segunda-feira, 30 de março de 2009

O Concertista

Concertista












Todos sabem da dificuldade de um homem comum transformar-se em concertista famoso, capaz de grande audiência em teatro que se apresente. A dedicação diária ao instrumento, sempre num prazo mínimo de quatro horas faz com que muitos nem pensem em tamanho trabalho.
No seu camarim, solitário como preferia ficar sempre, o pianista Eduardo André olhava-se no espelho, ajeitando-se da melhor forma possível. Traje apropriado para apresentação de grande gala, camisa alva, passada com carinho, sapatos elegantes, vestiam o homem de pouco mais de quarenta anos que, por si só, já dispensava maiores comentários.
Eduardo André nascera e crescera um homem muito bonito. Beleza rara; era externa, no seu rosto bem feito, olhos profundamente significativos e seus cabelos longos, sem exagero, onde já se viam fios grisalhos. Mas a sua beleza exterior não se comparava a interior, fina, requintada, que desde menino demonstrou quando sentava para tocar piano.
Devido a pouca idade, ainda não podia frequentar o Conservatório, fato que não impediu que aos quatorze anos já fosse conhecido como um grande talento, graças aos excelentes professores que o seu pai, professor universitário de Física não havia descuidado. Observando com a mulher a vocação até mesmo desmedida do filho, não permitiu que o talento do jovem que no momento se vestia com apuro, penteava os cabelos e ouvia um murmúrio de platéia grande, bebia aos pequenos goles fino conhaque, intercalado com café, hábito que havia adquirido quando fez um longo aperfeiçoamento com o pianista Tamás Vásáry, talvez o maior do mundo atual. Quando Eduardo André voltou ao Brasil, Vásáry falou apenas, dando um forte abraço, “sucesso, maestro. Encante o mundo.”
A família de Eduardo André mantinha relações com pessoas de nível intelectualmente elevado, já que tanto pai como mãe, eram professores respeitados. Dentre as amizades, havia um casal que tinha uma belíssima filha, que Eduardo André sempre lastimou a sua pouca idade. Marta era uma menina, ele só podia admirar. Mas levou sua imagem enquanto estava na Europa, estudando. Jamais se esquecera de um só fio dos seus cabelos dourados, sua educação esmerada, ainda que tivesse apenas quinze anos.
Olhou o relógio. Nestes momentos, há um conflito muito grande que se passa na alma do artista. Ao mesmo tempo em que aguarda ansioso dar o melhor de si aos atentos ouvintes que lotam o teatro, ele sente a mais profunda solidão. Afinal, vai enfrentar ouvidos educados, músicos famosos, sempre presentes na platéia.
O jovem concertista deu uma olhada final no grande espelho. Estava muito bem, mas a frase dita pelo seu mestre não lhe saia da cabeça. “Encante o mundo”...
Levantou-se e foi direto para o palco; as cortinas já tinham sido abertas e seu nome anunciado. Eduardo preferia assim. Não gostava da outra forma de apresentação, a que quando as cortinas se abrem o pianista já está sentado diante do instrumento de cauda longa, afinadíssimo e com brilho incomum sob as luzes do palco.
Entrou calmamente, com um sorriso sincero que agradava aos homens e entusiasmava as mulheres. Com a mais absoluta elegância, cumprimentou o público curvado-se enquanto a mão esquerda segurava de leve a extremidade do piano., olhando logo depois para todos que conseguia. Qual não foi seu espanto quando seus olhos viram Marta, já uma mulher e que ele soubera casada. Linda, num belo contraste do seu vestido negro com os seus cabelos dourados.
Ajeitou-se com elegância no banco e tocou. Seus dedos pareciam estar movidos por força estranha. O repertório era Chopin, e a emoção por pouco não leva a Eduardo André compor, como o mestre, em pleno recital, uma peça semelhante a Grande Polonese. A visão de Marta havia tocado profundamente o concertista, que a cada toque sutil, delicado ou vibrante, mais se entusiasmava, nunca havia acontecido este fato antes.
A cada música que se sucedia, os aplausos, como a música executada, estavam num crescendo. Há muito a platéia do Teatro Municipal do Rio de Janeiro não tinha o encantamento pelo qual estava passando. A música enchia o belo teatro, descendo pela sua escadaria, espalhando-se maravilhosamente.
Terminado o concerto, Eduardo, como não poderia deixar de ser, foi aplaudido de pé e as aclamações da platéia fizeram que ele voltasse ao piano mais duas vezes.
Quando mais uma vez agradeceu com a elegância característica, viu que Marta batia palmas e lançava um belo sorriso.
As cortinas fecharam-se por definitivo. O jovem concertista, de cujos olhos saiam lágrimas de um amor que não se realizou, molhavam sua face e Marta não saberá nunca que o concerto foi dado para ela...



