quinta-feira, 30 de abril de 2009

Segredo das roseiras

Rosas










Certa ocasião, era jovem, mas até hoje ainda me lembro, li que as roseiras têm estranhos mistérios.
Não dei maior atenção ao fato, mas nunca o esqueci. A curiosidade aumentou quando soube da mística Rosa de Ouro, uma das representações da alma completa. Segundo velhas tradições orientais e ocidentais, é uma rosa de quatro folhas, abertas num mesmo plano. Simboliza o Todo, a Essência.
Como tenho facilidade de entalhar, peguei formões e goivas, madeira bem seca e iniciei um trabalho. Tosco no início, ganhou formas que eu mesmo duvidei, à medida que entalhava. A rosa surgia, por si só, cada vez mais bela.
Não me perguntem a causa; jamais descobri. Sei apenas que não tinha habilidade ou arte para conseguir o resultado final, que ocupa uma das paredes da minha sala e merece elogios. Acontece que não sou entalhador, aprendi o trabalho sozinho e reconheço que minhas mãos são bastante limitadas com as goivas.
Se o trabalho saiu bonito, na minha pouca compreensão deste mister, é porque foi feito com calma e carinho. Todo o resto é por conta da rosa mesmo, que se completou independente da minha vontade.
O fato não se acaba. Fosse apenas isto, eu entenderia como um golpe de sorte. Por conta do meu entalhe, acabei ganhando quatro mudas de roseiras silvestres, simples, mas nem por isso menos bonitas que suas efêmeras irmãs graúdas. Plantei no barro, como manda a boa técnica.
Cultivei as mudas que se acabaram transformando em adultas. A partir daí, começa o mistério das roseiras. Em todos os momentos importantes, não cessam de nos presentear com um botão, em épocas significativas.
Fiquei conhecendo o maravilhoso mundo das flores. Fiz uma intervenção cardíaca para eliminar uma taquicardia por excesso de nervos no coração. Feita por via femoral, os riscos são mínimos, e os nervos seccionados por ondas de rádio. Sucesso absoluto, fiquei no hospital apenas vinte e quatro horas, e benditas sejam as mãos e o conhecimento do jovem cirurgião. Taquicardias nunca mais.
Quando retorno para casa, encontro uma linda rosa, cujo botão não foi visto. Mas a roseira não se esqueceu do seu amigo.
Finalizando: faço aniversário breve. As roseiras, sabedoras do assunto, deram-me um presente. Todas elas! Enfeitam-me a sala...

terça-feira, 28 de abril de 2009

Miséria humana

Quarto do pintor












As cartas de Van Gogh ao seu irmão Theo e o depoimento deste, não deixam dúvida. Pouco antes de morrer, Vincent disse que la misère ne finira jamais.
Mais uma conclusão do pintor que revolucionou a arte.
Vincent não afirmou que a miséria monetária do homem não teria fim. Seu alcance foi bem mais longo. Ele sabia que a miséria humana não tem fim, sentiu esta verdade dentro de sua alma. O homem sofre, é uma condição da vida.
Sentiu ao longo da sua existência que o fato é verdadeiro, embora tenha sido um doente. Da sua doença surgiram os mais belos quadros e sobretudo expressivos que conhecemos. Além de mestre nas tintas, compreendia bem a vida. Não fosse assim, não conseguiria transmitir a emoção que quis e conseguiu passar para a Humanidade.
São pinturas expressivas aos extremos, ora tristes e igualmente de uma beleza incomum. O par de botas, o quarto do pintor, ele mesmo com a orelha decepada por um corte de navalha, fruto de uma briga com o seu contemporâneo Gaugin, tudo isto importa numa visão de vida exterior e interior muito grande.
O homem nasce sozinho, vive sozinho e morre sozinho, a despeito do que queremos crer. Por mais amor que o cerque, sua existência é solitária.
Foi isto que o mestre concluiu e viveu.
Seus campos, seus trigais. As cenas humanas retratadas mostram um homem que conhece suas limitações e misérias.
Mostram igualmente a grandiosidade de um homem que mesmo sabendo nada, soube transmitir o tudo...
É verdade que a Vida está cheia de lados negros. Mas o melhor é vivermos com todas as felicidades que ela nos oferece.
A começar pelo amor. Tem tanta coisa...

