terça-feira, 2 de setembro de 2014

Talvez



  
                 Uma cara meio alucinada, mas mansa.  A mansidão em pessoa.
            Entra num bar, lugarzinho sujo, que mármore mais nojento, manchado, será que o maldito dono nunca ouviu falar em sabão, detergente e outras porcarias que servem para limpar?  E o chão?  Asqueroso.
            Mas era o único aberto pelas redondezas, São Jorge num altar vagabundo tomando conta dos possíveis assaltantes, as garrafas numa prateleira.  Ah!  Empada. Tinha empada.  O cara não perguntou de que era.
            — Bota uma!
            — Pra já, meu chefe.  Mineira de chapinha?
            — Da curtida. Amarela. Tá esperando o quê?
            — Prontinho.  Vai de um salgado, tira-gosto?
            — Mas nem pensar.  É come aqui e cai ali.
            Tomou a cachaça como se fosse a última coisa que faria na vida.  Um gole só.  O que não esperava era o aparecimento repentino do Armando, quase se aposentando, como ele.
            — Armandinho, meu irmão! Podia esperar tudo, menos que você aparecesse nesta hora.  — Deu um abraço de tamanduá no amigo e foi berrando: — bota outra, copo grande. Pra mim também.
            Abraço de bêbado parece coisa de namorados.  Não desgrudam, mas a visão dos copos cheios separou na hora.  O santo não ganhou nada, brindaram e só aí que foi pouca coisa para o chão, essa mania de ficar dando pinga para santo não era com eles.
            — Estive pensando...
            — Para, homem, o ar vai ficar fedido.
            — Mas Murilo, é coisa séria!
            — A última coisa séria que você disse eu levei uma porrada daquele PM, aí o estrago — e mostrou o olho esquerdo, meio avariado pelo soco do soldado ofendido com as palavras que Armandinho dirigiu à companheira do policial.
            Estavam num porre que fazia gosto.
            — Rapaz, deixa eu contar.  Curvelo morreu, nunca mais ouvimos as piadas dele, o cara era demais, estive pensando se ele foi pro céu, era alma boa.
            — E daí?
            — E daí que achei que morrer deve ser uma boa.  Curvelo prometeu que se fosse dessa para a melhor, baixava e me contava tudinho como era!
            — É?  E ele contou o quê?
            — Nada, eu é que estive pensando.  A gente não precisa mais trabalhar, nem ganhar dinheiro, nem andar de metrô, não precisa acordar cedo...
            O outro foi na história, não demorou.  Beleza!  Nada de trabalho, tudo fica pela conta de São Pedro, cachaça melhor do que qualquer bebida de classe, não ficava de porre se não quisesse, não tinha ressaca, nem fome, nem sono, nem PM para dar soco no olho, nunca mais iria aturar aquele maldito chefe, carinha metido a besta, e ainda por cima de tudo era corno, que vergonha, sabia de tudo, o safado.  O dentista!  Ah, miserável dentista, carniceiro, chato, consultório vagabundo, sempre cheio.
            Nada de botequim nojento como aquele, a empada causava náusea, o copo de cachaça esta engordurado, a mulher reclamando da hora que ele chegava, no Céu não tem disso não, é tudo livre, pode fazer o que quiser, só não pode pecado, mas eles não eram pecadores, nem safados, eram apenas pobres diabos, quer dizer, coitados que a Vida deixou na amargura.

            Beberam mais, saíram juntos cantando uma música antiga, abraçados, enquanto a chuva fina molhava a calçada e suas roupas amarrotadas. 


imagem:  "Los borrachos", o/s/t , Diego Velásquez  

11 comentários:

Caio Martins disse...

Grande Jorge, adorei esta, mais que as outras! Beleza! Quando eu crescer quero escrever como você! Forte abraço, marujo!

Célia disse...

Não deixa de ser uma crendice: - pinga pro santo e, que no céu... é bem melhor... Saúde aos "Los borrachos"... Ainda prefiro meu vinho em terra firme... sei lá... vai que... eu, hein, meu caro Jorge!
Abraço.

Celso Felício Panza disse...

Pois é Jorginho, o pai da Juíza Patrícia que foi assassinada, trabalhou a vida inteira para ter um apartamento de dois quartos. No dia em que esperava o caminhão da mudança para o três quartos que comprou na porta do predio caiu na calçada enfartado e morreu no local. Na missa de sétimo dia ao lado de Pery eu disse a ele. Pelo menos agora João não tem mais que pagar contas etc, O padre na homilía começo dizendo : nosso querido irmão João agora está em calma, não tem que pagar condomínio, luz, etc. Pensei, será que fiz telepatia com o padre.É a calma da eternidade, onde não há mais sofrimento, doença e morte. Mas ninguém quer esta calma e tranquilidade, nem mendigo. Abraço. Celso

Anderson Fabiano disse...

Mesa de bar é melhor que divã de psicanalista: nenhum problema sobrevive a um bom papo regado a cachaça e empada não importa do que. A chuva fina, a abraço cúmplice e a volta pra casa fazem o resto. Lindo, Jorjão! Lindo!
Meu carinho,
Anderson Fabiano

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Belo instantâneo suburbano. Grande contista, esse Jorge!

Shirley Brunelli disse...

Gente! Quem disse que do lado de lá é o paraíso? É continuação disso aqui, tem que ralar lá também, sem moleza. A realidade está lá. Esse mundo é um reflexo daquele.
Mas, deixa pra lá esse assunto rs. Eu bem que gostaria, Jorge, de ter um amigo, ou amiga, amizade verdadeira, pra experimentar uma branquinha , ou amarelinha, sei lá rs, numa mesa de bar decente, pra abrir o coração, falar de tudo ...eu gostaria...
Bem, viu o que o seu belo conto fez? rs
Beijos!

Unknown disse...

Enfrentar calamidades pode fortalecê-lo e torná-lo mais compassivo.
Pode ajudá-lo a aprender, progredir e desejar servir ao próximo. Lidar com a
adversidade é uma das melhores maneiras de ser testado e ensinado em sua vida
aqui na Terra. Nosso amoroso Pai Celestial tem a capacidade de compensar-nos
por todas as injustiças que tivermos que suportar nesta vida mortal. Se perseverarmos
fielmente, Ele nos recompensará, na vida futura, além de nossa capacidade de
compreender (I Coríntios 2:9). Surpreendentemente, com a ajuda de Deus você pode
sentir alegria mesmo em tempos trabalhosos e enfrentar os desafios da vida com um
espírito de paz absoluta...E a branquinha? Continua nos balcões da ilusão.
Bela crônica a sua, gostei demais querido Jorge...Ir para o outro lado é confuso, como saber sem conhecer este caminho misterioso do além?
Tela de Velásquez, é o melhor de tudo!

Blogat disse...

Estava com saudades da sua prosa. Adorei. Bj

Carmem Velloso disse...

É essa sua mágica de escrever, querido Jorge, que leva a gente atrás dos seus contos e crônicas.
Parabéns pela publicação de "A Regra do Jogo" nos Estados Unidos!
Beijos.
Carmem

Unknown disse...

Ótimo conto. personagens "mais que reais". Abrs

Vera Fracaroli disse...

Ótimo conto Jorge, são todos verdadeiros.
Só você tem este jeito e a magia de mostrar a vida pela escrita.
Parabéns por sua publicação nos Estados Unidos.
Sucessos continuado.
Final de semana Feliz!
Um abraço!