Publicado no Pravda de 2/1/2011  http://port.pravda.ru/sociedade/02-01-2011/30983-concertista_cortas-0/#

quinta-feira, 26 de março de 2009

Cachaça de Pote

Especial/cvm









A origem da cachaça é muito incerta. Mas o produto é genuinamente brasileiro.
A mais tradicional explicação é que a bebida teria surgido com a degradação orgânica do melado, feito pelos escravos. O melado era obtido através da fervura do caldo de cana, mexendo sem cessar, enquanto esquentava ao fogo.
Um descuido fez com que o melado, guardado em pote de barro, sofresse a ação do ar e de partículas presentes, oxidando o líquido, como aconteceu com o pão e o vinho.
O processo chamado fermentação, transformou o caldo de cana numa bebida forte, que tomada em grandes quantidades, embriagava. Foi o que bastou para serem construídos alambiques de barro, até hoje existentes em lugares onde a bebida é artesanalmente feita.
A bebida, repudiada pelos portugueses que não queriam ver a queda nas vendas da bagaceira, feita em Portugal e utilizando o bagaço destilado de uvas, tomou o gosto dos brasileiros. Ilegal diante o mando português, acabou sendo livre com a Independência.
Mas sempre foi produzida e consumida. A melhor cachaça produzida é mesmo a que é destilada em alambiques de barro, cujo melado fermentou em potes do mesmo material. Por ser inerte, não contêm sais de cobre, inevitáveis nos alambiques tradicionais comuns, tóxicos. O alambique de barro é raridade; poucos lugares ainda possuem o recipiente não tóxico e que vem de muito longa data.
A fabricação artesanal exige cuidados especiais. Os primeiros produtos destilados, ditos cachaça de cabeça, devem ser bebidos apenas com muita moderação pelos apreciadores. Fato idêntico ocorre com o final da destilação, a chamada cauda da cachaça. Deve ser descartada, como a cachaça de cabeça, para a obtenção do produto que vai envelhecer, no mínimo, por dois anos em tonéis de carvalho que serviram para amadurecer vinho tinto. É este o processo artesanal, conhecido como perfeito na produção da melhor cachaça.
A indústria, naturalmente, não pode adotar este método, onde a produção é pequena.
Usa grandes alambiques de aço inoxidável, e o caldo de cana é fermentado artificialmente.
Gostou? Beba uma boa dose, sem exageros. Cachaça de pote é coisa séria...

quarta-feira, 25 de março de 2009

Compadre Emerenciano

Na trilha






Emererenciano era conhecido de todos. Não havia favor que não fizesse.
Na pequena vila, casas simples, interior do sertão mineiro, ruas de barro que viravam grandes filtros quando chovia forte. O barro era bastante misturado com finas camadas de areia, que faziam ser a água do lugar de uma pureza absoluta.
Sua viagem até a cidade próxima era mais do que necessária; além do soro antiofídico, outras coisas se faziam precisar.
Preparava a viagem, que iria fazer com seu sobrinho mais velho, Ricardo. O forte moleque, que já beirava seus vinte anos, era o braço direito do tio. Emerenciano vinha de ninguém sabe onde, fora casado por oito anos, mas a mulher, fraca, não sobreviveu ao ataques consecutivos da malária. Não, ela não morreu da malária não. Seu corpo enfraquecido não aguentou a pneumonia brava. Em quatro dias, levaram seu corpo ao pequeno cemitério do lugar. O marido gostava muito dela. Sofreu e penou, o coitado. Mas era considerado na vila como um sábio e santo. Tendo estudo na cidade, onde completara o ginásio, era juiz, advogado, médico, enfim, não havia morador do lugar de menos de duzentos habitantes que não precisasse dos seus serviços, sempre disponíveis.
Ele mais o sobrinho já haviam preparado tudo. Viagem curta: não passariam de dia inteiro. Arroz, carne seca, farinha, café, rapadura e cachaça faziam parte do farnel bem acomodado na capanga de couro, velha, mas ainda em perfeitas condições.
Manhã cedo partiram, cada um na sua mula, lenta, mas capaz de enfrentar a estrada ruim que tinham pela frente. Merê, este era o apelido do homem já envelhecendo, não descuidou de limpar bem a velha espingarda de cartuchos, tiro único, calibre vinte e oito. Dez cartuchos, para que mais, se três deles estavam carregados com chumbo T, especial para animais de grande porte? Ricardo também levava uma faça mateira, grande que parecia espada.
Seguir caminho de noite não valia a pena. Não tinham pressa e o caso era de acampar, fazer fogo, cozinhar o arroz com a carne seca, dessalgada num riacho de águas cristalinas. Deixasse a carne mais tempo naquela água fria era erro: precisaria mais sal. Enquanto preparavam o arroz com a carne, bebiam a velha cachaça destilada no alambique de barro do Dr. João, vulgo Janjão, um homem de melhor qualidade, como tudo que fazia, inclusive a cachaça. Cachaça de pote, sem resíduos do cobre e envelhecida em tonéis de carvalho que haviam sido usados para amadurecer vinho tinto.
O esturro que ouviram foi forte. Onça, e das grandes. Barulho intenso na mata, a bicha estava no ataque sem o menor cuidado de não se fazer notada. Os burros estavam em pânico. A vinte e oito é mais arma passarinheira, mas usando cartuchos T é muito perigosa, como todas as armas.
O tiro fez eco no lugar. Foram procurar a atingida. Nada de mata derrubada, nem chão marcado, nem bicho encontrado.
Como no sertão isto é comum, amanheceu o dia e tio e sobrinho seguiram viagem. Histórias da mata, histórias do sertão.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Venturoso

