quarta-feira, 20 de abril de 2016

A Bela dos Pampas

                                       

Os primeiros raios de sol, ainda filtrados pela intensa camada de ar frio que aparece nos pampas, já eram suficientes para acordar e começar o dia de trabalho.  Trabalho difícil, diga-se de passagem.  Difícil e perigoso.
            O pequeno acampamento abrigava vinte e três homens, todos acordados.  Cigarros eram acesos pelos fumantes mais inveterados.  Outros aguardavam para fazer o mesmo, os encarregados das refeições já mantinham fogo aceso, em carvões colocados com cuidado na vala aberta, que parecia uma ferida na terra.  Uma chapa fina de ferro, um misto de grelha e frigideira, suportava o panelão onde estava sendo feita a polenta com linguiça e o grande jarro metálico que servia para esquentar água do chimarrão, mas no momento era uma cafeteira.
            Os homens, falando baixo e aguardando a primeira refeição do dia, olhavam com certa ansiedade para a cozinha de campo.  Os cavalos já tinham sido examinados, todos em perfeito estado, segundo exame rigoroso de cada dono da montaria.  A mata era rasteira, não faltando um bom capim que estava sendo devorado por mangas-largas, principalmente.  Fortes e muito bem tratados.  No campo, o cavalo supera o mais moderno jipe ou caminhoneta.  Assunto para quem entende, não adianta discutir.
            A polenta foi servida junto com o café que perfumou o campo verde, talvez até a fronteira.  Ambos, como de costume, estavam deliciosos.
            A jagunçada, enquanto comia a polenta com linguiça, que alimentava seus estômagos famintos, continuava a conversa baixa.  Falar alto no campo ou no mar, dependendo do vento, é escutado por quem está longe, desde que estejam na direção do vento, no mesmo sentido dos que falam.  Daí a cautela.
            Muitos homens examinavam suas armas.  Examinavam e limpavam, como se fosse preciso limpar o que estava impecavelmente sem qualquer sujeira.  Revólveres, na sua maioria, todos de calibre trinta e oito, pois o tiro é de respeito e as carabinas usam o mesmo cartucho.  Estas tinham um poder de fogo terrível, tiro capaz de derrubar um boi, se fosse bem dado, principalmente na cabeça, onde era certa a morte.  Ali, ninguém deixava de acertar uma latinha de cerveja.  De carabina, a uma distância de uns cinquenta ou pouco mais metros.  Revólver é mais difícil.  Quem não se atrapalha com mandar para o alto uma lata, a cinco, ou seis metros de distância, pode sentir-se seguro.
            Estes homens estavam sob o comando de Raul Camargo, antigo policial civil, aposentado aos quarenta e oito anos de idade, após longa carreira nas mais diversas delegacias onde esteve lotado.  O segundo homem era da sua inteira confiança.  Cumpria ordens sem perguntar nada, bastava que acreditasse em quem dava a ordem.
            A ronda noturna havia terminado, e eles voltavam para uma fazenda grande, onde não se contava o número de cabeças de gado.
            Só o chefe subiu os oito degraus que levavam até a enorme varanda da fazenda, que tinha porão para evitar que a umidade e as variações de temperatura incomodassem os moradores, além de proteger a construção.
            — Bom dia, chefe – cumprimentou Raul o fazendeiro de compleição forte, olhar decidido e mãos grandes.
            — Bom dia, Raul.  Alguma novidade?
            — Felizmente não, meu senhor.  Tudo parece estar na mais perfeita ordem.
            — Tem certeza disto?
            — Pelo que vimos durante a noite, tenho.  Mas nunca se sabe a ideia destes safados.
            — Eu sei Raul.  No momento em que você descuida, a terra está toda invadida.  Estes sem-terra são uns moleques bem dirigidos. 
            — Comigo não tem esta não, coronel Leôncio.  Se passar da cerca, é homem morto.
            — Eu sei, Raul. Por isso contratei seus serviços.  E pare de me chamar de coronel. Não tenho patente.
            — Questão de respeito, senhor.  Quem tem mando é superior, é coronel.
            Leôncio fazia ares de quem não gostava de ser chamado coronel, mas adorava o título dado pelos empregados.  Sua fortuna pessoal era grande, mas não como a de outros fazendeiros, principalmente dona Iza.  Segundo contavam, tinha a maior fortuna do lugar, e era muito bonita.
            Colocaram-lhe o apelido, muito próprio, de A Bela dos Pampas.  Qualquer assunto mais difícil de ser resolvido, ou decisão a ser tomada, Iza, a Bela dos Pampas, dava sempre a última palavra.  Ninguém sabia direito suas origens, mas todos conheciam sua fortuna.  Como os outros fazendeiros, detestava os sem-terra, que invadiam, destruíam, plantavam milho e não colhiam, e viviam como ciganos em barracas de plástico preto.
            No início do movimento, tinham diretrizes e eram ordeiros na medida do possível, nas invasões que faziam em terras devolutas, ou terras sem produzir nada.  Mas agora não respeitavam mais nada, era o caos, invadiam e ficavam impunes até mesmo prédios públicos.
            Os fazendeiros do Rio Grande, temendo que lá surgisse outro local parecido com o Pontal de Paranapanema, montaram verdadeiros exércitos particulares, que vigiavam as propriedades dia e noite, todos com ordem de atirar se preciso fosse.  Mas deveriam obedecer ao comandante, sempre um homem experimentado, que não vacilava em dar ordens severas.  Os participantes destas guardas não eram homens que se intimidam diante de uma arma, fosse ela foice, facão ou mesmo espingarda de cartucho.  A resposta era imediata.  Poucos gostavam do uso de espingardas calibre doze, porque espalhavam muito chumbo e o alcance não é grande.  A carabina trinta e oito, fabricada no Brasil mesmo, imitando com perfeição absoluta as velhas Winchester americanas, ferramenta indispensável na conquista do oeste norte-americano, onde foram cometidas barbaridades sem limites, serviam muito bem para repelir invasores e os mais audaciosos.
            Surgiu uma invasão, que ao contrário de todas as outras, não aconteceu durante a noite. Urgia providência, mas mulheres e crianças estavam à frente dos invasores.  Difícil tomar uma decisão, numa hora destas.
            Raul não teve dúvida.  Com mais dois, rumou célere até a fazenda da Bela dos Pampas.  Embora Iza estivesse almoçando, imediatamente foi atender ao jagunço.
            — Têm crianças e mulheres protegendo estes moleques?
            — Isso, dona Iza.  Está cheio.
            — Atirem nas mulheres.
            — Nas mulheres?
            — Sim, nas mulheres.  Matar crianças é bobagem, tchê.  Você mata a mãe, se for preciso.
            —  E por que isto, dona Iza?
            — Porque se você mata a criança, os pais enterram, é noticiário ruim, mas alguém tem que tomar conta das crianças.  Elas dão trabalho aos maiores.   Muitos não têm experiência disto, e não poderão fazer parte dos combates.  As mães.  Matem as mães.
            Felizmente não foi preciso.  Os invasores retiraram-se quando ouviram o barulho do estampido e da bala zunindo sobre suas cabeças.
              