terça-feira, 21 de abril de 2009

Antero do sino

Sino













Vindo ainda pequeno de Feira de Santana com pai, mãe e irmãos, Antero Siqueira desfrutou da calma e da camaradagem dos seus novos amigos que moravam na cidade onde o pai tinha escolhido para sair da Bahia.
Não existiam motivos para a saída da cidade baiana, até que o pai de Antero, Honorato Siqueira, meteu a faca num adversário maldoso e antigo que tinha. Cupelo morreu na hora, não resistiu aos golpes recebidos. Azar o dele, não tinha nada que se meter com Glorinha, filha mais velha de Honorato. Descaradamente, Cupelo havia passado a mão nas pernas da moça, na feira, quando ela fazia compras para a mãe. Embora vistosa e com cara muito bonita, a moça de apenas 16 anos não merecia a gracinha de Cupelo, visto e revisto na cidade como um conquistador audacioso e barato.
Quando Honorato interrompeu os goles de pinga que o safado estava calmamente bebendo, e pediu satisfações ao namorador ordinário conhecido, este não teve dúvidas. Abriu o paletó e mostrou a garrucha que sempre o acompanhava. Esqueceu, porém que quando um pai vai tomar satisfação de mal feito a filho seu, não costuma ir desarmado. E aconteceu o inevitável. Honorato já não estava calmo, nem razões havia para isto. A faca que carregava, desta do tipo de escoteiro, não muito comprida, mas amolada e guardada na bainha de couro, apareceu rápida nas mãos do pai injuriado – era como ele via o fato. Os médicos que examinaram Cupelo constataram três ferimentos, mas ninguém presente, nem mesmo Honorato, contou os golpes desferidos no debochado que deveria saber que mais cedo, mais tarde, ia terminar desta forma nas mãos de um pai, noivo ou marido.
Até resolver direito o que faria, Honorato ficou sob a proteção do coronel Elias, proprietário de um mundão de terras na região. Podia continuar na fazenda, mas não queria viver como bicho coitado.
O coronel, homem de conhecimentos, sugeriu a cidade no interior de São Paulo. Tinha um irmão que morava lá, vivia da lavoura e proclamava a pequena cidade como sendo o próprio paraíso. Honorato mais mulher e três filhos rumou para a cidade, onde já o aguardava o irmão do coronel Elias, que também era conhecido seu.
Enquanto não arranjou onde ficar, morou na fazendola do Quincas, que o conhecia muito bem, trabalharam juntos numa pequena fundição em Salvador, quando jovens. Faziam muitas peças, praticamente todas sob encomenda. O negócio pequeno não era nada ingrato; rendia uns bons trocados.
E foi exatamente uma pequena fundição, em sociedade com o velho amigo e ainda saudoso de ver o metal líquido ganhando forma, que Honorato começou vida nova. Quincas arranjou um empréstimo com o irmão, o investimento não era de monta, mas também não era de assustar ninguém.
A fundição foi inaugurada e os moradores da pequena e calma cidade ficaram orgulhosos de existir naquela pacífica terra um negócio de cidade grande, segundo eles pensavam.
A cidade era toda arborizada, clima ameno, gente tranqüila jogando cartas ou dominó nas praças onde não faltavam canteiros floridos.
O tempo passou, Glorinha casou, Honorato foi avô de uma linda menina com os olhos claros, pois sobravam italianos e descendentes na cidade.
Antero foi bom aluno, podia ter estudado para ser doutor, mas preferiu trabalhar com o pai, na fundição. Em pouco tempo, dominava a arte de construir moldes, conhecer a exata temperatura do forno para derreter metais e compor ligas que faziam a parte final do que executavam. As encomendas eram quase todas de fora da cidade.
Têm fatos que não se explicam. Num temporal furioso, um raio destruiu a torre da igreja da cidade, e o sino veio abaixo, rachando não muito, mas o suficiente para soar muito mal, quando tocado.
Cidade do interior sem igreja não é cidade. Tão logo moradores que tinham por ofício a construção, repararam a torre. Deu trabalho, mas valeu a pena. Ficou faltando o sino, guardado nos fundos da igreja, num pequeno pátio.
Lembraram logo de Antero, que agora dirigia a pequena fundição, para reparar o sinaleiro das horas e instrumento indispensável nas festas.
Antero examinou, pensou, mediu. O sino no pátio tinha conserto e cabia no seu forno. Depois de cuidadosamente reparado, tendo atenção especial para quando soasse não dar a impressão que tinham batucado numa lata velha, mas num instrumento de respeito, o sino voltou ao seu lugar original.
Para encantamento dos moradores e do próprio Antero e os homens que conseguiram recuperar a peça, seu som ficou mais bonito.
Comemoração geral, agradecimentos até do bispo!
E o já não moço fundidor ganhou o apelido de Antero do Sino. Nunca havia desejado fama ou riqueza, mas ficou conhecido, comprou um forno maior e contratou novos empregados, que ele mesmo se encarregou de ensinar o ofício e trabalhar observando sempre o cuidado, o amor pelo que se faz.
O tempo passa célere, e assim aconteceu com Antero e outros moradores. Antero do Sino já havia completado 40 anos.
O filho mais velho do Cupelo tinha um pouco menos idade. Mas guardava o rancor ainda dentro do peito, esta coisa amaldiçoada que destrói gente e o mundo. Descobrira onde estava o homem que matara seu pai, e havia jurado vingança. Honorato estava muito velho, quase não fazia mais do que comer e dormir. Permitia-se, e que ninguém se metesse, a tomar um trago de pinga antes do almoço, e só. Nem cartas ia jogar mais com os velhos amigos, só aos sábados comparecia.
Canalhas não merecem nomes para a posteridade. O filho de Cupelo, na tocaia, atirou quatro vezes contra Antero. Não vai pai, vai filho, pensou a cabeça imunda.
Antero tombou mortalmente. A antiga história de Feira de Santana permaneceu desconhecida.
No seu enterro, o sino da igreja tocou todo o tempo. Som triste, choroso, despedindo-se de quem lhe havia dado alma.

