quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Iberê Camargo

                                        
 
            Conheci Iberê Camargo numa tarde quente de sábado, em 1971 se não estou enganado.
            Gostava de pintar, e tive o atrevimento de ligar para a casa do mestre, pedindo que ele desse uma olhada nos meus quadros.  Sabia da sua camaradagem com os artistas jovens, e a resposta afirmativa agradou-me bastante.
            Iberê, na época, morava na rua Serafim Valandro, que não tinha saída e fica no fim de Botafogo.  Juntei uns seis quadros, todos abstratos, coloquei no pequeno banco traseiro do meu Karman-Ghia e rumei para a casa do pintor, um apartamento iluminado num edifício pequeno.
            O mestre estava como sempre elegante, com uma camisa azul-acinzentado, calça e sapatos pretos. 
            Discreto e cordial recebeu-me com muita simpatia, fato que o caracterizava.  Conversamos longo tempo na sala de jantar, fumando horrores e tomando várias xícaras de café que sua esposa, Dona Maria, não se cansava em preparar e trazer.  Café fresco, nada de garrafa térmica.  Estavam na sala dois amigos do pintor, não me lembro do nome deles, mas um, pouco mais velho do que eu, era professor de História na PUC.
            Conversamos longo tempo, todos participavam.  Iberê estava sentado na frente de uma abstração por demais expressiva.  Lindíssima!  Eu não tirava os olhos dela, até que ouvi a reclamação:  “Vai ficar olhando o meu quadro ou conversar conosco?”.  Claro que não me abalei, ele falou isso sorrindo e arrematou “está livre, sem pretendentes.  Vendo a você sem intermediários.”  Não perguntei o preço, não tinha dinheiro para comprar, quem era eu para ter um Iberê Camargo?
            Começava a escurecer.  “Vamos ver estes quadros.”  Estavam no corredor.  Foram olhados sem muita atenção, exceto um que eu julgava bom.  “Carnaval puro, Jorge”.  “Muitas cores, sem unidade, não são bons, exceto este, mas é falso.  Não é seu, mas cópia de Manabu Mabe.”  Era o quadro que eu julgava bom, mas o veredito estava certo. 
            Fiquei desconcertado, mas aceitei sem discussão as palavras.  Acendi mais um cigarro, comecei a juntar os quadros e ouvi “Espera, você veio mostrar seus quadros, já falei o que penso, mas não posso deixar assim.”  Mostrou os erros.  “Cores demais, falta de unidade e motivo principal.  Mesmo na abstração estas exigências devem ser cumpridas”, foi o que disse.  E com toda a autoridade de mestre consagrado, deu a aula que nunca vou esquecer.  “Não parta do nada, toda pintura tem um motivo, trabalhe em cima dele, use poucas cores e sintetize bastante.  Aprenda a dominar três cores: o preto, o branco e o vermelho.  Não se canse de trabalhar até que o quadro fique uniforme.”
            Despedimo-nos.  Eu nunca tive uma aula de pintura tão esclarecedora e direta.  No dia seguinte já pintava usando quatro cores, a abstração partia de objeto ou figura humana, o resultado melhorou muito.  Mas não sou pintor, embora tenha começado com retratos, sendo o mais fiel possível, e utilizando o claro-escuro tradicional.  Embora ainda tenha todo o material, não pinto há mais de dez anos.  As tintas, naturalmente, emborracharam.
            Iberê Camargo, um mito!  Nunca mais o vi.

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A pintura que ilustra o texto é a que fiquei olhando horas.

11 comentários:

Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Iberê Camargo, tornou-se professor de gravura no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, minha sogra teve aulas com ele, tinha até um quadro dele , em sua casa . Sempre admirei suas obras, tem um sentido forte dele! Boa Postagem, e que grande oportunidade de estar com esse mestre da arte!
Abraços,
Efigenia

Unknown disse...

Uma vez, entrei num ateliê para aprender a pintar. Não tinha proporção e não enxergava as cores, como de fato eram no modelo. Acabei, então, tendo aula de terapia das cores rss... Deve ter algum talento e, afinal, o mais importante é gostar daquilo que se faz. Valeu a homenagem ao mestre! Abraço

Marco Bastos disse...