Mendigos










Venturoso não pertencia à família que quisesse homenagear Dom Manuel. Tinha este apelido somente por que dava uma sorte danada com mulher.
Era um tal de Zeca isto, Zeca aquilo, Zeca disse, caramba, uma chatura este negócio de Zeca, ou seja José Carlos o seu nome ser toda hora pronunciado pelo mulherio. Bonitão, só não podia abrir a boca. Errou quem disse que ele não tinha dois dentes. Errou quem disse que seu hálito matava urubu voando a mais de mil metros de altura. Vocês são muito precipitados. Já ficou devidamente esclarecido que Venturoso era bonitão!
Não podia abrir a boca de alvos dentes e sem nenhum odor porque era uma besta. Um idiota mesmo. Se era famoso entre as mulheres, era por causa do seu porte, sua carteira e algo mais que não devo mencionar. Mais nada. Vestia-se bem, claro, tinha dinheiro e bons amigos que não deixavam ele comprar aquela camisa indiana, que da Índia só tinha a etiqueta, era chinesa legítima, falsa, falssíssima.
O fato é que Venturoso, o Zeca, conseguiu ninguém sabe como deixar-se apanhar por uma estranha e linda mulher, olhos determinados, e que tinha fama de ser bruxa famosa. Os encantos começaram a surtir efeito. Zeca contratou uma professora de português. Como se não bastasse, ensinava muito bem o inglês também.
Bruxa é bruxa, e em menos de ano dava gosto conversar com Zeca, o Venturoso era capaz de manter uma conversa agradável longo tempo. O inglês ia de bem a melhor. A bela bruxa havia feito valer seus talentos.
Por uma maldição qualquer, talvez dos deuses do Olimpo, devassos, incestuosos, vingativos e safados, a ligação que o Venturoso mantinha com Isabela, o nome da bruxa, sofreu um terrível abalo quando ele se encantou pelas pernas e pelo traseiro de uma rainha de bateria de escola de samba, cujo nome omito por uma questão de escrúpulos.
A bruxa Isabela soube logo, enganar uma bruxa como?
O fato é que Venturoso perdeu o dinheiro que tinha, não fala mais coisa com coisa, sumiram as roupas e mulheres bonitas. Perdeu tudo!
Dizem, eu não sei se é verdade, que hoje anda com um grupo de mendigos, lá nas proximidades da Lapa...

domingo, 15 de março de 2009

Lula e Obama

Lula e Obama/G1










Felizes e contentes, os presidentes Lula e Obama posaram em diversas fotos.
Sorridentes, não sabemos por qual motivo, afirmaram que a solução para a crise é política, o que venho dizendo desde o mês passado. Não com política vigente, mas com uma drástica guinada para um socialismo absolutamente liberal.
Casas legislativas abertas, escancaradas, partidos políticos que reúnam as mais diversas opiniões livres, fim do presidencialismo, a ditadura com mandato. É um regime que inevitavelmente estará espalhado pelo mundo inteiro, num futuro que não sabemos quando.
O Primeiro-Ministro com a sua equipe tomam conta do país. Errou? Moção de desconfiança. Se for aprovada, elege-se outro, sem prejuízo para as instituições.
Mas convenhamos. Reunião a portas fechadas para decidir o futuro do menino Sean, objeto de guarda pelo pai ou pelo padastro, não tem sentido nenhum no encontro entre presidentes. Foi o mico que a imprensa mundial já anotou. Não poderia ser diferente num encontro Lula-Obama. Quem decide isto é a justiça!
De concreto, nenhuma medida foi anunciada. Claro que não poderia, afinal não decidiram nada. A razão destes largos sorrisos é segredo de estado.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Pinha retinida

