Quando sentir que a liberdade está restringida, abandona tudo e volta.
- Volta para os seus braços?
- Claro que não. Volta para as areias brancas, muito brancas, que fazem doer os olhos quando refletem a luz do Sol. Para o mar e a terra que ama e sempre amou.
- Você está excluído?
- Excluídos somos todos nós.
- E ela?
- Ela é um grande mistério, como são todas as mulheres.
Acabava de sumir o Sol. Com a chegada da noite, o mistério aumentaria, mas a conversa terminou.
Ninguém sabe como isto tudo vai acabar. Nem eu, nem ela, nem você...

terça-feira, 19 de maio de 2009

O homem que via estrelas

Caixa de Jóias

















Nosso herói não chega a tanto. É apenas um homem comum, mas muito curioso.
Determinado dia, pegou seu velho e fraco binóculo. Estava num lugar privilegiado. A poluição luminosa, que não permite a observação do céu mesmo com instrumentos sofisticados, era ausente. Estava num pequeno hotel na Serra dos Órgãos. Lua nova, céu pontilhado de estrelas. Frio intenso, o patamar onde se instalou ventava. Indicação de um amigo oficial da Marinha de Guerra: “pega teu binóculo, arranja um lugar escuro, de preferência em noite não enluarada e olha o céu.”
Seguiu à risca o conselho. Andava meio sem perspectivas, isto é perigoso para quem já passou dos cinquenta e cinco. Dizem os entendidos que até mesmo morte pode ocorrer. Morte matada ou morte morrida. Matada, que Deus dele se apiede, é pelo próprio.
Procurava o Cruzeiro do Sul, seguindo um pequeno mapa desenhado pelo amigo. Embora o binóculo fosse fraco, pode ver a famosa Caixa de Jóias, um aglomerado de estrelas que se encontra na região do Cruzeiro. Tentou contar! Nenhum resultado diante de tamanha beleza do céu, onde são vistas muitas e muitas estrelas de todas as cores. Azuis, amarelas, verdes, vermelhas, todas grupadas. Daí o nome Caixa de Jóias. São jóias de todos, não precisam ser furtadas ou roubadas, estão sempre lá.
Começou assim. Um pequeno binóculo, sem muita resolução. Daí para passar para um telescópio poderoso, mas ainda amador, foi um passo pequeno. Por indicação do amigo, comprou um telescópio bem mais forte. Com recursos de ligar em USB com o computador, o que aumentava muito a potência do instrumento. A imagem do astro não é vista na ocular do telescópio, mas na tela do computador, muitas vezes multiplicada pelos recursos do mesmo.
Acabou estudando a ciência fascinante. Em poucos anos, conhecia os nomes de ascensão reta e declinação, as coordenadas dos astros. E as estrelas e constelações? Muitas cores, lendas. A mais bonita talvez seja a de Castor e Pollux. Os irmãos gêmeos mortos na guerra, inseparáveis e heróis. Por compaixão, Zeus lançou seus corpos ao céu, onde permanecem juntos na constelação de Gemini. O azul claro de Sirius, a mais brilhante estrela do céu.
O firmamento guarda surpresas inacreditáveis. A mais próxima estrela da terra é Rigel Kent, que aparece muito brilhante um pouco abaixo do Cruzeiro do Sul. Quando olhada sem instrumentos, só vemos uma. Um simples binóculo e aparece sua companheira, girando em torno dela, como a Terra faz com o Sol.
Passados os anos, o profundo conhecedor destes mistérios, um dia teve vontade de matar-se. Queria ver o Universo de perto, quando foi advertido por alguma voz angelical “não faça isto. Quem se mata não vê Deus.”
A advertência foi tão forte que hoje é considerado um mestre.
Tem um álbum de fotografias celestes considerado um dos mais completos do hemisfério Sul.
A vida tem muitos mistérios...

