sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Casarão

                                                         

Capítulo 1

              Estavam sentados em torno da grande mesa, feita de uma só tábua de madeira nobre.
              Grande a casa, pé direito alto, construção que mostrava bom gosto.  A sala onde alguns beliscavam queijos e grãos oleaginosos, um hábito deles.  Oito homens, mas somente um preferiu beber conhaque, naquela noite.  Os outros estavam tomando uísque, em copos médios, com muito gelo.  Terminada a rodada, a maioria, como de costume, dava boa noite e se retirava.
              Palmas e campainha tocando?  Àquela hora?  Um dos poucos servidores voltou do portão e falou baixo ao mais velho, que acabara de colocar seu copo na mesa.
              — Um tipo estranho, senhor.  Está vestido com uma espécie de túnica branca.  Parece um peregrino e tem ótimo aspecto.
              — E o que ele quer?
              — Pediu pousada.  Só quer dormir e amanhã sai antes do Sol nascer.
              — Estranho.  Traga até a antessala.  E fique por perto, nunca se sabe o seu intento.
              Escolheu uma bengala pesada, ajeitou o robe e aguardou que o visitante estivesse dentro da casa.  A um sinal do empregado, foi ao encontro.
              Realmente, o tipo tinha aspecto excelente, muito limpo e exalando um perfume completamente desconhecido.  Leve e muito discreto, cheiro de homem mesmo.  Estava com uma túnica branca, barba longa e usava uma sandália de couro, o mesmo da bolsa que trazia a tiracolo.
              — A Paz esteja nesta casa, senhor.  Obrigado por atender.
              — É hábito neste lugar.  Meu empregado disse que quer abrigo.
              — Se for concedido, aceito de bom grado.  Venho caminhando há muitos anos.
              — Toma uma bebida conosco, antes de dormir, peregrino?
              — Se for vinho, aceito.
              Estranho.  O homem tinha um andar como se na terra não estivesse.  O olhar inspirava grande confiança.  Ninguém lhe perguntou o nome.  Quando viu os pães redondos feitos na casa, pediu licença, rasgou um pedaço para ele, e fez um gesto que parecia estar convidando a comerem juntos.  Provou o vinho, deu logo após um longo gole, quando um barulho se fez escutar.
              Era um ruído estranho, muitas vezes seguido de um vento frio.  Vez por outra, o fato acontecia no lugar.
              — Fora!  Este lugar não é para você.  Fora!
              Ninguém entendia nada.  Com quem falava?  Súbito, as luzes apagaram.
              — Fora!  Fora!
              E os presentes viram que seu corpo emanava luz, clareando o ambiente.  A energia elétrica retornou. 
              Tranquilo, o homem perguntou se poderia tomar mais um cálice de vinho, logo posto no seu copo pelo mais velho do casarão.
              Na manhã seguinte, como havia falado o peregrino estava de saída.
              — Volte sempre, amigo!  Gostamos de você.
              — Vou em corpo.  Não se incomodem.  Estarei sempre presente.  E desapareceu como se não existisse.

              A vida guarda segredos insondáveis.  O que tinha acontecido naquela casa era inexplicável.  De nada adianta ficar indagando; não se tem resposta.
              Manhã clara no casarão, onde as janelas, bem calculadas arquitetonicamente, permitiam a luz de o Sol iluminar com harmonia toda a sala principal.  Os mais velhos conversavam, dominados ainda pelo acontecimento noturno.  O mistério atrai profundamente os homens, e era exatamente o que tinha acontecido.  Afinal, o que teria acontecido, na realidade?  Que significava a visita do estranho e pacífico homem que pediu pousada?  E os acontecimentos sequentes?  As frutas e o chá, consumidos com moderação pelos que haviam testemunhado os fatos, não auxiliavam a compreensão dos mesmos.
              Casa de fazenda grande, produtora de leite e grande plantação de legumes; anacrônica, diziam.
              O tempo havia passado e a construção refeita.  Datava da época da escravidão, mas nenhum traço poderia revelar tal fato.  Nem mesmo a capelinha restaurada com todo rigor que se fazia necessário.  E o pelourinho.
              As diversas casas dos trabalhadores distanciavam-se pouco do casarão.
              Faina começando cedo, cheiro de café, pão caseiro.  Não havia desperdício de alimentos, mas uma fartura que não é notada em casas de trabalhadores.  O tradicional doce de abóbora, a broa de milho com os sabores de quem conhece, cravo, especialmente.
              Dizer que a vida transcorria sem graça era um exagero.  Pois que havia sim, bastante movimento quando não estavam trabalhando.  O rio, manso, em muitos lugares não dava pé, água fria o ano todo, mesmo no verão.
              Raul e mulher, ele excelente carpinteiro, ela doceira de mão cheia, aguardavam a chegada dos padrinhos de batismo do filho mais novo.