pinha retinida/nó












O nó da figura, chamado em marinharia de pinha de retinida, ou simplesmente pinha retinida, é o mais perfeito e trabalhoso dentre um sem número deles. Sua utilidade principal é arremessar a bola feita de cabo, pois nenhum marinheiro usa a palavra corda, salvo para a corda do relógio, hoje ultrapassada com os relógios que usam cristais submetidos a impulsos elétricos e a corda do sino de bordo. A bola feita substititui uma pedra ou material semelhante. Serve para ser atirada em qualquer objeto no mar, até mesmo em outro navio.
Arte antiga, do tempo das caravelas, até hoje é usada, inclusive com o belo e bem trabalhado nó, que na maioria das vezes é utilizado como chaveiro.
A pinha retinida tem um outro aspecto. Subjetivamente, é a união, que nada mais é do que a união consigo mesmo, quando conseguimos cumprimentar o nosso lado oculto. O homem que se encontra vive melhor. Conhece seus defeitos e virtudes, e na medida do possível procura evitar seu lado negro, que todos temos.
Esta arte de marinharia pessoal não é difícil de ser alcançada. Geralmente, a grande mestra é a idade. Todo aquele que se preocupa com o conhecimento de si mesmo, alcança com o trabalho interno e externo, e principalmente com a idade. O que o tempo nos tira dos braços e pernas, compensa com sabedoria.
Há que estar atento; os que apenas dão importância a ver a banda passar perdem a condução.
Sem a menor dúvida, a Vida é a mais bela pinha retinida existente.

domingo, 8 de março de 2009

Situação desastrosa

Platão/Rafael Sanzio














Por mais que queiram os que acreditam em supremacia eterna, os Estados Unidos entraram em franco declínio e ao que tudo indica, ruíram os pilares da nova Roma do continente americano.
Nunca o desemprego esteve tão forte, os bancos apresentando prejuízos consideráveis, e as perspectivas tão sombrias. Eles mesmos cavaram sua própria sepultura, quando não respeitaram as regras do capitalismo coerente, produtivo.
A crise teve início no setor imobiliário, um dos mais garantidos do mundo.
O povo americano não merece os desmandos dos seus dirigentes. As consecutivas guerras liquidaram com o tesouro americano. É sempre bom lembrar das palavras de Gorbachev: todos presidentes americanos, depois da Segunda Guerra, iniciaram um conflito armado.
Este procedimento, com o passar dos anos, exaure a riqueza de uma nação. Este procedimento causou a queda do Império Romano, e não serve de lição para os dirigentes mais novos.
Mesmo Obama, que era uma esperança para muitos, menos para os experimentados com a política presidencial dos Estados Unidos, tomou atitude decidida contra os interesses do Pentágono. Aparentemente, porque ele não tem outra missão que não seja ser mais um presidente dos EUA. É obrigado a defender o seu país e o seu povo, conforme manda a tradição.
O decidido povo americano não merece isto, mas ele mesmo colabora com o caos, quando não toma providências legais cabíveis para reverter esta situação. Os dirigentes continuam na velha política: o presidente americano vai se reunir com o primeiro-ministro inglês, sempre a velha política anglo-saxã.
Resolver o quê? A Inglaterra está tão afundada como os Estados Unidos!
E mais do que chegada a hora dos povos reverem suas situações políticas.
Não sou filósofo, mas qualquer cabeça pensante vai chegar à conclusão que já passou da hora de mudança. Um socialismo moderno, com o legislativo em pleno funcionamento, partidos livres, autoritarismo excluído, regime parlamentar e outras mudanças democráticas políticas são urgentes. O mundo mudou! Estas são apenas as regras fundamentais, Esta afirmação dá para defender uma tese, escrever um livro. Não se pretende isto, nem tenho capacidade para tanto.
Quem não aceitar esta realidade, vai sucumbir. A democracia tem muitas faces!

