sexta-feira, 14 de junho de 2019

Morte na ladeira

                                                   Morte na ladeira

            A chuva fina que caía não incomodava o jovem que descia uma ladeira sombria, para encurtar seu caminho até a sua casa.
            Ouviu passos.  Não se virou de imediato; antes, sacou o revólver trinta e dois, cano de seis polegadas, sem ser visto por quem quer que seja.  A ladeira era mal iluminada, e os filetes d’água corriam junto aos meios-fios da calçada.
            Quando mexeu com a cabeça para ver o que se passava atrás dele, não gostou nada.  Dois vagabundos, destes mequetrefes que não valem o que comem, já estavam bem próximos.

            — Quer fazer o favor de repetir, tenente?
            — Já disse tudo.  O senhor pode perguntar o que quiser, doutor.
            A delegacia era um prédio relativamente novo, e o seu interior estava bem conservado.  Tolice pensar que toda repartição policial é uma baderna, móveis sujos, chão manchado, os poucos computadores não funcionando direito.  O lugar não era assim.  O delegado que inquiria o jovem oficial do exército era um sujeito paciente.
            — Tenente, foi coisa de profissional.  Dois tiros, um no peito e outro na cabeça.  O senhor tem instrução de combate com aprovação excelente.  Pode me dizer a sua especialidade?
            — Infantaria.  Sou primeiro-tenente de infantaria.
            — Serve onde, senhor?
            — Não posso revelar.  Já disse para o senhor chamar um superior meu, delegado Chaves.  É o seu nome, certo?  Ouvi um colega seu falando.
            — Certo, é Chaves sim.  Prefere ficar em silêncio, tenente?
            — Não senhor, respondo o que perguntar, mas nada sobre o meu serviço.  Só na presença de um superior.
            — Muito bem.  Não vou insistir.  Por que não veio acompanhado de advogado?
            — Não julguei necessário, mas posso chamar.  Afinal o senhor está me acusando de homicídio ou não?
            — Não posso acusar de nada, não tenho provas, testemunhas ou o diabo que seja.  O cara que levou os tiros tinha duas passagens por aqui.  Assaltante, mas também não tinha como incriminar o homem.  Uma das vítimas não o reconheceu.  Medo, claro.  A outra fez a ocorrência e nunca mais voltou.  O que não posso entender é o cara que estava com o que morreu não ter levado bala também.
            — Bem, doutor, se o senhor que é policial não vê sentido, quanto mais eu, que não entendo nada disso.
            — Não é do serviço de informações, tenente?
            — Não, e claro que se fosse não iria revelar a um civil, mesmo que autoridade policial.
            — Sei, sei.  Gosta de revólver de calibre médio, tenente?
            — Doutor, em se tratando de arma, gosto até do estilingue usado nas forças especiais.  Silencioso, forte demais e sempre mortal quando usam bilhas de aço retiradas de rolamentos.  Conhece?
            — Já ouvi falar, meu caro.  Mas nunca vi.  Está dispensado, terminamos, os tiros foram dados por um canhoto, pela direção das balas.  O senhor é destro.  Boa tarde, tenente.  Desculpe o incomodo.
           
            O homem foi embora.  Quando estava cursando a escola de inteligência, viu um colega canhoto que atirava muito bem.  Resolveu treinar com a pistola de pressão, deu mais de dois mil tiros e acabou atirando melhor com a esquerda do que com a direita.  Gostava do trinta e dois cano longo, é muito preciso e não dá o tranco das outras armas mais potentes.  Não atirou no assaltante mais baixo porque ele fugiu.  “Pelas costas, não”, pensou.  O que morreu, nem viu direito como foi.  Ventrículos estraçalhados, e como se fosse pouco, um tiro no lobo frontal direito.  A entrada do projétil tinha pequena inclinação que sugeria ter o sido desfechado pela esquerda.

           

15 comentários:

Anderson Fabiano disse...