domingo, 19 de abril de 2009

Fernando Gaivota

Veleiro na tempestade/A.Miguel











Fernando sempre teve este nome. Gaivota foi acrescentado: não saía do mar.
Quando as águas da Guanabara eram claras e cristalinas, lá pelos idos dos anos 50, ele não passava um dia sem cumprir seu ritual, fosse verão ou inverno, dia ensolarado ou chuvoso. Nadava a praia em toda sua extensão, que tem aproximadamente mil metros. Terminado o percurso, o garoto corria na areia de molhada do mar exigia grande esforço físico, tinha encerrado o seu primeiro exercício.
Bom aluno, não deixava de estudar, após breve sono depois do almoço. Não era preciso muito esforço; aprendera que nada como prestar bastante atenção nas aulas para assimilar com facilidade a matéria dada.
Este procedimento mostra sagacidade. O aluno não precisa ficar horas estudando a matéria dada em sala de aula. Se o professor é bom, ou mesmo razoável, o conhecimento fica cristalizado na hora. Era este o seu método, ensinado por pai e mãe, que haviam exercido o magistério.
Terminado o seu estudo, fazia uma série de exercícios físicos rigorosos, que sempre terminavam por um especialmente difícil. É a subida numa corda, pendurada em árvore, usando apenas a força dos braços, pernas formando um ângulo de noventa graus com o corpo. A corda tinha dez metros.
Apesar de tanto exercício, Gaivota era magro, mas extremante musculoso.
Não tinha nada dos rapazes de hoje, que viram brutamontes com o uso de aparelhos que usam halteres. Ficam com os corpos fortes e não praticam esporte algum que exija força, salvo a musculação mesma.
Gaivota não fazia parte deste tipo que surgiu há poucos anos. Nos fins de semana, aproveitava o seu tempo velejando quase o dia inteiro, acompanhado de um amigo. Quem não conhece o esporte da vela, acha prosaico, romântico e belo os barcos a vela deslizarem pelo mar, movidos pela ação do vento e sendo capazes de andar contra o mesmo, em ziguezagues. Isto é possível porque os veleiros possuem uma peça chamada bolina, nos barcos pequenos, e quilha, nos oceânicos. Nada mais é do que uma lâmina que fica mergulhada n’água e impede que o veleiro tenha movimento lateral. A bolina impede este movimento, impelindo-o para frente, desde que faça um grau suficiente com a direção do vento. Um barco a vela é considerado bom se consegue navegar contra o vento num ângulo de trinta graus.
Fernando tinha amplo domínio no pequeno Snipe, uma classe de veleiros que talvez seja a mais conhecida no planeta, tamanho é o número destes barcos pelo mundo afora. Comporta dois tripulantes, nas disputas. Fora das regatas, pode mesmo transportar cinco tripulantes que não sejam muito pesados.
Este tipo de veleiro não deve percorrer águas desabrigadas; não foi construído para o mar aberto, o mar sem fim, a grande massa d’água que ocupa três quartas partes da Terra.
Este pormenor, no entanto, nunca impediu Gaivota e seu amigo apelidado Carnaval, pela sua extrema alegria e comicidade, de velejarem fora da linha imaginária que delimita a pequena entrada da baía da Guanabara: o Pão de Açúcar, pelo lado do Rio de Janeiro, e a histórica Fortaleza de Santa Cruz, pelo lado de Niterói. Gaivota e Carnaval muitas e muitas vezes velejam até as praias oceânicas do Rio ou de Niterói.
Velejar é um esporte que exige muita força e excelente preparo físico, mas as compensações são quase indescritíveis. Sente-se o vento acariciando sua pele, existe o desafio de chegar ao destino e voltar sem problemas. A refeição quase sempre é sanduíche, e uma maçã é sempre bem-vinda. Por razão inexplicável, salvo para dias frios, nunca falta uma bebida alcoólica, geralmente o conhaque. Nos dias quentes, a cerveja é obrigatória. Marinheiros gostam de beber, mas não ficam embriagados. Caso isso ocorra, o perigo de um acidente é muito grande. Uma laje pode destruir completamente o barco, em caso de colisão.
- Então, Fernando, você se decidiu mesmo a entrar para Escola Naval.
- Não vejo outra profissão para mim, pai. Eu nasci para o mar.
- Todos nós vemos isso. Mas a vida militar não é fácil, e você sempre foi muito livre. Acredita que vai suportar viver sob ordens?
- Pai, a questão não é essa. Que vou fazer, longe do mar? Sei obedecer e saberei mandar, não se iluda!
- Nunca eu me iludi com você, Gaivota – o pai usava carinhosamente o apelido de Fernando.
- Então não há razões para temores, eu não quero deixar você e a mãe preocupados. E não vejo preocupação nenhuma, sendo oficial da Marinha.
- Se está preparado para isto, não vou ser eu que vou ficar contra sua decisão. Vou ficar orgulhoso quando você receber sua espada de oficial.
- Calmo aí, pai. Nem entrei para a Escola ainda...
- E você duvida que um lugar lá não é seu?
- Não sou míope, tenho todos os dentes tratados, passo nos exames físicos com facilidade. E as provas intelectuais estão todas ao meu alcance. Tenho um resumo das anteriores. Não seria reprovado em nenhuma!
Foi exatamente o que aconteceu, dois anos depois. Fernando passou com excelentes notas e os exames físicos revelaram que seria um excelente oficial. Até que certo dia, um navegador famoso, reuniu um grupo de velejadores experimentados, para disputar uma “Buenos Aires - Rio”, regata tradicional no calendário dos corredores.
Fernando foi chamado. Seria o timoneiro principal.
Num veleiro de 45 pés, cerca de 13,5 metros, rumaram para Buenos Aires.
A partir da Ponta de Juatinga, situada no extremo sul da baia de Angra dos Reis, o mar toma outro aspecto. Normalmente tranquilo, até este ponto ele se torna imprevisível, principalmente quando atinge a costa do Paraná.
Fernando era o timoneiro no quarto da meia-noite. Chovia e ventava bastante. Por questão de manobra importante, sempre um tripulante fica no convés do barco. Hugo, o companheiro de Fernando na noite tempestuosa, foi fazer um café quente, que seria tomado com uma dose de conhaque.
Quando voltou ao convés, as velas batiam, não estavam mareadas – termo usado pelos velejadores para dizer que apanhavam vento pleno.
Não se via ninguém na roda de leme.
Até hoje, o corpo não foi encontrado. Dizem – os marinheiros contam muitas histórias – que Fernando se transformou numa bela gaivota...