domingo, 17 de maio de 2009

Zé Cândido

Capa do livro


















Sempre fui fumante convicto e inveterado. Acordava e já acendia logo o pequeno cilindro branco, que tem uma fumaça admirável para os que fazem uso, e detestável para o outro time.
Minha mulher, por vezes, acordava antes de mim e eu tinha um delicioso café já preparado, que enchia a casa com seu perfume e aumentava minha vontade de tirar umas boas baforadas. Caso eu acordasse antes, sabia e sei fazer um café bem gostoso. Como dizem, modéstia à parte.
Mas bem perto da minha casa existe até hoje uma padaria que descobri ter um café simplesmente delicioso. Muitas manhãs, quando acordava, para lá me dirigia devidamente armado com meu maço de cigarros e isqueiro.
Lembro-me até os dias atuais da freqüência. Homens de todos os tipos, desde os mais humildes operários, que invariavelmente tomavam meio copo de cachaça, destes copos comuns, para ficar determinada a quantidade ingererida acompanhada do delicioso café, xícara grande, e meia bisnaga de pão francês com mortadela. Outros como eu e um homem magro, franzino, risonho e com ares matreiros, aguardavam o ritual do preparo do café. Enquanto isto fumávamos, naturalmente.
O rapaz que preparava o dito cujo café seguia um ritual perfeito. Qual nada de pó moído! Grãos eram retirados de um grande saco, colocados na máquina de moer e devidamente triturados finamente. Só este fato já perfumava o quarteirão, acho. A água já estava fervendo, e o saco de flanela recebia a quantidade certa do pó maravilhoso. Em seguida, com uma longa colher de pau, o produto que se encontrava no coador era mexido com cautela e carinho. Isto posto, era colocado na máquina, e aguardávamos ficar pronto.
Não é preciso descrever as faces de quem observavam o ritual. A do rapaz magro parecia estar vendo alguma coisa descida dos céus, e creio que esta era a cara de todos nós.
O café era maravilhoso, eu tomava sempre duas xícaras pequenas, e atacava os pulmões com dois ou três cigarros. O tipo franzino que estou me referindo fazia a mesma coisa.
Com o passar do tempo, conversávamos alegremente, desfrutando daquele prazer matutino, e muitas vezes o dia ainda não estava totalmente claro. Observei que todos se conheciam, e eu já fazia parte do grupo, sendo que sempre o meu companheiro de conversa era o mesmo magro e simpático freqüentador.
Certo dia, perguntei ao dono do lugar quem era aquele tipo. Ele se espantou e disse que era um escritor conhecido, com o semblante orgulhoso em ter o mesmo por freguês de muito tempo. Disse-me o nome e levei um susto, não esperava a resposta.
- É o doutor José Cãndido de Carvalho, não o conhece? Fala com ele todos os dias e não sabe quem é? – foram as palavras do homem.
No dia seguinte, dirigi-me ao acadêmico famoso com respeito. Pedi desculpas em não ter reconhecido o autor do “O Coronel e o Lobisomem”. Zé não se incomodou nem um pouco, e achou graça. Disse que não era artista de televisão nem político, eu não tinha que pedir desculpa nenhuma.
Assim passaram-se alguns anos, até que um dia ele me falou que havia gostado muito do meu pai, fato que me surpreendeu, sem dúvida. Explicou-me que tinha um companheiro em outro lugar, onde também tomava café e incendiava os pulmões. Ambos haviam-se tornado amigos.
José Cândido escrevia num jornal de Niterói, “O Fluminense”. Descobri um recorte do jornal, datado de 15 de fevereiro de 1985, uma sexta-feira.
A coluna chamava-se “Recado”. Sob o título de “Ser chamado de sexagenário, nunca!”, vinha na íntegra o recado.
“Jorge Sader, fluminense de cultura e talento, tão conhecido em Niterói como a Pedra do Índio ou a Igreja de São Lourenço, tem os seus caprichos. Por exemplo: nunca vai ao Rio de Janeiro. E diz de maneira altamente espirituosa os motivos desta não ida:
- Não vou para não dar oportunidade de ver noticiado que o sexagenário Jorge Sader foi atropelado na Praça 15 com um embrulho de empadas debaixo do braço. Ser sexagenário já não faz graça para ninguém rir, ainda mais desmoralizantemente esfrangalhado por um ônibus da linha Padre Miguel - Largo do Boticário. “
Não fumo há anos, meu pai não morreu atropelado e, pelo que sei, Zé Cândido não morreu por causa do cigarro.
Deus os guarde.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Chuta que é macumba

