segunda-feira, 24 de julho de 2017

Não me joguem terra

               

            Vou logo avisando aos que vão me levar para o último refúgio: não me joguem terra!
            Não tenho muito a reclamar desta passagem, ou melhor, algumas coisas tenho sim.  Na hora onde posso tomar meu tinto seco, com pão e azeite, sou obrigado a mudar para legumes, aveia, peito de frango grelhado e congêneres, comida típica de hospital que se preze.  Tudo por culpa da taxa de glicose, que vai variando de acordo com o que como ou bebo.  Então, segundo meu médico, tenho que moderar bastante para não me estropiar antes do tempo.
            Estropiar antes do tempo?  Já estou mais do que estropiado, como dizia meu pai, e o acadêmico José Cândido de Carvalho registrou numa crônica, “ser sexagenário não é graça para ninguém rir.”  Ou seja, a ideia está no sangue.
            Tenho vivido bem, felizmente, desde que me entendo.  Velejei no oceano, subi montanhas altas, senti o frio da mata acima de mil e quinhentos metros.  Algumas tive que escalar, como o Pico das Agulhas Negras, coisa não muito difícil, mas um tombo seria fatal.  A Pedra da Gávea está nesta lista, como a face de pedra do Morro do Cantagalo.  Já havia bandidos na época, mas eles não se atreviam a ir queimar um baseado por aquelas bandas, e aproveitar para deixar sem nada os montanhistas.  Não tive medo de gente, tive pânico do paredão de noventa graus, suava frio, entreguei a alma a quem de direito.  Então, surge um resto de coragem: já que vou é me danar mesmo,  sigo em frente.  Quando dou por mim, estou em lugar espaçoso e seguro!  Com a bermuda e a camisa empapadas de suor, coladas ao corpo.
            Na hora em que se retorna à calçada, a alegria de ter conseguido vencer aquele medo pavoroso e a escalada difícil, fico querendo relaxar.  Lembro bem.  Hidratei o corpo com três garrafas de cerveja gelada, copo atrás do outro.  Não fiquei eufórico, ou embriagado.  A sensação de vitória não permitia.
            A causa deste devaneio?  Nem me interessa!  Já vivi muito intensamente, é o que quero dizer.  Não venham me achincalhar numa hora tão séria, e quando estou indefeso.  Se me fizerem isto, juro que me vingo.  Vou ser cruel, insidioso.  Alma penada querendo desforra, dizem os entendidos, nem é bom pensar.
            Por isso, não me joguem terra, não fechem o caixão com os trincos nem passem cimento na laje.

terça-feira, 4 de julho de 2017

História de lareira

        

            Pois sim.  É história de lareira mesmo.
            Frio.  Um frio da gota serena, como dizem os nordestinos e o João Ubaldo.  Foi um problema, o “Sargento Getúlio”.  Começa assim, mas a edição era em inglês.  Como fazer a versão?  Ubaldo não tinha, e tem fama por conta das graças que dizia nas entrevistas. 
            — Quem iria traduzir isto?
            — Isto o quê?
            — Da gota serena.  Tem muito brasileiro que não sabe do que se trata.
            — E você meteu a cara.  Além de ter escrito o livro, fez a versão inglesa.
            — Inevitável, ou iria comprometer toda a obra.
Ubaldo estava tomando um Ballantine’s, beleza de cor amarela, transparente, pálida.  Gostava de beber destilados bons, o que provou em “Noites leblonianas”.  O frio não lhe permitia o chinelão dois andares, a camisa regata e a bermuda confortável.  Mas que não falassem em genebra.  Essa não!  Havia presenciado um morador do seu edifício sob os efeitos da coisa, estava torto, empenado, perdera o tênis de caminhada matinal, começara os trabalhos alcoólicos muito cedo, antes de flanar pelo calçadão.  Caiu duro, durinho, vomitou o táxi, mas conseguiu ser levado para casa.  O escritor estava saindo, testemunhou tudo.  Um médico, amigo dos dois, salvou a pátria.  O moribundo sarou, vomitou horrores, mas recuperou os sentidos.  Quis comemorar com mais genebra.
            — Nem pensar — disse de pronto o cura.  — Um chope duplo, vai lá, dois até pode.  Genebra, de jeito nenhum.
            Imaginem.  O camarada sai de um ataque pesado, causado pelo álcool, não pode tomar a bebida causadora.  Mas dois chopes duplos sim, ele pode!  Esta conversa foi entre o próprio autor de “Viva o povo brasileiro”, vencedor do Prêmio Camões, pela obra e não pelo livro agora mencionado.
            Dá para entender?  Dá sim!  Basta olhar a atual situação política brasileira. Vamos localizar-nos no tempo.  Estamos em 3 em julho de 2017.  Você entende o que está acontecendo? Não?  Nem eu, meu amigo, nem eu...