São excelentes esses contatos. A aula que você teve foi magnífica. Às vezes são alguns poucos detalhes que colocam uma pintura no rumo certo - a questão do foco, da quantidade de cores, das cores básicas, etc. Gosto mais da pintura figurativista. Tinha certa dificuldade em destacar as figuras umas das outras e também do fundo, para melhor individualizar o tema. Lendo sobre a pintura de Tamara de Lempicka, cubismo moderno, obtive a informação que eu precisava - a técnica desenvolvida por Van Gogh de contornar as figuras com traços escuros fortes, em cor que se harmonizasse com as duas cores, a da figura e a contígua. Depois disso, o degradé para os dois lados daquele traço forte. Isso foi bastante valioso para mim. Faz algum tempo que não pinto, mas com frequência a vontade chega forte. Do Iberê Camargo só conheço o nome. abrçs.

Blogat disse...

Bom mesmo, é a sua prosa...o jeito como conta as coisas. Bj!

Anônimo disse...

Olá, Jorge!

Muito atraente a tua descrição. É uma bela aula. A sequencia dos fatos tornaram ainda mais bonita a crônica.
Dou a maior consideração ao conteúdo desenvolvido.
Ñão posso deixar de nomear o Karman Guia, pois foi o meu sonho de consumo, eu o achava uma graça de carro. Só que minha grana, na época não alcançava chegar lá. Comprei então, um fusca zerinho, bonitinho também!
É muito bom recordar todas estas coisas.
Beijos da Petuninha

Tais Luso de Carvalho disse...

Um dos grandes artistas do séc. XX, com uma obra extensa, gravuras, desenho, guaches e pintura a óleo, sua obra 'Carretéis', 'Ciclistas' e 'Idiotas' são de suas fazes mais conhecidas e comentadas.
Iberê sempre exerceu forte liderança no meio artístico e intelectual. Sua vida foi, praticamente, transportada para as telas, tanto em suas fases tumultuadas como nas mais calmas. Suas pinceladas deixaram uma história rica na trajetória das artes.
Todo o artista deixa sua vida nas telas brancas e frias; acabada a obra, tudo vira história, emoção, beleza e riqueza de detalhes. Mas, marcado por tragédias pessoais, a obra de Iberê mostra pinceladas dramáticas e amargas nos últimos anos de sua vida.

"Acho que toda grande obra tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor."

Você, Jorge, teve um dos maiores privilégios de desfrutar momentos com Iberê Camargo! Que belas lembranças!
Abraços!!

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Grande mestre, grande aprendizado, grande crônica. Abraços, amigo Jorge.

Carmem Velloso disse...

Que diria Iberê Camargo diante de um quadro de Beatriz Milhazes? São ótimas estamparias para tecidos. Os falsários de todas as espécies dominaram o mundo.
Parabéns pelo relato, Jorge. Iberê realmente transformou-se num mito.
Bjs. Carmem

VALENTINA disse...

GOSTO MUITO DA SUA MANEIRA DE CONTAR OS FATOS...GOSTEI DA SUA "AUDÁCIA",EM LEVAR SEUS QUADROS,SEM CONHECÊ-LO...DA AULA QUE SERVE HOJE PARA MUITA GENTE QUE ESTÁ LENDO E DA HUMILDADE EM ACEITAR A CRÍTICA,COISA MUITO DIFÍCIL,POIS VOCÊ OS JULGAVA BONS...COMPRE MAIS TINTA,TENTE DE NOVO,QUEM SABE A VIDA NÃO ACRESCENTOU O QUE FALTAVA,AOS OLHOS DE TÃO FAMOSO PINTOR...ASSIM COMO VOCÊ SABE BEM MISTURAR PALAVRAS,PARA FAZER TEXTOS TÃO AGRADÁVEIS,QUEM SABE AGORA NÃO MISTURA CORES QUE NOS ENCANTEM...EXPERIMENTE !!!ABRAÇOS ENCORAJADORES !!!

Rita de Cássia Zuim Lavoyer disse...

Mas você registrou a imagem do artista e a traz até hoje da memória, retratou o mestre com tanto talento que julgo a sua descrição uma obra de arte. Abração!

Anderson Fabiano disse...

...E quando eu conto que preparei caipirinha para Dizzy Gillespie, na Itália, ao som da bateria da Mangueira... prometo que um dia eu conto essa.

Ah! E ainda tem um encontro parecidíssimo com esse com o João Cabral... Meu Deus, somos uns loucos parceirinho. Rssss

Meu carinho (sempre)
Anderson Fabiano