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Sonho com estrelas

Tempestade Perfeita / Nebulosa do Cisne / Nasa













Neste momento o viajante parou. Parou e voltou seus olhos para cima, onde tudo eram pontos luminosos, clareando a noite.
Atônito, deu por si a grandeza que o encobria, sem entender o porquê daquela maravilha que, até pouco tempo atrás, não se tinha dado conta.
Quem olha o céu, cisma!
Não conhecia nenhuma estrela, menos ainda o nome das constelações. Saturno, com seus anéis que dão infinita beleza ao firmamento, quando observado instrumentalmente, brilhava fulguroso, com luz firme, sem cintilar como outros pontos. Eles eram azuis, brancos, alguns amarelos e em número menor, vermelhos.
Tentou entender o que se passava. Aquele era o universo de Deus?
Sim, pensou. Era sim. Tanta coisa bonita tudo em perfeita harmonia, aqueles olhos luminosos e coloridos que o contemplavam. Pois era exatamente isto que acontecia, ele estava sendo olhado por muitos olhos cintilantes.
O mirar do céu iguala os homens. Naquele momento, o andarilho tinha o mesmo conhecimento dos sábios que entendem do céu, ainda que o conceito de ascensão reta, primário para os astrônomos, fosse para ele até mesmo difícil de pronunciar corretamente.
Sentiu que pertencia àquele mundo, para ele tão harmonioso, perfeito e belo. Cansado, procurou um local, deitou-se e continuou a olhar as estrelas, julgando-se também dono de tudo aquilo, pois as estrelas não são de ninguém, são de todos nós. Assim adormeceu.
Dormiu feliz, num contentamento que nunca havia experimentado, pensando que afinal fazia parte de tudo aquilo.
Desconhecia que as estrelas explodem, causando uma catástrofe celeste e criando astros novos, com o passar dos milênios. Que as órbitas aparentemente imutáveis sofrem alterações, e que é possível sermos atingidos por um corpo errante, destroçando todo o planeta, e que um dia, para nós ainda muito distante e para o Universo sem significação alguma, o Sol vai morrer, não brilhará mais, enquanto muitos outros mundos estarão nascendo.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O bonde e a literatura

