sexta-feira, 20 de março de 2020

Violinista


                                               
A sala ampla e iluminada pelos raios solares abrigava músicos e seus instrumentos, num ensaio comum. Ninguém se atreve a dar concertos, ou fazer apresentações sem criteriosa preparação prévia.
Sentado na segunda fileira da orquestra, sem roupa de praxe usada nos dias de teatros cheios, o violinista olhava seu instrumento brilhante e bem tratado. Trajes simples, uma elegante camisa branca de mangas compridas, calça jeans já bastante macia pelo uso continuado e ainda cheirando a banho prolongado, frio e com sabonete de qualidade, o músico aguardava as batidas da batuta do maestro que indicam os preparativos para o início da execução.
Moço ainda, ganhando experiência, ouviu as três batidas características e o gesto do maestro avisando o começo do ensaio. A primeira peça a ser tocada era a “Barcarola”, de Offenbach. Sempre agradável, alegre e conhecida, prestava-se bem para começar os trabalhos. Ouviram-se os primeiros acordes. Soavam como o ambiente, calmo, concentrado e harmonioso.
“Segundo violino, você está desafinado.” A voz do maestro veio dura! Pegou completamente de surpresa o jovem músico, que não tivera o cuidado de fazer uma comparação com seus colegas. Realmente, estava desafinado, fato imperceptível aos ouvidos comuns, mas não ao maestro experimentado, batuta apontada para o advertido.
O “spalla”, primeiro-violinista de uma orquestra e o músico mais importante, facilmente identificado por sentar-se na extremidade esquerda da primeira fileira, sempre muito conhecedor da sua arte e pronto para substituir o maestro, se preciso for, também percebeu o fato. Seu colega estava realmente desafinado. Um pequeno aperto na cravelha e o instrumento ficou em ordem. Estes incidentes ocorrem com frequência, mas não agradou nada ao homem que pretendia falar com a jovem e bela flautista, olhos expressivos, lábios bem feitos. Ele desejava a convidar para um descompromissado lanche, talvez nem tão sem intenção assim, mas de toda forma era o que havia planejado dizer.
Desafinado... Todos ouviram, inclusive ela, que não havia notado o pequeno senão.
O ensaio terminou. O violinista desafinado saiu rápido. Não falou com a colega, que se entendia com Norma, a bela flautista, no momento beijando e totalmente encoxada com ele. Dentro do bar elegante, tomava o segundo conhaque e fumava igualmente o segundo cigarro. Afinal, o maestro apareceu, caminhando displicente na calçada, passando a mão nos cabelos. Sentiu a pequena pontada na barriga, a faca de mola, tão usada pelos ciganos, como era o músico que havia sido chamado a atenção em voz alta, todos escutando, não foi usada para causar ferimento grave ou morte.  "Sua  namorada está com o outro, desafinado idiota!  Volta lá."
Voltou. Desta vez a faca cigana foi terrível.  Sangrou profundamente os dois namorados...

Imagem: pianista de orquestra



7 comentários:

Jornalista Douglas Melo disse...

Caro Jorge,
Bela narrativa sobre músicas que nos seduzem; sobre facas ciganas que nos matam de ciúmes; sobre bares e suas possibilidades de amores; sobre os desafios díssonos desta vida.
Um abraço e saúde para todos nós!!!

Carmem Velloso disse...

Excelente, querido Jorge! O envolvimento e todo num só, o mistério e o final assombra! Eu transformaria este conto num romance. Mas o escritor é você... Sucesso!
Beijo,
Carmem

Catiaho Reflexod'Alma disse...

Jorge,
Que delicia de texto!
🤗Bjins bem de longe (500km)
CatiahoAlc.

Tais Luso de Carvalho disse...

Ótimo conto, Jorge,
Facadas viraram moda, e o conto do violonista teve um final meio dramático...Senão muito!
Beijo, meu amigo, cuide-se com essa pandemia.

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Ópera trágica...
Agora, a Marcha Fúnebre.
Abs, Jorge.

Ana Freire disse...

Um maestro... que parece gostar de ver sangue, na sua orquestra... pois, assim de repente... este belíssimo texto, remete-me para a actuação do vosso presidente... com "p" de pequenino, que é... a epidemia, segundo consta... já está chegando, até na Rocinha, no Rio... só aí... são quantos, na maior proximidade uns dos outros? 100.000, mais coisa menos coisa, né?... Dá até calafrio de pensar... um cenário, como aquele que por aqui temos bem próximo... em Itália, Espanha... muito em breve... no Reino Unido... e já com vitimas em crescente desenvolvimento nos Estates... onde outro inconsciente, também está à frente da sua própria orquestra!... Sendo esse um país de fartura... onde muitos mesmo, vão começar a cair para o lado, que nem tordos, ao longo das próximas semanas... sem um sistema de saúde, ao serviço de todos, como o que Obama desejava implementar...
Graças à inconsciência de liders assim... cá estaremos vendo o número de vitimas crescer dia a dia... e num belo ritmo!...
Beijinho, Jorge! E cuide-se muito bem! Nesta altura do campeonato... a maior parte do mundo, já deu conta, finalmente, de que isto... para muitos... não será apenas uma "gripezita"... mas "the end of the story"...
Tudo de bom!
Ana

CÉU disse...

Querido Jorge,

Como sempre, um texto muito bem escrito e que sempre me ensina algo.
Esse maestro revelou ter pouco charme e consideração pelos outros, nesse caso pelo violinista, mas a faca vingou a honra cigana.

Beijos e uma feliz noite.