sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Nico Esteves

                                                




            Em qualquer lugar desta terra onde vivemos, têm tipos que são marcantes.
            Nico Esteves, um homem que nunca se conseguiu saber de onde veio, era um tipo desses.
            Para começar a doideira toda, ele já tinha o nome.  Seu pai, que foi faxineiro de um laboratório, colocou no menino o nome de Arsênico.  Os oficiais do registro civil, na época, pouco ou nada sabiam de nomes que devem ser recusados.  E na sua certidão de nascimento consta mesmo o nome do veneno conhecido pela sua propriedade letal.
            O garoto só foi descobrir isto quando entrou para a escola.  O professor, um antigo ferroviário que tinha sido aposentado por causa de uma tuberculose grave, desta que o povo gosta de chamar de galopante, ficou muito surpreso quando viu tal nome na lista de alunos.
            — Por que tem este nome, rapaz?
            — Sei não, professor.  Mas é diferente e bonito, o senhor não acha?
— Acho coisíssima nenhuma.  Você sabe o que quer dizer seu nome?
             Não senhor.  O que é?
            — Venha cá – o mestre não queria expor ao ridículo o pobre do garoto, e falar alto, com toda turma ouvindo, sobre a barbaridade daquele nome.  Contou-lhe o significado, baixo, sem que os outros ouvissem.  Naquela época, nem é bom pensar em processo judicial para alteração do nome, ainda mais naquele lugar distante de tudo.  O professor encarregou-se de nomear o guri.  Abreviou para Nico, que parecia um apelido.  Esteves carregou para o resto da vida o novo nome.
            Fez um brilhante curso primário, era inteligente e a deficiência do ensino no velho galpão de madeira, com teto de folhas de amianto.  Até hoje, no interior, são assim as escolas.  Não possuem nada, nem mesmo professor fixo. Alguns abnegados, que tiveram a oportunidade de estudar e completar o curso ginasial, o que já é um fato bastante raro, guiados por mão superior, talvez divina, sentem pena daqueles pobres coitados abandonados de tudo.
            A prefeitura do lugar, se é que este canto tem prefeitura, fica encarregada de arranjar o local para acomodar os alunos.  Concurso para ingresso no magistério?  Ninguém sabe o que é isto.  Quem sabe ler melhor do que os outros habitantes e está disposto a dedicar-se a tarefa de ajudar, assume o cargo, quase sempre sem ganhar nada por isto.
            Este é o sertão, o interior que o povo não conhece nem imagina.
            Nico continuou seus estudos.  O antigo ferroviário tinha amigos na cidade grande, que não era tão populosa.  Tinha lá seus quinze mil habitantes, se tanto.  Mas o importante é que conseguiu uma vaga num ginásio público, onde o ensino não era exemplo para escola nenhuma, mas também não era uma escolinha tico-tico.  Nico estava, nesta época, com treze anos de idade, e como não morava mais com os pais – a escola era distante da sua casa uns bons vinte quilômetros, arranjou um emprego numa padaria da cidade, que tinha muito poucas outras fornecedoras do alimento que nem sempre é o café da manhã de muitos.  Serve também como um bom almoço, acompanhado de peixe, em lugares que têm rio ou mar.
            Não é preciso dizer que tão logo Nico aprendeu a fazer pão.  Josias, sempre com as mãos cuidadas e limpas, não se incomodava em ensinar como era feito um pão de qualidade, mesmo a farinha não sendo especial.
            Um professor de Nico resolveu o problema do nome do rapaz.  Era amigo do juiz, e sem processo mesmo, conseguiu que o nome Arsênico fosse mudado par Nicodemus, por escolha do próprio esforçado aluno.
            O tempo passou, Nico sem problemas obteve seu grau de ginásio, tinha amealhado um dinheirinho bom, pois não era de muitos gastos e fazia com Josias, seu mestre-padeiro, doces e outros quitutes para moradores locais, pagando ao dono da padaria uma parte dos ganhos.
            Foi visitar os pais, levando presentes da cidade grande.  Mas o orgulho mesmo era o diploma de conclusão do curso ginasial.  Pai e mãe estavam orgulhosos do filho, que os surpreendeu fazendo o almoço.  Farinha de milho é comum nas casas.  Mas o paio e o queijo mussarela, que Nico havia levado também, fizeram uma polenta maravilhosa.  Tanto Honorato, como Quitéria, pais de Nicodemus Esteves, ficaram admirados com as qualidades do filho.
            Nico não queria parar.  Havia feito força, e conseguira o que queria.  Agora era continuar e chegar à faculdade.  Ainda não decidira sua futura profissão, mas gostava de livros e leituras, e tudo indicava que estudaria Letras.
            Mais uma vez a sorte sorriu para ele.  O juiz, aquele que tinha mesmo sem processo autorizado a mudança de nome, conseguiu uma vaga no secundário estadual, que Nico completou sem dificuldade.
            Conheceu, na escola, uma bela moça.  Ligia, era o seu nome.  Em pouco tempo consolidou-se um namoro sério, ambos estavam apaixonados e pretendiam casar-se.  Estudavam muito, e juntos fizeram o vestibular, agora em outra cidade.  Por causa da sua habilidade com massas, Nico continuou trabalhando numa padaria, mas não era mais balconista.  Em pouco tempo dirigia a parte de refeições ligeiras, uma das especialidades da casa.
            Tanto ele como Ligia conseguiram passar sem muita dificuldade no vestibular.  Ela não precisava trabalhar, o pai tinha como sustentá-la.
            Moravam numa república, homens bem separados das mulheres.  A cada dia que passava, o futuro do jovem casal era mais promissor.  Ambos estavam fazendo o curso com muito brilhantismo, eram queridos e elogiados pelos colegas.
            Numa tarde que estava cinzenta, e prometia chuva forte para a noite, Nico voltava do trabalho, rumo à república, onde pretendia tomar um bom banho.  Caminhava devagar, sem preocupações, quando viu um aglomerado de gente.  Foi ver o que era.  Todos os presentes estavam revoltados.
            Nico perguntou a um homem o que tinha havido, quando percebeu, antes da resposta, que o corpo caído e coberto com uma folha de nylon preta, estava com uma sandália marrom que ele conhecia bem.
            Trêmulo, suando e sem saber do que se passava, levantou a parte da coberta onde estava o rosto.  Ligia dormia o sono que ninguém acorda.  Tinha sido atingida por um tiro dado  num confronto entre policiais e traficantes.
            Nico e os pais da moça despediram-se com flores, na manhã seguinte.
            Até hoje, nunca mais ninguém sabe onde ele se encontra.
             