Despacho













Uma vez autorizado pelos leitores, prossigo com fatos estranhos.
Falei no texto que tenho um amigo que toda vez que se depara com alguma situação embaraçosa, fato desagradável e situações semelhantes, solta logo seu brado de guerra chuta que é macumba.
Ranhetice, velhice ou todas estas doenças que terminam em “ice”, a coisa funciona. Começa a surtir efeito desde o semiberro chuta que é macumba. Os desconhecidos poderes mentais entram em ação e segregam um hormônio chamado contra-aporrinhola, conhecido por poucos na medicina moderna.
A contra-aporrinhola, como seu nome está dizendo, é um velho antídoto segregado pela mesma glândula de produz a serotonina. Esqueci o nome, perdão. Não sou médico, logo não tenho obrigação de saber estas coisas. Dito hormônio tem o poder de espantar aborrecimentos, também conhecidos com o nome de aporrinholas, neologismo criado pela morena, aquela minha velha conhecida, bonita de fazer pena e que está me assessorando na presente tese de alto interesse e profunda indagação.
Reduzindo à expressão mais simples: aporrinhola é tudo aquilo que chateia, aborrece. Neste caso, não duvide: chuta que é macumba!
Por falar em neologismo, nosso simpático João Ubaldo Ribeiro, acaba de ganhar o maior premio da literatura portuguesa. O premio Camões foi merecidamente ganho, reconhecendo a obra do literato famoso.
Em dinheiro, cem mil euros, quase trezentos mil reais. Sem falsa modéstia, Ubaldo declarou que “se ganhei foi por que mereci”, afirmação verdadeira, muito, muitíssimo oportuna. Um grande abraço, Ubaldo. O povo brasileiro agradece.
Deus do céu, que trapalhada! Também pudera. Quem mandou eu permitir que a morena participasse desta tese?
Um conselho final: não gostou?
Fácil. Chuta que é macumba.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Casa velha

