terça-feira, 21 de abril de 2009

Antero do sino

Sino













Vindo ainda pequeno de Feira de Santana com pai, mãe e irmãos, Antero Siqueira desfrutou da calma e da camaradagem dos seus novos amigos que moravam na cidade onde o pai tinha escolhido para sair da Bahia.
Não existiam motivos para a saída da cidade baiana, até que o pai de Antero, Honorato Siqueira, meteu a faca num adversário maldoso e antigo que tinha. Cupelo morreu na hora, não resistiu aos golpes recebidos. Azar o dele, não tinha nada que se meter com Glorinha, filha mais velha de Honorato. Descaradamente, Cupelo havia passado a mão nas pernas da moça, na feira, quando ela fazia compras para a mãe. Embora vistosa e com cara muito bonita, a moça de apenas 16 anos não merecia a gracinha de Cupelo, visto e revisto na cidade como um conquistador audacioso e barato.
Quando Honorato interrompeu os goles de pinga que o safado estava calmamente bebendo, e pediu satisfações ao namorador ordinário conhecido, este não teve dúvidas. Abriu o paletó e mostrou a garrucha que sempre o acompanhava. Esqueceu, porém que quando um pai vai tomar satisfação de mal feito a filho seu, não costuma ir desarmado. E aconteceu o inevitável. Honorato já não estava calmo, nem razões havia para isto. A faca que carregava, desta do tipo de escoteiro, não muito comprida, mas amolada e guardada na bainha de couro, apareceu rápida nas mãos do pai injuriado – era como ele via o fato. Os médicos que examinaram Cupelo constataram três ferimentos, mas ninguém presente, nem mesmo Honorato, contou os golpes desferidos no debochado que deveria saber que mais cedo, mais tarde, ia terminar desta forma nas mãos de um pai, noivo ou marido.
Até resolver direito o que faria, Honorato ficou sob a proteção do coronel Elias, proprietário de um mundão de terras na região. Podia continuar na fazenda, mas não queria viver como bicho coitado.
O coronel, homem de conhecimentos, sugeriu a cidade no interior de São Paulo. Tinha um irmão que morava lá, vivia da lavoura e proclamava a pequena cidade como sendo o próprio paraíso. Honorato mais mulher e três filhos rumou para a cidade, onde já o aguardava o irmão do coronel Elias, que também era conhecido seu.
Enquanto não arranjou onde ficar, morou na fazendola do Quincas, que o conhecia muito bem, trabalharam juntos numa pequena fundição em Salvador, quando jovens. Faziam muitas peças, praticamente todas sob encomenda. O negócio pequeno não era nada ingrato; rendia uns bons trocados.
E foi exatamente uma pequena fundição, em sociedade com o velho amigo e ainda saudoso de ver o metal líquido ganhando forma, que Honorato começou vida nova. Quincas arranjou um empréstimo com o irmão, o investimento não era de monta, mas também não era de assustar ninguém.
A fundição foi inaugurada e os moradores da pequena e calma cidade ficaram orgulhosos de existir naquela pacífica terra um negócio de cidade grande, segundo eles pensavam.
A cidade era toda arborizada, clima ameno, gente tranqüila jogando cartas ou dominó nas praças onde não faltavam canteiros floridos.
O tempo passou, Glorinha casou, Honorato foi avô de uma linda menina com os olhos claros, pois sobravam italianos e descendentes na cidade.
Antero foi bom aluno, podia ter estudado para ser doutor, mas preferiu trabalhar com o pai, na fundição. Em pouco tempo, dominava a arte de construir moldes, conhecer a exata temperatura do forno para derreter metais e compor ligas que faziam a parte final do que executavam. As encomendas eram quase todas de fora da cidade.
Têm fatos que não se explicam. Num temporal furioso, um raio destruiu a torre da igreja da cidade, e o sino veio abaixo, rachando não muito, mas o suficiente para soar muito mal, quando tocado.
Cidade do interior sem igreja não é cidade. Tão logo moradores que tinham por ofício a construção, repararam a torre. Deu trabalho, mas valeu a pena. Ficou faltando o sino, guardado nos fundos da igreja, num pequeno pátio.
Lembraram logo de Antero, que agora dirigia a pequena fundição, para reparar o sinaleiro das horas e instrumento indispensável nas festas.
Antero examinou, pensou, mediu. O sino no pátio tinha conserto e cabia no seu forno. Depois de cuidadosamente reparado, tendo atenção especial para quando soasse não dar a impressão que tinham batucado numa lata velha, mas num instrumento de respeito, o sino voltou ao seu lugar original.
Para encantamento dos moradores e do próprio Antero e os homens que conseguiram recuperar a peça, seu som ficou mais bonito.
Comemoração geral, agradecimentos até do bispo!
E o já não moço fundidor ganhou o apelido de Antero do Sino. Nunca havia desejado fama ou riqueza, mas ficou conhecido, comprou um forno maior e contratou novos empregados, que ele mesmo se encarregou de ensinar o ofício e trabalhar observando sempre o cuidado, o amor pelo que se faz.
O tempo passa célere, e assim aconteceu com Antero e outros moradores. Antero do Sino já havia completado 40 anos.
O filho mais velho do Cupelo tinha um pouco menos idade. Mas guardava o rancor ainda dentro do peito, esta coisa amaldiçoada que destrói gente e o mundo. Descobrira onde estava o homem que matara seu pai, e havia jurado vingança. Honorato estava muito velho, quase não fazia mais do que comer e dormir. Permitia-se, e que ninguém se metesse, a tomar um trago de pinga antes do almoço, e só. Nem cartas ia jogar mais com os velhos amigos, só aos sábados comparecia.
Canalhas não merecem nomes para a posteridade. O filho de Cupelo, na tocaia, atirou quatro vezes contra Antero. Não vai pai, vai filho, pensou a cabeça imunda.
Antero tombou mortalmente. A antiga história de Feira de Santana permaneceu desconhecida.
No seu enterro, o sino da igreja tocou todo o tempo. Som triste, choroso, despedindo-se de quem lhe havia dado alma.

2 comentários:

Lila disse...

Belo conto. Acontece muito. Mas reparar sinos eu nunca tinha visto.
O final é triste, mas significativo.

Sandoval Pereira (Bahia) disse...

Bela história, que reune um tema incomum (também nunca ouvira falar do ofício) com a manha dos velhos contadores de causos, que vão desaparecendo devagar... Talento para escrever é para quem tem, quem não tem faz como eu, aplaude.