terça-feira, 3 de março de 2009

Sem susto

Rua escura

















O homem que caminhava solitário nos arredores da Praça Mauá, onde fora tomar uns chopes, havia trabalhado muito naquele dia.
Oficial intermediário da Marinha de Guerra, era comandante de uma lancha de patrulha da costa brasileira. Passara a tarde estudando o litoral da Restinga da Marambaia, onde suspeitava haver um grande despejo de tóxicos, jogados pelos navios. Ecstasy, a droga que mata por overdose.
Era um excelente oficial, mas sem dúvida um tipo um pouco estranho. Casado, pai de duas filhas, sempre teve um grande respeito pela família, onde era a docilidade em pessoa.
Não era assim no trabalho nem na sua conduta. Os seus comandados sabiam bem que não deveriam ser relapsos nas tarefas. Qualquer ajuda que precisavam, era só falar com o comandante. Não emprestava dinheiro porque não faz parte da vida militar, e tinha família, ganhava o suficiente. De resto, uma palavra sua ajudava muita gente. Ser trabalhador e honesto acima de qualquer suspeita garantiam este privilégio.
Os oficiais da Marinha usam hoje pistolas nove milímetros, geralmente Browning. Catorze tiros no carregador. Nem é preciso usar o segundo pente, é muito cartucho. O comandante também usava sempre uma pistola nove milímetros. Mas era a histórica Walher P.38, a famosa arma que os alemães colocaram para substituir a Luger. Esta era também uma excelente arma, mas qualquer carga deficiente, por menor que fosse, fazia a arma não funcionar, tamanho era o seu esmero na fabricação.
Este fato não acontecia com a P.38. De precisão no tiro impecável, aceitava e aceita munição bem ou mal feita. O comandante usava o stand de tiro da sua unidade. Como abusava na quantidade de disparos, usava uma pistola de pressão. Era raro fazer pontaria. Apontava a arma e os pontos mortais da silhueta eram acertados com facilidade.
Rua praticamente deserta, os automóveis preferem não passar em frente ao Primeiro Distrito Naval, durante a noite.
O comandante percebeu a manobra de dois tipos suspeitos, e continuou andando tranquilamente, mas sua mão já estava no cabo da P.38.
A polícia não se incomoda muito quando topa com cadáveres de marginais conhecidos. Dois tiros no peito de cada um.
O oficial, embora tenha sofrido por ser obrigado a tomar esta decisão, pensou que era bem melhor do que deixar esposa e duas filhas sem ele.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Hemingway

Hemingway












O homem sentado, bem vestido esportivamente, aparentava ter passado dos cinquenta anos. Eram onze horas e poucos minutos, céu claro, mar limpo, céu transparente.
Bebia um gim-tônica, lentamente, enquanto escrevia num caderno de boa aparência. Via-se que não tinha medo, fato incomum nos dias atuais. A caneta era uma Parker 51, com a tampa em ouro. São poucos os que se atrevem a cometer atos assim. Qualquer desocupado com intenções menos honestas poderia com facilidade roubar seu precioso objeto. Antes de chegar,passava sempre na Bodeguita del Medio, bar famoso.
Atento ao que escrevia, pouca importância dava ao fato. A caneta corria firme, com pequenas observações de quem estava redigindo à beira-mar.
Misteriosa figura. Corpulento, de bermudas e camisa pólo impecáveis, sapatos tipo mocassim leves e confortáveis, só prestava atenção ao que escrevia, ninguém sabe o quê, além dele. O gim-tônica descia vagarosamente, embora tomado em doses significativas. Acendeu um cigarro, fato que hoje é bastante incomum, mas tempo era passado. O garçom serviu outro copo, limpo, quando percebeu que já havia chegado a pouco menos da metade o que estava na mesa. Recebeu um leve aceno de cabeça, como aprovação.
A caneta corria, cada vez mais. As leituras de revisão eram poucas. Tudo fluía como um verdadeiro rio correndo nas suas margens. Pela expressão de quem escrevia, o resultado era bom.
Outro cigarro, e mudança de copo. Bebia quatro, antes do almoço, segundo os locais, que apreciavam o trabalho solitário e constante daquele homem de barba branca, vezes aparada, vezes não.
O bar ainda existe. A cidade é Havana, Cuba.
O homem, todos dizem, era Ernest Hemingway, quando escreveu “O Velho e o Mar”, talvez o melhor livro de alguns séculos passados. Santiago continuava lutando contra o espadarte, sozinho e sangrando nas águas do Golfo. Falando consigo mesmo. A falta de Manolín, o menino que o acompanhava, era grande. O Sol queimava-lhe os olhos. Tudo era contra, mas Santiago desafiava o combate. O peixe era um lutador. Sente-se a Vida, o drama humano.
É o que contam.