Velha mansão













Existe na Vila Real da Praia Grande, uma casa de pouco mais de meio século de construída.
Ampla, de dois pavimentos e uma tormentosa escada para os que estão carregando material de limpeza, ou roupa passada, lá o que seja. Escada irrita até gente moça, que costuma reclamar quando faz algum transporte.
Todos que a olham por fora julgam, com razão, que está abandonada. É verdade que o quintal está sempre limpo, e jardins cuidados – parece uma selva tratada – e seu aspecto é realmente de abandono. Um abandono cuidado, se é que valha a expressão. Desde que foi pintada, para acolher o então jovem casal, nunca mais viu mão de tinta. Com o passar dos anos, tornou-se um ocre, um ocre velho, como velha é a casa. Um limo verde, discreto, e que colabora bastante para dar a aparência um tanto fantasmagórica à antiga casa branca.
Uma grande árvore domina o quintal e, como já foi dito canteiros e mais canteiros exibem as mais diversas plantas. Roseiras, inclusive. Estas, sempre que algum morador faz anos, presenteiam com uma bela flor o aniversariante. Parece que tudo ali é mistério, e alguns acham mesmo que a casa é mal-assombrada. Histórias não faltam.
Como passo sempre pelo local, um dia vi um homem de meia idade, que tinha os firmes e fixos numa roseira. Sou um cara enxerido. Dei bom dia ao homem, que me olhou de maneira indiferente. Perguntei se ele morava ali. Disse que não, apenas tomava conta da casa, e voltou os olhos à roseira. Continuei com a minha fala, revelando que conhecia a casa há muito tempo, mas que pensava abandonada. Para abrandar os ânimos do homem preocupado com a roseira, disse que era escritor. Funcionou como eu não esperava. Ele abriu um sorriso amistoso e perguntou o que eu desejava.
O portão de ferro foi aberto. O homem apresentou-se e disse que era o dono da casa, uma revelação que eu já esperava. Com uma bermuda jeans, camisa xadrez e um tênis surrado, mas sem aparentar defeito ou sujeira, disse que já me conhecia de vista, e mostrou-me a roseira alvo de sua atenção. Não estava em boas condições, mesmo para mim que não entendo do assunto. Explicou-me que não tinha sido podada antes de começar o tempo frio, mas não estava comprometida.
Convidou-me a entrar e beber uma taça de vinho. Onze e meia da manhã, entendi que não era para dizer não. Sempre tive curiosidade de conhecer a velha mansão.
Meu susto foi grande. A casa era completamente restaurada por dentro. Jardim de inverno enorme, com vista para um belo quintal onde distingui outra árvore, este muito menor do que a dominante mangueira. “Laranja”, disse-me. “Já era época de estar florida, se não fosse o frio.”
Mostrou-me algumas dependências da casa, mas não levou ao andar de cima.
A sala tinha um ar personalíssimo, móveis estilo campestre sem serem rústicos, paredes cobertas de quadros, dele e da sua mulher, que não apareceu.
Terminada a taça de vinho, ofereceu-me outra, que discretamente recusei. Mostrou-me o seu escritório, onde um computador reluzia com a sua tela de cristal líquido.
Senti uma sensação de bem-estar. Interessante que não havia dito o seu nome todo, quando me apresentei no portão. Perguntei. “Joaquim Manuel de Macedo, ao seu dispor.”
Ou era doido, ou realmente agi certo: com uma desculpa, coloquei-me em fuga rapidamente.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Os bombons

Bombons

















Existia numa cidade de interior pequena uma velha mulher misteriosa e vindo ninguém sabe de onde, cuja especialidade era fazer doces. Raro era o que não era uma verdadeira delícia.
Tinham muitos: abóbora, tanto a macia como em pedaços, com ou sem coco, este último, maravilhoso, uma cocada durinha por fora e mole por dentro, tamarindo, que não pode ser feito sem uma dose grande de abóbora ou chuchu, enfim, uma série deles. Todos vendidos na padaria ou na sua casa, na varanda da frente, onde foi improvisada uma doçaria.
Mesmo o seu nome era incomum. Romeira. Diziam que dona Romeira fora assim batizada em homenagem ao Padre Cícero Romão Batista, o Padim. Gravidez muito difícil, prognóstico médico tenebroso, a família rumou toda para o santuário e lá foi feito o pedido.
Padre Cícero não costuma deixar seus seguidores na esperança: que o diga o povo romeiro, que anualmente vai prestar homenagem ao Santo do Sertão. Romeira tinha vingado graças a ele, forte e cheia de vida.
Dela diziam as mais estranhas coisas. Que havia herdado de santas freiras a arte de fazer doces deliciosos; que tirava mau olhado; que arranjava bons partidos para casar, fossem homens ou mulheres. Que mais isso e mais aquilo. Não era vista como santa nem milagreira, mas tinha dons fortes. Disto ninguém poderia duvidar.
Uma das suas mais afamadas, mas pouco conhecidas do povo, só privilégio das amigas mais chegadas de dona Romeira, era os bombons do amor. Alguém encomendava um bombom, uma delícia, por sinal. Fazia com que a pessoa que o comesse se apaixonasse e tivesse aos seus pés o amor encruado. Coisa secreta, fato conhecido por poucos, os mais chegados da velha doceira.
Uma velha ajudante de Romeira, que já não trabalhava mais por causa da idade, foi até a casa da amiga e patroa e pediu o feito: que fosse mandado para uma sobrinha-neta sua, moça na idade de casar, um bombom do amor.
Feito e providenciado o seu envio, por um velho entregador de cartas aposentado, seguiu o bombom para o destino. Não disse ao velho carteiro qual era o conteúdo, bem guardado num embrulho de papel colorido, salpicado de margaridas. Era um segredo de comadres. Cidade pequena, no interior, é assim. Todo mundo se conhece, e brigas só existem por razões políticas.
O ainda firme no caminhar Osório, o velho carteiro, estava a caminho da casa onde o bombom deveria ser entregue. Tempo quente, e encomenda segura com cuidado na mão do estafeta, este sentiu que o bem pequeno embrulho estava mole, não era assim como quando o recebera. Osório violou uma regra que nunca, jamais tinha feito na sua longa e honesta carreira. Por medo, abriu cuidadosamente o embrulho. De pronto viu que era um doce de chocolate, cor e cheiro eram inconfundíveis. Estava derretendo por causa do calor. Não teve coragem de voltar à casa de dona Romeira e mostrar o que tinha acontecido. “Ela deveria ter avisado que era doce”, pensou.
A padaria que os doces eram vendidos era próxima. Ele foi lá e pediu um bombom da dona Romeira. Embrulhou no mesmo papel, teve o cuidado de proteger do calor e entregou no destino certo. Guardou o que tinha apenas se derretido pouco, e levou para casa o delicioso e mágico bombom do amor, que sua neta, moça feita, comeu com muito prazer quando o viu secando na pia da cozinha.
Na pequena cidade, completamente arborizada, com a praça muito bem tratada, gramado e canteiros floridos que encantavam a vista de quem lá chegasse, e já paisagem corriqueira nos olhos dos moradores, até hoje, ninguém sabe por que sua neta casou com o padre.
E foram muito felizes...