Anúncio


















O bonde nas cidades brasileiras é antigo, era movido por tração animal e foi uma revolução no transporte nas cidades. Vem do tempo do Segundo Império, até que em 1892 foi colocado nos trilhos o primeiro movido a energia elétrica, no Rio de Janeiro.
Causou estranho e curioso reboliço na cidade, chegando mesmo à pena de Machado de Assis. “O que me impressionou, antes da eletricidade, foi o gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu bond. Sentia-se nele a convicção de que inventara não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade.” – Crônica para “A Semana”, de 16 de outubro de 1892.
Não foi a única manifestação feita por escritor. Oswald de Andrade também escreveu sobre o veículo. “Eu tinha notícia pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira da minha tia, vinda do Rio, que era muito perigoso este negócio de eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde.” – “O Bonde e a Cidade”.
Insistir nas citações vai cansar. O fato é que havia uma firma tradicional que colocava anúncios dentro dos bondes, e os seus usuários podiam ver os mais diversos produtos festejados em prosa e verso.
Mas segundo muitos, certa ocasião Olavo Bilac estava sem dinheiro. Resolveu fazer uma publicidade para ser posta no bonde, e foi talvez a mais famosa.

“Veja ilustre passageiro
o belo tipo faceiro
que o senhor tem ao seu lado.
No entanto, acredite,
quase morreu de bronquite.
Salvou-o Rhum Creosotado.”

A publicidade teria rendido um bom dinheiro a Bilac, mas há quem afirme que o verso não é dele, mas do poeta Bastos Tigre. Difícil apontar o autor, mas parece que Bastos Tigre teria prestado um favor a Olavo Bilac, dando como sua a poesia de propaganda do Rhum Creosotado.
São histórias que fazem parte do Rio de outras épocas, quando namorar pelas ruas da cidade, voltando do cinema às dez da noite, não amedrontava ninguém, os bandidos eram malandros famosos e faziam ponto na Lapa. Todos conhecidos. Miguelzinho, Camisa Preta, Madame Satã...
Ainda existe o bucólico bonde de Santa Teresa. Mas sem o anúncio do Rhum Creosotado...