GENIAL! SIMPLESMENTE GENIAL!
Aplausos
Meu carinho, Jorjão,
Anderson Fabiano

Elvira Carvalho disse...

Muito bom!
Abraço e bom fim-de-semana

Carmen Velloso disse...

A violência que sacode o mundo, aqui muito bem conduzida neste forte conto do Jorge.
Beijo. Carmem

Reflexos Espelhando Espalhando Amig disse...

Bom dia Jorge.
Aos sábados gosto de passear
pelos Blogs que gosto e
hoje comecei aqui pelo seu.
Bravíssimo! Maravilhoso texto
com riqueza de detalhes.
Gosto de ler e ir imaginando
as cenas acontecendo.
Características que guardo de quando
escrevia pra teatro.
Adorei ler.
Bjins
CatiahoAlc.
http://reflexosespelhandoespalhandoamigos.blogspot.com/
https://frasesemreflexos.blogspot.com/

Tais Luso de Carvalho disse...

Báh, meu amigo Jorge, é com essa violência que convivemos diariamente nesse Brasilzão de Deus!
Conto realista, fiquei olhando para a foto e imaginando a cena. Só você!
Gostei muito!
Um ótimo fim de semana pra você.
Aplausos!
Beijo

Caio Martins disse...

:) Hehê! A forma "curta e grossa", papo reto, se funde com o conteúdo sem frescuras, como sempre! Gostei, Jorge! Muito!

Ana Freire disse...

Realismo... puro e simples...
Quantas e quantas situações assim, ocorrerão?... no caso, um meliante ainda foi morto... mas já haverá circunstâncias, em que policial atira primeiro, e indaga depois... e podemos condenar?... Já nem sei dizer... tem todo o tipo de policial... assim como tem todo o género de bandido... Só quem está por dentro de situação assim, que envolva exposição contínua ao stress e risco de vida... é que saberá avaliar... causas e motivos... uma amalgama delas... num mix difícil de entender e distinguir... onde até os mais elementares princípios de ética, se diluem... no calor dos imprevistos...
Excelente texto, que nos faz reflectir... sobre o faroeste da actual realidade citadina... um pouco por todo o lado...
Um grande abraço! Feliz domingo e uma óptima e inspirada semana!
Ana

Calfilho disse...

Bonito, Jorginho, como sempre. Objetivo, conciso, dizendo tudo o que tem para dizer em poucas palavras...

Carmem Velloso disse...

Não faço mexericos; odeio-os. Mas segundo amigo de Jorge Sader, esta será a primeira página do novo romance que está escrevendo. É esperar para ver!
Vai fundo, querido Jorge. Está simplesmente fotográfico, este conto!
Beijo. Carmem

marcia disse...

Jorge é impressionante.Leio seus contos a muitos anos e sempre me deparo com um final inesperado. Grande contador de histórias (?)bjus

Majo Dutra disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rita Lavoyer disse...

Jorge, sempre o Jorge, com sua genialidade policial. Bom estar aqui, amigo. Grande abraço.

Genny Xavier disse...

Belo jogo de conceitos, nessa irônica e desconcertante narrativa sobre a violência dos dias e a forma como os pontos de vista são conduzidos...

Bom revisitá-lo, meu caro.
Abraços,
Genny

São disse...

Brilhante!

Boa semana e abraço

CÉU disse...

Não entendo nada de violência, Jorge, mas entendi seu conto, que me prendeu de Norte a Sul. Você é um excelente escritor. Adoro sua racionalidade, "frieza" e um certo toque de humor, bem a seu jeito.
Beijos.

Qto ao facto de meu blog não ter Painel de Seguidores visível, foi opção minha, contudo tenho seguidores "escondidos" -rs, mas não sei explicar pra você como eles fizeram. Não se preocupe que eu irei passando por cá de vez em qdo. Sou Professora de alunos pré-universitários e estamos em época de exames, portanto, mto trabalho até finais de julho.

Dias de muita felicidade.