terça-feira, 5 de maio de 2009

Alcoolismo e Neurose sobre tela

Número 18

















Os biógrafos do maior pintor americano, Paul Jackson Pollock contam histórias sobre o conturbado pintor que parecem absurdos.
Pollock era fumante e bebedor inveterado. Usava como suporte para sua pintura papel impermeável; era muito difícil encontrar tela de pano, devido ao tamanho que usava, imensos. Tinha tendência suicida, conhecida pelos amigos.
Certa noite ligou para um deles. Disse que iria se matar, estava avisando. O amigo pediu que ele esperasse um pouco, era velho companheiro de bebedeiras e gostaria de tomar a última na companhia do pintor. Perguntou se havia bebida suficiente no estúdio. Havia.
Em pouco tempo estava diante do potencial suicida, que se encontrava embriagado, como de costume. Confraternizaram-se e passaram a piorar o estado em que se achavam. Pollock reclamando muito, inclusive da sua última obra, que chamou de “Alcoolismo e Neurose sobre tela”. O clima era este.
O amigo estava eufórico e deu a sugestão de antes de morrer, Pollock pintasse com ele a última tela, idéia prontamente aceita. Papel esticado no chão, pote, tubos e vidros de tinta começaram a obra freneticamente. O uísque não parava de ser tomado, à medida que as tintas eram atiradas sobre a tela, a característica da obra do autor. Vidros se quebraram sobre a tela, foram pisados e até hoje existe marca de sangue na pintura, que quando terminada, os autores já estavam quase dormindo.
Quando amanheceu, Pollock já não falava mais em morte, mas passou a examinar o resultado. O amigo preparava um café.
O pintor escolheu a área que mais gostou, e deu o nome de “Blue Poles”, que em 1973 foi vendido ao governo australiano por dois milhões de dólares, na época o mais alto preço de pintura não convencional. Encontra-se na National Gallery of Australia, em Camberra.
É o que se conta.