           

16 comentários:

Carmen Velloso disse...

Um dos primeiros contos de Jorge, tão bonito quanto trágico.
Beijo, querido amigo!
Carmem

ANNA disse...

Muchas gracias por tu paso
y aportacion al blog
Me alegra que te guste
Espero tus opiniones
sobre mis pensamientos o y poemas

Ana Freire disse...

Um belíssimo pedaço de escrita... de realidade pura e dura... mostrando a fragilidade da nossa existência... e a incerteza dos percursos de vida, ao sabor das circunstâncias... e onde não haverá happy-ends... para personagens infelizes... marcados tragicamente pelo destino...
Adorei, Jorge!... Assim é a vida... para tantos... bem real... longe do bom... do bonito... e por vezes convivendo diariamente... com o que jamais se consegue recuperar... como filhos de um Deus menor...
Mesmo quando se quer muito... nem sempre o Universo conspira a nosso favor... é a vida... com as suas duras realidades... sem qualquer mística!... E ao sabor da aliatoriedade!...
Deixo um beijinho, enquanto me despeço por algum tempo, durante a minha habitual pausa de Verão! Conto estar de volta em meados de Outubro!
Tudo de bom, Jorge!
Até breve! Beijinhos
Ana

Ana Bailune disse...

Olá, Jorge.
Um conto bem contado.
Que Nico tenha encontrado um pouco de paz.

Tais Luso de Carvalho disse...

Olá, Jorge, um perfeito conto que deixa para o leitor, um pensamento final.
Mas bota real nisso, meu amigo, vemos coisas semelhantes todos os dias! Mas um dia há de melhorar. Um conto que leva o leitor do começo ao fim meio ansioso para ver o desenrolar. Gostei do lance do nome Arsênico! Cruzes, tem muita coisa do tipo por aí...
Gostei muito!
Beijo, querido amigo!

Elvira Carvalho disse...

Um conto tão real que mais parece uma crónica de alguns acontecimentos que se lêem em algumas partes do planeta.
Abraço e bom fim-de-semana

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Tão trágico quanto arsênico. Mas assim é a vida...

Caio Martins disse...

É sem serventia comparar um escrivinhador com outro, coisa de "críticos literários"(Sic! ociosos que nunca escreveram um "O" com um copo (Diria outra coisa, fosse em página própria!).
Assim Jorge Sader é, acima de dúvidas, ele mesmo, seja na forma singela, porém impecável, seja no conteúdo esmerado que conduz o leitor, de um só fôlego, a finais imprevisíveis e surpreendentes. Abração, Mestre!

Reflexos Espelhando Espalhando Amig disse...

Puxa... Jorge
que historia linda e que sofrimento
para os envolvidos.
Apreciei ler;
Bom dia e ótima semana.
Bjins
CatiahoAlc.

Ame disse...

Tan trágico como su nombre inicial
Un abrazo, Jorge

Jornalista Douglas Melo disse...

Jorge,
Passando para conhecer o teu blog.
Outro dia vi um comentário teu sobre o meu saudoso amigo "João Ubaldo", no blog da minha querida Taís Luso e respondi lá.
Volto com mais calma depois para ler os teus escritos, que já de primeira muito me agradaram.
Até a próxima!
Um abraço...
Douglas

Jorge Sader Filho disse...

Cheguei, ontem, 14 de agosto de 2019, ao meu ducentésimo seguidor.
Obrigado a todos vocês e aos meus comentaristas que por aqui passaram.
Abraços e beijos.
Jorge Sader Filho

Jornalista Douglas Melo disse...

Jorge,
Já que o destaque foi dado, fico feliz então por ser o seguidor de número 200.
Fazer amizades (mesmo que virtuais), é coisa boa.
Um abraço meu caro!

ANNA disse...

Muchas gracias por tu paso
y aportacion al blog
Me alegra que te guste
Espero poder leerte mas tus opiniones
sobre mis pensamientos o y poemas
Besos

ANNA disse...

https://editorialcirculorojo.com/se-vende/

Te envio mi ultimo libro de poesias

عبده العمراوى disse...



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