sábado, 11 de abril de 2009

Uma bela mulher

A Bela


















Não, ela não era a noiva.
Assistia ao casamento, e numa espécie de desafio às normas impostas pela sociedade, estava vestida de branco. Linda, com decote generoso que deixava quem a olhasse encantado com sua beleza. Pequenos adereços azuis, num disfarce que não convencia, ela se mostrava desejosa de estar diante do celebrante. Qual a mulher que não quer ter o seu príncipe encantado?
- Você está linda, mocinha.
- Obrigada. E você, como sempre, gentil.
- Não estou sendo gentil, Gina. Você está esplendorosamente bonita, apesar da maquilagem ter acrescentado alguns anos a mais.
- Estou parecendo uma velha, Eduardo?
- Velha não. Mais madura, mais mulher. E este seu tom de pele ajuda e compõe sua beleza, ressaltada pelo vestido branco.
Gina com uma discrição absoluta deu-me um beijo no rosto. Foi quando tive a mais absoluta certeza de que ela era uma entidade. Quando eu digo entidade, não me refiro aos espíritos cultuados nas religiões estruturadas.
Entidade é entidade; tipo difícil de ser descrito. Entidade é quem mitiga o sofrimento dos próximos. Ajuda aos que nada têm, com amor. Estica sua mão sem pensar em nada que não seja ajudar a quem precisa, sem cogitar de recompensas terrestres ou celestes. Difícil, é mesmo muito difícil falar neste assunto. Mas é muito fácil sentir que Gina é uma entidade.
- Cometi um absurdo, Gina. Aliás, nem tão absurdo assim...
- Posso saber qual foi?
- Você pode tudo. Sabe, por um feliz ou infeliz acaso, descobri uma moça que é quase você. Quase porque não tem a sua alma, o seu jeito de ser, a sua vida.
- Fiquei intrigada, Eduardo. Está falando de quê?
- Do acaso. O acaso prega peças indecifráveis. A moça é uma prostituta. Mas não tem aspecto vulgar. Aspecto, entende?
- Creio que você manteve relação com uma prostituta parecida comigo. Estou certa?
- Não poderia ser mais exata, Gina. Foi exatamente isto – disse segurando firme a sua mão.
- E por que está me contando isso, Eduardo? Quer que eu fique enciumada?
- Acaso você tem ciúmes de mim?
- Tenho e você sabe disso.
- Não sabia não. Seus sentimentos não são escondidos, mas este você tranca!
- Jamais escondi nada, Eduardo. Está sendo injusto comigo.
- Vou contar tudo, mas, por favor, não me julgue.
- Eduardo, você sabe muito bem que meus julgamentos só a mim dizem respeito.
- É exatamente por isso que não tenho receio de contar.
- Fala, homem!
- Gina, por um acaso eu estava fazendo uma pesquisa. Coisas vulgares, que todos conhecemos.
- E...
- E que descobri que existe uma casa, aliás, casa droga nenhuma, aquilo é uma organização muito bem feita, que entrega belas moças onde você quiser, basta indicar o lugar.
- Esta é a minha sósia, parece.
- Tirando o que sinto por você, praticamente não há diferença.
- Foi o que bastou para marcar hora, local e outras coisas?
- Foi, Gina.
- Sentiu-se realizado com ela, Eduardo?
- Nem um pouco. Não era você!
- Eduardo, eu quero casar, como a minha amiga! Se não casar, sonho de toda moça, ao menos ter companhia ao meu lado. Sempre...
- Reconheço sua vontade, Gina. Você sempre soube disso.
- Então continue o que estava me contando.
- Sabe, era tão bonita quanto você. E de corpo, querida, era melhor.
- Querendo me fazer ciúmes? Já fez. Acabou de fazer.
- Minha intenção não é esta, Gina. Confio em você para contar uma experiência. Foi muito marcante.
- Mas além de falar que era uma prostituta, bonita e com o corpo mais bonito do que o meu, não contou nada!
- Ela percebeu que estava sendo usada não como mulher paga, mas como substituta de outra.
- Substituta como, se você nunca teve nada comigo?
- É exatamente isto. Eu devo ter transmitido um sentimento forte. Estas mulheres são vividas, percebem tudo.
- Sentiu o prazer que esperava?
- Na hora, senti. Passados uns minutos, olhei a moça. Bonita, mas não era você.
- O que esperava, Eduardo?
- Esperava que você se manifestasse.
- Eu? Está delirando...
- Gina, você tem um aspecto estranho. Acho que é capaz de se transpor.
A cerimônia de casamento já havia terminado e nós dois permanecíamos diante da porta da igreja. Não tinha muitas palavras. Por um impulso que não deveria ter acontecido, contara tudo para a mulher com um incrível olhar de mistério, e que tinha o dom de ser honesta e ordinária, sincera e falsa, muito compreensiva e intolerante. Reunia, como todos nós, os opostos dentro da sua alma, e os usava sempre que necessário.
- Eu me transpor? Desde quando tem esta idéia?
- Desde que você escreveu que fatos não ocorrem por acaso.
- Ficou apegado a estas palavras?
- Um pouco. Não negue que você é meio bruxa.
- Talvez seja o meu sangue. Desconfio que tenham ciganos nas minhas origens.
- Algo de estranho tem. Ainda mais quando você está com este vestido branco.
- Ele incomoda você?
- Pode ter incomodado a muita gente que estava no casamento. A mim só impressiona.
- Eduardo, toda esta conversa é para termos certeza de que não seremos um do outro, e caso isto aconteça será uma coisa passageira?
- Acho que sim. A coisa vai por aí.
- Posso morrer de vontade que isso aconteça, mas não vai ocorrer nunca. Seria muito sofrimento para mim e para você.
- Eu nem sei bem se suportaria uma relação, Gina.
- Você ainda tem vontade de encontrar a moça?
- Que moça?
- A tal prostituta moça e bonita! Bota a cabeça do lugar, homem!
- Sim, é muito fácil encontrar a guria outra vez.
- Faça o seguinte: procure-a. Seja carinhoso com ela. Delicado. Trate-a como se fosse uma pessoa amada.
- Que história é esta?
- Você ouviu, Eduardo. Faça isto.
Deu-me um beijo suave e com amor; era impossível não sentir isto. Afastou-se, entrou no carro e partiu.
Como eu nunca havia duvidado de Gina, no dia seguinte procurei a bela Nina. Este era o seu nome.
Tudo aconteceu normalmente, mas a certa altura a presença de Gina ficou estranha e muito forte. O rosto e o corpo eram dela. Entidade?
Até hoje fico me perguntando se devo acreditar nisto...