              O lugar era uma mata rasteira, árvores poucas, meio torcidas: vegetação de cerrado.  O riacho fazia a música do lugar, água fria, cristalina que corria em destino a outro bem maior.
              — A água tá fria?
              — Tá uma gostosura.  Lavou até por dentro.
              — Por dentro não lavou foi nada.  Nem bebeu um gole, e ‘inda que tomasse não lavava, bicho ruim.
              Bastião Neném não ouviu bem o comentário da amiga.  Estava enxugando o couro grosso e pelejando com uma garrafa de cachaça.  Couro grosso sim, aquilo não poderia ser chamado de pele.
              Rita já havia tirado toda a roupa, e seu corpo brejeiro foi alvo de elogio do velho companheiro.  Fazia seis anos estavam juntos.
              — Só meu.  Isso tudo é só meu.
              — Dá um beijo.
              — Mulher gosta dum beijo.  Não reclama do cheiro.  Dei uma talagada grande.
              — Depois tomo meu jenipapo também.  E fazemos alguma coisa...
              — Agora não, a barriga tá roncando.
              Iriam batizar o menino Januário, sobrinho deles, filho de uma irmã de Rita.  Mais dois dias de tropel, estariam dormindo em redes velhas, mas coisa de primeira: nem um pouco esgarçadas, limpas e perfumadas de ervas.
              Bastião Neném ouviu barulho na mata.  Não era coiteiro nem metido em bandos.  O que passou, passou.  Correu para um emaranhado de mato, escondeu-se e no maior silêncio engatilhou sua velha mas bem cuidada parabellum, antiga ferramenta de trabalho.

*


Primeiras linhas de romance meu, de mesmo  nome.
                                    

11 comentários:

Ciducha Seefelder disse...

Muito bom!Beijos e 20!9 cheio de novas inspirações.

Ana Maria Brasiliense (TullipaVermelha) disse...

Prendeu-me a tenção, em cada linha lida. E quem poderia ser aquele homem manso,com vestes claras, limpas, com andar flutuante, bebeu vinho e serviu-se de pão oferecendo com o olhar, senão Jesus?.. Parabéns Jorge querido, meu escritor preferido.. bjs

Anônimo disse...

Gosto de casarões!
Suas paredes são testemunhas, mudas,
de tantas, estórias e histórias!
Nesta tarde tive conhecimento de mais uma.
Lindo esse capitulo, caro escritor, Jorge Sader!
Grata pelo convite, votos de um feliz 2019, a você e familiares!
Nadir DOnofrio

Caio Martins disse...

Eita, velho amigo! Um prazer ler e reler seus causos... Quem é bão já nasce feito, cumpadi!

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Tenho seu livro salvo no meu i-pad, e lê-lo consta de minhas resoluções de ano novo. Grandes abraços e sucesso crescente, meu caro Jorge.

Carmem Velloso disse...

Jorge, como revisora de "Casarão" posso afirmar que ele é, sob todos os aspectos, surpreendente. Se ainda não atingiu o grande público, não duvide. Isso vai acontecer, principalmente pelo mistério e envolvimento que envolvem a obra.
Beijos. Carmem

Elvira Carvalho disse...

Um início muito interessante. Ficou um gostinho a pouco.
Um abraço bom Domingo, feliz dia de Reis

CÉU disse...

Olá, meu querido Jorge!

Ler você é sentir as palavras entrosadas, distintas, encantadas.
Belo início de seu novo romance. Parabéns pelo seu talento nato, meu amigo!
Ah, o eu pode contar um "casarão"!

Beijos e Bom Ano Novo.

Tais Luso de Carvalho disse...

Olá, Jorge, pois é, o romance já começou bonito, adoro casarões, e esse já começa com um mistério que vou seguir para ver as várias histórias que vão se entrelaçar!
Um beijo, um ótima semana, amigo!
Sucesso sempre.

Anderson Fabiano disse...

Jorjão,

Esse seu vigor criativo me encanta desde os primórdios. Como diria um amigo meu "Quando eu crescer quero escrever como vc".
Abração, querido amigo,
Um belíssimo 2019.
Meu carinho,
Anderson Fabiano

Erika Oliveira disse...

Gostei muito. Boa semana.