Imagem:  A belíssima atriz Daniela Escobar, uma homenagem.

12 comentários:

Anderson Fabiano disse...

Sou dos tempos das Ligas Camponesas, de finado Julião.
Era coisa de homem da terra, de agricultor de verdade. Havia ideologia e romantismo.
Pra esse grupo liderado pelo terrorista Stedile, é bala mesmo. E de 38! Na cabeça!
Meu carinho,
Anderson Fabiano

marcia disse...

Jorge,ótimo conto.Linda Daniela...
Bjus

AIDA disse...

Me admirei por saberes tanto da rotina dos gaúchos e também sobre armas. Sempre surpreendendo, Jorge, tanto nos contos como na vida.

Abraços
Aida

petuninha disse...

Um conto muito bem escrito, de história interessante, a começar pelo cheiro bom de café carregado pelo vento. Sempre gostei das bravas histórias nas fazendas, muitas permeadas pelas guerras e combates que marcaram com bravura o Rio Grande do Sul. Érico Veríssimo tem seus famosos livros, alguns que foram filmados.
Não gosto nem admito as invasões dos "sem terra", Stédiles e outros, e todos sabem porquê.

Primoroso o teu conto, Jorge.
Abraço. Petuninha.

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Bacana, tchê!

Carmem Velloso disse...

Um lindo e bem elaborado conto, Jorge.
Oportuno e responsável.
Beijos,
Carmem

Caio Martins disse...

Li, reli, gostei, regostei! Coisa de Mestre, Jorge! Abração!

Nadir D'Onofrio disse...

Delicia ler esse conto, Jorge!
Amo esses cenários, aqui, mentalmente os visualizei,​, local, aroma de café, sabor da polenta recheada de linguiça.​Minha origem, não resisti, risos.
Lembra-se do Tempo e o Vento do grande escritor Érico Veríssimo?
Guardo o livro, até hoje, li, reli, N. vezes.
Feliz a escolha da imagem ilustrativa,.... bha tchê... que prenda linda.
Abraços.
Nadir

Shirley Brunelli disse...

Invasores... Lembrei-me dos sem-terra. Tenho muito medo deles.
Belo o seu conto, Jorge.
Beijinho!

Tais Luso de Carvalho disse...

Fez-me lembrar logo no início de Érico Veríssimo. Boa narrativa do café, linguiça, cenário, cavalos manga-larga (conheço bem). Dos jagunços, do vento que elevam as vozes, isso é tiro e queda.
Bom conto, Jorge! A Daniela é linda.
Grande abraço aqui dos pampas. O vento está começando...

Celso Felício Panza disse...

É uma parte do "Casarão", certo (?), já conhecia. Tem gente vendo similaridade com MST, isso lembra a "jararaca". Queria levar paulada na cabeça, parece que deram das boas. E e o "grande articulador", beócio, não consegue comprar mais ninguém, tá sem grana, seu cofrinho estourou, a PETROBRAS, ele estourou. Abraço. Celso

Shirley Brunelli disse...

Passei por aqui e foi bom reler...
Um ótimo domingo, Jorge!