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Quem sou eu

Jorge Sader Filho











Escrevo sobre política duas vezes por semana no Vote Brasil, especializado na matéria e detentor de dois prêmios Ibest, o maior da internet brasileira.
Colaboro com o Pravda desde o começo de dezembro passado. Da mesma forma que gosto muito dos contos, crônicas tancas e haicais, a crítica política é fascinante.
Mas fazem confusão com isto, principalmente por escrever para o Pravda. Algumas cabeças ainda julgam que a Rússia é comunista, e o jornal citado o seu porta-voz. Desconhecem que os russos adotaram um regime econômico bastante capitalista. Desconhecem igualmente que a crise financeira atingiu também a Rússia, que pode ter resultado negativo na sua economia no final deste ano de 2009.
Muitas vezes, dou umas pedradas no governo norte-americano, como acabei de fazer no meu artigo do Vote Brasil. Juntando isto tudo, a precipitada conclusão é de que Jorge Sader é comunista ou simpatizante. Quem assim pensar está equivocado, e muito.
Em primeiro lugar, não posso ser uma coisa que não existe. O comunismo acabou. Em segundo, e este é o mais forte, fui educado e tenho formação democrática ferrenha. Admito que o capitalismo deva sofrer mudanças drásticas. Os nossos filósofos políticos têm que encontrar um sistema socialista, onde impere a democracia. Casas políticas em pleno funcionamento, partidos políticos que representem as mais diversas vontades do povo em plena e total liberdade, extinção do cargo de Presidente da República, um ditador com mandato, substituído pelo Primeiro-Ministro, que seria como manda a tradição. É ele o candidato mais votado do partido vencedor das eleições. Com o seu gabinete, dirige o país. Em caso de erro ou qualquer falta apurada, seria votada a moção de desconfiança. Caso não a mereça, é substituído por eleição parlamentar. Este procedimento evita a crise política no país.
Medida excelente é o plebiscito comum. Toda vez que o povo sentir que determinada medida tomada pelo governo municipal, estadual ou federal fere seus interesses, tem o direito de protestar contra a mesma, que seria votada segundo critérios de número de eleitores descontentes.
Se prosseguir, escrevo um tratado, e não uma crônica política.
Tenho a impressão de que fui bastante claro. Sou um democrata convicto.

sábado, 4 de abril de 2009

Ninguém é perfeito

Ela

















Tinha cinquenta e sete anos de idade. Ela, vinte e cinco.
Todo mundo ajuizado costuma dizer que estas ligações não costumam dar certo. Ele mesmo estava cansado de saber, mas não soube como resistir aos encantos da bela jovem de corpo esguio, cabelos castanhos bem claros, olhos de quem estava pedindo algo. Ninguém discordava que era linda.
Apartamento com todo o conforto, ambos tinham recursos para isso, passaram os dois primeiros meses como se estivessem no paraíso. Caminhadas pela manhã, depois um lanche leve. Cereais, frutas e a moda do chá verde, variando com o branco, antes de tomarem um gostoso banho frio juntos. Começavam e acabavam os seus dias muito bem. Exigente e vigorosa na cama, não tinha razões para reclamar do parceiro.
No primeiro encontro com os amigos e amigas dela, a primeira paulada na cabeça. Tosos bem jovens, e embora fosse alvo de muitas atrações, o homem sentiu-se como um objeto de observações. Um moleque mais atrevido dava em cima da mulher o tempo todo, sem se preocupar com ele.
Deu sorte. Um dos presentes, percebendo a situação delicada, deu um leve esbarrão no assanhado. Como era conhecido, e já capitão do Exército, o folgado bateu em retirada. Foi a primeira vez. A esta sucedeu-se outra, mais outra, uma mais... Nunca viu atitude da companheira que repelisse tal fato. Perguntou o motivo. Nada, resposta de quem está acostumada com trapalhadas.
Naturalmente que no sexto mês, o que já era um recorde, as relações estavam bastante comprometidas, e ele cada vez mais apaixonado. Acordava cedo para ver aquele belo corpo nu, formas perfeitas, cabelos sobre os seios, boca sensual, nariz esculpido. Várias vezes ele perguntou se tudo não era um sonho. Sonho que havia com o tempo se transformado em pesadelo.
Até acontecer o inevitável. Flagrou-a gozando alucinadamente com outro. Não foi visto, havia entrado sem fazer barulho e o entusiasmo dos dois não permitiu que eles vissem nada. Qualquer um teria resolvido o assunto ali mesmo. Ele não. Preferiu sair como entrou. Se tivesse juízo, poder de decisão, mesmo com esta atitude equivocada poderia ter resolvido a questão de duas formas. Ou conversava com ela, com uma bebida leve para não atrapalhar, ou dava-lhe umas porradas e expulsava de casa.
Não fez nem uma coisa nem outra. A paixão imbecilizara o homem, que pensou na vingança, na vingança com sangue. Sabedora do que ele era capaz, ela não seria mais audaciosa e a fidelidade viria por coação, como se isto fosse possível. Não ficaria sem aquela mulher de jeito nenhum. O amor desmedido havia transformado aquele homem num idiota, como já aconteceu tantas vezes na face desta Terra.
Um chefe da segurança de um condomínio próximo tinha fama de não ser lá de muitos bons bofes. Combinou tudo com o homem. Sabia que o namoradinho corria na areia da praia muito cedo, antes mesmo do dia estar completamente claro. O que não sabia era que a mulher de quando em vez acompanhava o namorado. Também não explicou a questão muito bem ao matador, que deu um certeiro tiro de Smith K. 38 na cabeça da mulher, deixando o local rapidamente, de moto, enquanto o rapaz tentava socorrer a moça inutilmente.
O segurança tomou café rápido, aguardou a hora combinada e foi buscar o resto do dinheiro. Quando contou que havia atirado na mulher, um desespero apoderou-se do homem que já havia entregue o resto do dinheiro. Louco, avançou com uma garrafa de cristal em cima do matador. Não conhecia nada de lutas, sentiu apenas a dor forte no peito. O externo havia sido quebrado, morte na hora com o violento soco do assassino, que murmurou baixo: “sujeitinho idiota”.
E foi-se embora.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