sábado, 2 de maio de 2009

Nina

Nina/G1












Alberto Nadreau acabara de vestir-se com sua calma e esmero na escolha das peças. Tudo muito cuidadosamente escolhido. Elegante, o Alberto. Todos reconheciam este fato.
Não, apesar do sobrenome, não era parente do Comandante Georges Nadreau, imortalizado com Vasco Moscoso de Aragão no “Os Velhos Marinheiros”, do nosso romancista tão criativo e talentoso.
A história de Alberto, que era tão meticuloso quanto apegado aos mistérios da vida comum, que Jorge Amado tão bem escreveu, parecia mesmo saída de algum livro de ficção. Mas era real.
Passara do sessenta anos e ainda mantinha um aspecto atraente. Sempre muito bem barbeado, mantendo sua forma física com caminhadas e musculação, recomendados pelo seu cardiologista, o homem ainda fazia suspirar o coração das mulheres.
Estes lobos são os piores. Conhecedores da vida, dos hábitos e costumes dos seus semelhantes, são capazes de encantar qualquer mortal, seja homem ou mulher. Alberto encontrava-se neste tipo de homem cujos privilégios da educação esmerada tinham tornado o sagaz homem de negócios, negócios sérios e arriscados, como não deixar de um dia apenas frequentar uma forte corretora da Bolsa. Era um homem rico, tanto material como espiritualmente.
- Beto, será possível que você não é capaz de enxergar que esta situação é muito delicada?
- Por qual razão? Por Nina ser uma prostituta?
- Não é só esta, homem de Deus! Você tem família, é pai de uma bela moça, mais velha do que a Nina.
Armando, seu velho amigo, conhecia bem a história. Embora não afeito a conquistas amorosas há muito tempo, Alberto estava sendo dividido pelo seu amor e dedicação a Nina, uma prostituta de alta classe que conhecera numa festa de encerramento de fim de ano, na casa de amigo também investidor.
Nina, como tantas outras, fora contratada para fazer parte da comemoração, fato muito freqüente. O mais interessante é que este hábito se tornou comum, tanto na classe rica, como na pobre. O cidadão de classe média, tão comum e de numerosa presença na sociedade, não faz parte desta categoria de homens que estão nas extremidades das pessoas. Hoje, tanto nas suntuosas mansões, como nos bailes funk, o fato é normal. A contratação de mulheres bonitas e conhecidas faz parte do ritual festivo.
Foi assim que o muito bem sucedido Alberto conheceu Nina, uma linda jovem de vinte e quatro anos, que num vestido preto, elegante e de bom gosto, tomava uma taça de champanhe no salão de festas do edifício onde morava o sócio majoritário da corretora de valores encarregada de movimentar seus negócios.
Bela de rosto e corpo, com traje e comportamento que nenhum dos presentes poderia imaginar que Nina estava na festa para aparecer e se por acaso algum freqüentador ficasse deslumbrado com a sua presença ela estava disponível, seu olhar para o feliz Alberto, que também estava com uma taça cheia de champanhe na mão, e não demorou a perceber os olhares da jovem. Nada inexperiente, em pouco tempo Alberto conversava com Nina.
- É funcionária da corretora?
- Não. Fui convidada. Vejo que você está realmente feliz. Bons lucros neste ano?
- Só respondo depois de saber seu nome, e o que está fazendo aqui.
- Sou apenas uma espectadora. Paga para comparecer à festa, agradar os participantes e não fazer perguntas. Meu nome é Nina, e peço desculpas pela pergunta indiscreta.
- Nina? É o seu nome mesmo ou um apelido? Não ligue para perguntas deste tipo. Somos todos homens de negócio. Sim, tive bons lucros.
- É o meu nome mesmo. Fico satisfeita em não ficar zangado. Perdão.
- Só concedo perdão se quiser ser minha companhia, Nina.
- Com muito prazer, meu caro – e passou a mão delicadamente no rosto de Alberto.
Qualquer um pode imaginar o que se passou depois. Num apartamento pequeno, tipo flat, ambos sentiram um prazer imenso. Nina não fingiu, como é a praxe. Ficaram apaixonados, talvez como numa relação bastante comum no conhecimento da antiga Grécia; Electra era uma realidade. Duas pessoas ligadas a Alberto conheciam o fato. Armando, seu amigo de vinte anos, e Lúcia, sua filha de vinte e cinco anos, a caçula, que adorava o pai e trabalhava com Nina.