sábado, 25 de agosto de 2012

Jogo feito


                                                   Jogo feito

            Chovia fino naquela madrugada fria de meados de julho.
            Interessante.  A gente nunca sabe o que pode acontecer numa hora desta.  O homem já com alguma idade, uns trinta e pouco, talvez, ajeitava sua japona grossa, da marinha mesmo, comprada numa loja de uniformes perto do Primeiro-Distrito Naval.  Não passava frio nem no gelo, se estivesse por cima de camisa de malha com mangas compridas, como o mal-encarado estava usando.  Moreno, boa altura, sapatos mocassim pretos, calça de veludo cotelê, preta também.
            O conhaque espanhol estava em cima da mesa, com um copo próprio pela metade, ele já havia tomado um pouco.  Acariciava uma Colt, calibre quarenta e cinco, sua arma de predileção.  Estas pistolas atuais, que dão mais de quinze tiros, não são eficazes como a velha Government Model.  Pesadona, boa de empunhar, sem apresentar nenhum defeito se a munição for nova ou dentro do prazo de validade.  Especialmente naquela noite a arma não poderia falhar.
            Goteiras pingavam a água da chuva, no velho galpão onde fora residência de um caseiro do sítio, e guardava velhas tralhas de jardinagem.  Alheio a tudo isto, o homem magro continuava a beber seu conhaque com café, enquanto fumava e mexia na pistola, engatilhando, levando o cão até a frente, tirando o carregador e a bala da câmara.  Como uma brincadeira, repetia os movimentos incessantemente.  Viu quando os faróis da caminhoneta moderna varreram o quintal.  “Chegou a hora”, falou consigo mesmo.  Experimentado, colocou a garrafa de conhaque e dois tocos de cigarros fumados numa mochila que carregava.  No bule de café e no copo não tinham suas digitais.  Havia usado uma luva fina, as impressões eram de outra pessoa.

            Meses antes, uma conhecida e belíssima artista de teatro e novelas de televisão, havia se passado de armas e bagagens para o lado do conhecido financista Affonso, no momento negociando uma casa de venda de pedras preciosas.  Coisa grande, mas o antigo dono da maior joalheria do Rio tinha dinheiro, além de ser conhecedor de gemas de valor.  A última delas era a artista famosa.  Namorava o seu filho, um homem de trinta e dois anos, também metido com negócios, com a vantagem de possuir sólida formação matemática, ciência em que havia se bacharelado.  Apresentara a namorada ao pai e jantaram juntos, num conhecido e elegante lugar da moda, em Ipanema.  Foi o bastante para o velho ter virado a cabeça.  Conhecia os casos do filho, sempre envolvido com beldades por causa de dois atributos fortes e muito favoráveis: era bonito e rico, além de jovem.
            Dois meses depois, a guria já estava casada, casadíssima com o velho Affonso, que não se cansava de admirar a beleza da esposa e consumir muitos comprimidos contra a famosa disfunção erétil.  Dava sempre certo.
            Célio, o filho, ficou puto da vida, mas não tinha como alterar as coisas.  A sacana da guria tinha trapaceado, e com o pai! 
            Primeiro ele pensou em encher a gaúcha de porrada.  Mas quem já foi treinado para matar sempre prefere esta opção.  Havia cursado a escola de formação de oficiais da reserva do exército, e gostou muito do núcleo das forças especiais, onde saiu habilitado com louvor.

            Os faróis continuavam a varrer a mata do sítio, e já não havia mais chuva, apenas a relva molhada, na qual a jovem caiu para não mais levantar, com o vestido molhado de sangue.

11 comentários:

Unknown disse...

Só posso dizer isto: conto perfeito, principalmente, porque dixa nas entrelinhas o final. Abrs Mardilê

iderval.blogspot.com disse...

O tema,a escrita,o desenrolar e a evolução tiram o fôlego do leitor,a respiração em pausa,o olhar fixo,os batimentos cardíacos em compasso, são estes atributos e sentimentos que faz desta narrativa uma obra de valor.
Um abraço Iderval.

Célia disse...

Ficção ou Realidade? Vive-se isso hoje. Você Jorge, condensou muito bem as estratégias ardilosas que envolvem muitos "casos amorosos". Jogadas de "levar vantagem" a qualquer preço. E, como tem "indivíduos" que se deixam enredar por tais "fantasias"!!
Gostei do que li. Você é fera!
[ ] Célia.

Carmem Velloso disse...

Foi longe demais!
Coisa de mestre, Jorge.
Bjs. Carmem

Rita Lavoyer disse...

Pela primeira vez eu leio essa expresão: "...se a munição for nova ou dentro do prazo de validade"
Nem sabia que munição podia ser devolvida por conta do prazo de validade KKKKKKKKKK

Será que é por isso que se mata tanto hoje? Porque o fornecedor de munição não troca mercadoria com prazo de validade 'vencido', então o melhor é usar pra não perder o dinheiro, ou a honra.

Eita, Jorge! Conheço um Célio. Por sinal sou apaixonadíssima por ele.

Aquele abraço

Ana Bailune disse...

Bom dia! Muito bom, embora trágico o final...

lino disse...

Belo conto de ciúme e dor de corno!
Abraço

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Um thriller familiar, porém nem um pouco familiar - moral e narrativamente falando. Tiro certo. Mais um. Abraços, Jorge.

Dolce Vita disse...

Muito bom!

Anderson Fabiano disse...

Demorei, né, Jorjão...

Belíssimo! Perfeito! Vejo o brilho do farol na relva molhada e sinto o cheiro da pólvora noa ar. Saio com a sensação que tudo aconteceu ainda a pouco...

Não me canso de ler seus textos, amigo. Parabéns!

Meu carinho,

Anderson Fabiano

marcia disse...


Jorge,você devia escrever um livro de todos os seus contos...
Você prende o leitor em cada linha e tem sempre um final inesperado..Ótimo!..bjus