O Pintor

A Primeira Missa/Victor Meirelles












O Sol estava favorecendo a antiga rua. Calçada por pedra muito bem cortada e colocada é uma reminiscência do Império; Pedro II teve casa no antigo bairro da Vila Real da Praia Grande. Luzes e sombras favoreciam o homem de meia idade de pintava com realismo extremado o casario velho que por lá existe.
Embora não seja mais executada ao ar livre, e usando de técnica dita por muitos antiquada, por reproduzir com muita exatidão o local, o homem trabalhava com calma e fumava muito, coisa também não vista com tanta freqüência hoje.
Os pincéis carregados de tinta estrangeira, levemente molhados na terebintina, corriam soltos na mão do homem vestido com um velho jeans, camisa xadrez de mangas curtas e um tênis que já mostrava uso, mas ainda bem inteiro.
Como já era o quarto dia que ele pintava as casas, sempre no mesmo horário para não ser prejudicado pelo jogo do claro-escuro, que pode corromper totalmente a iluminação, o quadro já possuía forma definida e era retocado no ateliê do artista, visivelmente. Já na primeira vez veio com o fundo preparado e seco, e a cor fazia crer que fora usada a terra de sena queimada, principalmente. O castanho-avermelhado, em tom escuro, autorizava chegar a esta conclusão.
De vez em quando o pintor abria a mochila que agora também faz parte da tralha usada na pintura ao ar livre. Retirava uma garrafa sem rótulo e num pequeno cálice de vidro grosso, tomava um gole do líquido. Ele mesmo preparava a beberagem, composta por vodca, mel e cravo. Gostava do que fabricava para consumo próprio. Ninguém nunca o viu bêbado.
Algumas pessoas, como sempre acontece, paravam para ver o meticuloso trabalho do artista. Sempre trocavam alguma palavra com ele, e ficavam admirados com a perfeição do quadro.
Esta cena já foi muito comum, mas a pintura contemporânea é feita no ateliê: difícil não ser de modo diferente. Uma característica do pintor eram seus cabelos, compridos e muito bem cuidados, mostrando ondulações volumosas, como as que vemos nos antigos mestres. Hoje um pintor só é reconhecido se estiver com a sua maleta. É um homem igual a todos os outros. Mas este tinha certo mistério, talvez pela cabeleira antiga, ou por estar trabalhando na rua.
No antigo bar todo em pedra, como todas as construções do local, alguns homens apreciavam o chope branco e o preto, considerados os melhores da cidade. Talvez fosse um pouco cedo, ainda não eram cinco horas da tarde, mas o bairro universitário comportava este tipo de procedimento; ali tudo isto era normal, mesmo o pintor de cabelos encaracolado e bigode grande.
Outro curioso foi ver o trabalho do pintor. Trocou com ele algumas palavras e se encaminhou para o bar famoso pelo chope. Sentou-se e pediu uma garrafa d’água. Quase todos o conheciam. Era o catedrático de Cálculo, homem querido pelos alunos, amante do jazz e da boa pintura. Estava com o rosto bastante contraído, mostrando tensão e ansiedade. Um dos freqüentadores perguntou se ele estava se sentindo bem.
- Estou perfeitamente bem, creio. Mas vou pedir uma bebida forte. Aquele homem tem vindo aqui sempre?
- Apareceu há quatro dias, parece.
- E por acaso alguém o conhece?
- Aqui não mora. Deve ser do Rio, o bairro virou point.
- Ele é do Rio sim. Ou melhor, era. Conheço seus retratos pintados por colegas.
- Ora, então o homem é famoso!
- Muito famoso. Seu nome é Victor Meirelles.
Todos desconheciam o nome. Victor Meirelles pintou para Pedro II uma das belas obras brasileiras, A Primeira Missa no Brasil, que se encontra no Museu Nacional. Morreu faz tempo, muito tempo, em 1903.
Mas o professor não falou absolutamente nada com ninguém...