sexta-feira, 21 de agosto de 2015

1974, maio

           

            Na madrugada do dia 20 de maio de 1974, uma segunda feira com noite amena, Oswaldo Rios, cognome de um estudante de psicologia da PUC,  encontra-se sentado diante de um major.
             — Melhor você falar onde estava, moleque.
            Oswaldo, naquela época, fazia parte da turma de segurança de um jovem presidente de entidade estudantil.  Sua situação era de profundo embaraço.
            — Major, por favor, fale com o Cenimar.  Com alguém muito importante de lá, não posso dizer mais nada.
            — Acho que você não entendeu, moleque!  Fala logo antes que entre no pau.
            — Não posso falar.  Tenho proibição de abrir a boca para qualquer um que não seja do serviço.
            Levou um bruto tapa na cara.  Afinal, que arrogância era esta, diante de um oficial de informações do Exército? 
            — Faz isto com todo mundo?  Não tem medo de estar cometendo um engano sério?
            — Quem é você para me dizer isso? — E deu outra tapona no rapaz diante dele, que embora não parecesse arrogante, poderia muito bem estar treinado para isto.
            — Não falo mais nada.  Falem com a Marinha.  Oswaldo Rios.  Digam que está preso pelo Exército, suspeito sei lá de quê.
            — Suspeito?  Olha a foto aqui.  Vai dizer que este cara não é você?  Eu te quebro na porrada, idiota.
            Já havia visto a foto, era ele mesmo, com mais dois, roupas civis, cabelos longos, barbados sem exagero.  Só não tinham tatuagem.  Naquela época, os poucos tatuados eram marginais. Não havia conversa capaz de livrá-lo de uma surra.  Depois, quando tudo ficasse esclarecido, ainda teria as marcas roxas pelo corpo.
            — Liga para o Cenimar.  Vocês vão me quebrar no pau e eu não tenho nada com esta coisa.
            — Vai dizer que é do serviço?
            — Liga, major, por favor, estamos no mesmo lado, mas não posso abrir a boca.
            — Se estiver mentindo...
            — Eu sei, vou entrar na porrada!  Pode ligar.
            O que ele não sabia era que a ligação já estava sendo feita.  Um tenente falava com um colega seu, de patente igual, na Marinha.
            — Oswaldo?  Um grande e forte?
            — Isso mesmo!
            — Olha em baixo da axila esquerda dele.  Tem a tatuagem do seu tipo sanguíneo, e mais nada.  Letra pequena.
            Despediram-se.  O tenente entrou na sala de interrogatórios e falou no ouvido do seu superior.
            — Mostre este sovaco esquerdo, moleque.  E reze para eu encontrar o que pode mostrar que é quem está dizendo.
            Ele obedeceu de pronto.  Lá estava nítida, bem nítida a tatuagem em letras negras: O+. Era o próprio.  Um primeiro-sargento do Corpo da Armada.
            — Mas por que não me disse logo, sargento?
            — Ordens são ordens.  O senhor sabe disso muito bem!
            — Está magoado?
            — Não.  Nem tive medo.  Esta vida não permite essas coisas, meu major!
            Tomaram juntos duas doses fartas de uísque.  Quando o major, já bastante calmo e simpático perguntou ao seu ‘prisioneiro’:
            — Ele nunca desconfiou de você?  Que era um dos nossos?
            — Nunca!  Nem ele, nem a namoradinha dele!  — E deu o mais debochado sorriso do mundo.   


9 comentários:

Caio Martins disse...

Houve muito disso. O Zé Dirceu, por exemplo, antes de ser preso em Ibiúna transava com uma agente do DOPS...

Carmem Velloso disse...

Uma crônica que poderia ser uma reportagem, Jorge. Como sempre, parece que ficção e realidade passam a um só plano. Convence bastante, é provável e é possível, conforme o comentário de Caio Martins.
Excelente!
Beijo,
Carmem

Celso Felicio Panza disse...

Esses fatos mostram a que ponto chega a suspensão das liberdades individuais, núcleo maior dos direitos civis. Eu mesmo sou testemunha de fato de engano, semelhante, comigo mesmo, não a esse ponto, pois botei eles para correrem antes, e acabaram quase presos, não me conheciam, passei de carro,fui acompanhado e interpelado quando estacionei, pediram documentos do carro, perguntei quem eram, disse quem era e queria saber quem eram eles, sumiram, mudei a coisa, convoquei rapidamente força pública e fui atrás deles, interpelei eles, quem eram(?), quebraram a cara cercados pela polícia, eram do DOI -CODI, se desculparam, disseram que eu fiquei nervoso e exaltado, mas reiteraram as desculpas, um Major e três outros militares numa veraneio chevrolet, com um cidadão atrás algemado que apanhando, quando passei de carro disse que eu teria trabalhado com ele no local com subversão, para se livrar da surra, só que eu além de ter ojeriza de tudo isso,principalmente da idiotia comunista, era o juiz da comarca, muito novo ainda, região de alto índice subversivo.Não fosse eu seria mais um levado sem razão para o que todo mundo conhece. Por isso a salvaguarda das liberdades civis e individuais, em contradita ao despotismo, seja qual for, está acima de tudo.

Marcelo Sguassabia disse...

Bom retrato de tristes tempos. Abraço, Jorge.

Shirley Brunelli disse...

Já disse, Jorge, você escreve muito bem, dá vida a aos seus temas.
Mas, um fato deixou-me perplexa... Um major tomando uísque, duas doses fartas, durante o seu melindroso trabalho? Acontece?
Paz e Luz!
Beijos!

Célia disse...

Estive lá ao vivo e à cores... Sem nenhuma saudade!
Abraço.

petuninha disse...

Jorge!
Aprecio muito as tuas crónicas. São muito bem feitas.
Esta crônica é muito boa. Trata-se de ocorrências que sabemos existirem em outras épocas. Não sei se acontecem nos dias de hoje.
A vida que dás aos personagens, faz-nos sentir que ficção e realidade estão muito próximas.
Parabéns, amigo escritor.
Beijos.

marcia disse...

Jorge,ler seus contos e crônicas é uma aprendizagem...bjus

Rita Lavoyer disse...

Aff! doeu aqui as porradas! Manera aí, Jorge!!